Opção cultural

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Livro “O Reino, a Colônia e o Poder”, de Adelto Gonçalves, é um marco na história de São Paulo

A capitania de São Paulo não vivia isolada nem tampouco estava despovoada, sobrevivendo de sua economia de subsistência

O camponês cheio de mundo na obra de Bernardo Élis

A palavra do escritor quis dizer que o grande mundo dos feitos humanos é igual ao pequeno mundo dos gestos banais semeados na terra dadivosa do cotidiano rural

Uma história de assassinato contada por um homem e aumentada por outro homem

Diadorão das Curvinhas e Janjão das Cobras relatam que o preso Carlão das Tropas  mandou matar sócio de advogado por ciúme da bela Karlinha

Todos escrevem ao Presidente

*Juremir Machado Da Silva

No dia 3 de abril de 1964, quando o golpe militar se deu consumado na missão de derrubar João Goulart da presidência, um homem chamado Wamba Guimarães parte de Brasília com duas malas. Era o então oficial de gabinete da Presidência da República. Wamba viajaria a até o interior de São Paulo para cumprir a última missão dada a ele quando tudo se perdeu: ser o guardião da correspondência endereçada a Jango sob a forma de cartas, telegramas, relatórios, informes, cartões de Natal, de aniversário, de Ano-novo e outras congratulações. Missão essa cumprida com fiel rigor até a ocasião de sua morte, em 2003. É Wamba o guardião da memória que menciona o título do novo livro do jornalista Juremir Machado, “A memória e o guardião” (Editora Civilização Brasileira). E são as correspondências que carregara nas malas que formam a memória sobre a qual esta obra se debruça e apresenta em uma narrativa envolvente, que visita um decisivo recorte histórico brasileiro e nos apresenta a um universo heterogêneo e vasto, apesar de íntimo.

“A Memória e o Guardião” não é simplesmente uma coleção epistolar de João Goulart enquanto presidente, pré-golpe, mas retrata uma cultura política personalista no Brasil, uma rotina que alimentava uma engrenagem burocrática, onde todas as decisões passavam pelo presidente, desde as nomeações de cargos mais básicos, do baixo escalão, aos importantes postos em estatais, ministérios e embaixadas brasileiras, trazendo à luz também nomeações distribuídas até mesmo a adversários como parte da arquitetura de uma base governista e de manutenção de aliados. Uma política clientelista também é revelada pelas correspondências, sabidamente não uma exclusividade deste governo, mas apresentadas agora por um registro literário de como ocorriam os mais variados e inusitados pedidos à figura do Presidente da República, como os pedidos por um “cavalo preto”, ou mesmo o esperançoso pedido de uma moça que gostaria que lhe custeassem uma cirurgia nos lábios.

Estão nas correspondências desde os anônimos brasileiros que pediam ajuda para completar a renda mensal, jantares com o presidente, por quem se diziam apaixonados e ávidos pela oportunidade de conhecê-lo pessoalmente até nomes como Juscelino Kubitschek e Magalhães Pinto pedindo e agradecendo a concessão de empréstimos pela Caixa Econômica para compra da casa própria a amigos e outros favores presidenciais. Dentre os notáveis, é expoente o nome da estrela de Hollywood, Janet Leigh. Em estrondoso sucesso com o filme “Psicose”, Janet esteve no Brasil e gozou do empréstimo de um avião da frota de João Goulart, escrevendo-lhe, depois, uma carta em agradecimento pela gentileza, utilizando papel timbrado do hotel Copacabana Palace, um local iconográfico também pelas celebridades que hospedava.

Para organizar as tramas desta intricada rede de interesses, Juremir Machado valeu-se do tesouro de Wamba, revelado ao jornalista por seu neto. Foram documentados 917 itens, como cartas, telegramas, relatórios, informes, cartões de Natal, de aniversário, de Ano-novo, entre outras congratulações, que somam mais de 2 mil páginas de documentos. No material pesquisado por Juremir, é possível fazer leituras precisas sobre o período que antecedeu os eventos de 1964, quando foi deposto e teve que fugir do país. Os documentos revelam como o golpe que depôs Jango da presidência da República em 1964 foi sendo tecido durante seu mandato. O livro apresenta cartas que revelam, por exemplo, como traidores de Jango se portaram durante seu governo. Por meio desta pesquisa, reconstrói-se este complexo contexto do governo de Jango, ao passo que descortina os bastidores do poder e da elite no Brasil. Suprapartidários e sem restrição de classes sociais, os documentos escritos por cidadãos comuns e autoridades brasileiras e internacionais mostram a política baseada no patrimonialismo, no cartorialismo e no coronelismo.

AO PRESIDENTE

De anônimos a celebridades internacionais, a correspondência de Jango estava recheada de variados nomes e pedidos, alguns um tanto quanto

  De     Para João Goulart
  Ione Teixeira, de Belo Horizonte     Autodesignada “a louca por cavalos”, Ione apresentou a sua demanda em versos de rimas equestres: “(...) Sempre quis um cavalo / E só consigo no sonho / Por isto peço e imploro / A vós Presidente Jangolar / Para meu sonho realizar (...) Com a vossa permissão / Mais umas palavras vou dar / Para V. Excia mandar / Se não muito incômodo, Uma resposta me dar”  
  Geralda, do Rio de Janeiro   A pequena Geralda, 14 anos, pedia ao presidente uma plástica nos lábios. “Eles não são lábios, mas sim beiços.” A moça dizia ter nariz chato e enviava também a figura de uma bela boca sendo pintada com um batom vermelho. Terminava com uma observação divertida: “Lembre-se que o sonho de toda moça é pintar os lábios na idade devida.”
    Auxiliadora Zuazo, de Manaus, 10/09/1962       Auxiliadora conta a Jango que gostaria de “ser jornalista e viajar muito”. Há já uma viagem em vista, mas ela não tem recursos: “Será que o senhor não pode bancar a fada encantada para mim? Você é tão poderoso, chefe de uma nação, possui um bom coração, vamos, ajude-me, sim.” A menina enfatiza: com um sim ela poderá ser considerada “a mais feliz do globo”. Aceita ir em terceira classe. Garante que as experiências de viagem lhe servirão como assuntos para os seus romances e para a sua formação  
  Juscelino Kubistchek, 4/11/1963     J.K costumava interceder por municípios e a amigos, mirando as eleições 1965 (que nunca chegaram). Neste telegrama, agradece um empréstimo a um terceiro. “Agradeço eminente amigo autorização dada pedido Delamare de Abreu empréstimo cx Econômica São Paulo aquisição casa própria.” Delamare de Abreu ficou famoso como o segundo a usar o nome de Ranchinho, integrante da dupla sertaneja de sucesso Alvarenga & Ranchinho. Um simples favor de admirador?
  Janet Leigh, do Rio de Janeiro, 13/11/1961   A estrela de Hollywood, famosa por ter estrelado “Psicose”, também escreveu ao presidente. Para agradecer... O empréstimo de uma avião! “Meus amigos e eu desejamos expressar nossos agradecimentos pela sua bondade conosco em Brasília. O uso do seu avião foi muito útil e estamos profundamente em dívida pela sua consideração”, escreveu Janet em um papel timbrado do Copacabana Palace, onde esteve hospedada com seu marido, o ator Tony Curts.

*Sobre o autor

Juremir Machado Da Silva (Santana do Livramento/RS, 1962) é escritor, tradutor, jornalista e professor universitário. Graduado em história e em jornalismo pela PUCRS, fez doutorado e pós-doutorado em sociologia na Université Paris V – Sorbonne. Publicou mais de trinta livros, entre ficção, ensaio e tradução. Entre as diversas distinções recebidas constam a condecoração como Chevalier de l’Ordre des Palmes Académiques, pelo governo francês, em 2008; o Prêmio da Bienal do Livro de Brasília, em 2014, por Jango, a vida e a morte no exílio;  o Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA), em 2018, por Raízes do conservadorismo no Brasil, seu primeiro livro pela Civilização Brasileira; e, em 2019, a Medalha do Mérito Farroupilha, maior distinção concedida pela Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul.

Muito além das câmeras – A mulher no cinema

*Por Regiane Moreira

Analisar a sociedade por meio do viés da representação feminina na história é um exercício interessante, pois se descortina uma série de modelos hegemônicos patriarcais e machistas ainda vigentes. A humanidade possui uma dívida histórica com o gênero feminino e necessita de um esforço coletivo para mudar esse panorama, que vai além de trocar os protagonistas dos comerciais da bebida fermentada por cereais. Seguindo o mesmo caminho de outros segmentos sociais, a representação da mulher nas artes não escapa ao modelo citado anteriormente. Nas artes visuais, estuda-se a produção artística pautada em nomes masculinos, raras as vezes que se trabalham nomes femininos do período clássico, por exemplo, denotando maior aparição a partir dos movimentos modernistas  contudo, muito aquém perante a participação masculina no mesmo segmento. Se analisarmos então a participação da mulher negra na arte, tocamos em outra ferida social que a humanidade dificilmente vai estancar. Nas produções cinematográficas, a mulher foi e ainda é retratada pelo olhar masculino, que a representa como um apêndice de personagens homens, fadadas a forte erotização e exploração de atividades ditas como femininas. Basta verificarmos que até meados do século XX, a mulher desempenha no cinema apenas as funções de dona de casa, esposa, mãe, amante, além de ter sua representação fragilizada por enfatizar apenas seu perfil sensível. Graças ao movimento feminista que surgiu na década de 60, questões levantadas desde os finais da década de 20 vieram à tona e começaram a expandir e, principalmente, questionar o lugar da mulher na sociedade em seus diversos âmbitos. Partindo da premissa de que o cinema hollywoodiano influencia de modo substancial as representações sociais, percebe-se que a visão da mulher foi explorada dentro de um imaginário social que, muitas vezes, está tão familiarizada, que o público mal consegue perceber-se em modelos representacionais masculinos de visualidade. Segundo Laura Mulvey, teórica feminista britânica, a mulher é vista como um objeto de uma ordem “falocêntrica que é tida como um ser que tem a capacidade de manipulação através do visual e da sexualidade”. (MULVEY, 2008.) Partindo da herança de Theda Bara (primeira “mulher fatal” representada ainda no cinema mudo) e de Marilyn Monroe (considerada um ótimo exemplo desse papel sexual da mulher no cinema), mostra-se a satisfação visual cinematográfica pautada nos olhos masculinos, focando em produções que exaltam os dramas e a visualidade do corpo com o intuito de prender o olhar do expectador, que se reconhece também nas telas  ou seja, uma retroalimentação da representação da realidade. Mais recentemente, no fim dos anos 90, a figura feminina foi enfatizada por meio de personagens “efervescentes e rasas” que coexistiam para deliberar a imaginação dos escritores e diretores mais sensíveis que visam salvar os homens problemáticos e depressivos para encontrar um novo sentido da vida. Ou seja, a personagem não possui sua própria história, pois é construída apenas para desenvolvimento pessoal do personagem principal. Saindo do campo das personagens e partindo para as produções cinematográficas, o protagonismo feminino fica aquém de qualquer possibilidade de igualdade de direitos. Nomes como Alice Guy, em “La Fée Aux Choux”, de 1896 (pioneira no uso da cor, sons e efeitos especiais no cinema), Cléo de Verberena, em “O mistério do dominó preto”, de 1931 (primeira autora de um filme dirigido por uma mulher no Brasil) e Gilda Abreu (roteirista e diretora de um dos maiores sucessos de bilheteria do cinema nacional de todos os tempos, “O ébrio”, de 1946). (LUSVARGHI, 2019) soam como exemplos minoritários em pleno século 21. Em se tratando de reconhecimento pela academia, a distância entre indicações femininas e masculinas ao prêmio mais importante do Oscar americano é abismal. Em 91 edições do prêmio, as mulheres receberam apenas cinco indicações, tendo ganhado somente em 2010, com Kathryn Bigelow por “Guerra ao Terror”, que recebeu também o prêmio “Melhor Filme”  deixando “Avatar” para trás naquele ano. Obras como “Women and Film:Both Sides of the Camera” de 1983, de E. Ann Kaplan, assim como “Mulheres atrás das câmeras”, de Luiza Lusvarghi e Camila Vieira da Siva de 2019, procuram destacar a necessidade de se refletir sobre o protagonismo feminino diante e atrás das câmeras.  Contudo, ainda temos um longo caminho pela frente. *Regiane Moreira é professora da Escola Superior de Educação do Centro Universitário Internacional Uninter.

O escritor Bernardo Élis é o goiano universal

Pode-se sintetizar: lê Bernardo Élis para entender Goiás; lê Goiás para compreender o Brasil e a peleja humana aqui — e em todos os lugares Eguimar Felício Chaveiro Especial para o Jornal Opção [caption id="attachment_48258" align="aligncenter" width="620"] Bernardo Élis: a leitura de sua obra (como "O Tronco") é apalpar a infinitude de Goiás como componente vivo da sociedade brasileira, é uma forma de apalpar as feridas pulsantes que latejam na estrutura de poder e social de Goiás e do país[/caption] Contra a política do esquecimento e com o intuito de mobilizar leituras da obra literária de Bernardo Élis, o Instituto Cultural e Educacional Bernardo Élis para os povos do Cerrado (Icebe) está realizando o projeto “Colóquios primordiais sobre Bernardo Élis”. A reflexão da biografia do autor goiano, diretamente ligada ao seu estilo narrativo e aos seus propósitos estéticos e sociais, foi o toque inicial do primeiro colóquio realizado no dia 13/4/2020. Duas perguntas eclodem no leitor do literato corumbaense: como alguém do interior de Goiás foi capaz de, nos primeiros quarteis do século 20, produzir uma obra tão consistente, merecedora de aplausos da crítica literária nacional e da intelectualidade brasileira? Pergunta-se também: o que há na narrativa bernardiana que, mesmo versando sobre o mundo do camponês goiano, sobre as peripécias históricas do sertão e sobre a estrutura do poder local, ganhou tônus universal? Bernardo Élis, desde os seus primeiros livros, “Ermos e Gerais” (1944), “A Terra e as Carabinas” (1951), “O Tronco” (1956), ganhou destaque nacional.  Profundamente tímido, com sentimento de inadequação ao mundo, observador compulsivo das cenas comuns e domésticas, ressabiado com a imagem pública de si, encontrou nos livros e na escrita o seu refúgio de vida, a sua inspiração para suportar a sua desconfiança no mundo. [caption id="attachment_248318" align="aligncenter" width="670"] Carta de Guimarães Rosa para Bernardo Élis a respeito de "Caminhos e Descaminhos" | Foto: Reprodução[/caption] Logo nos primeiros livros, os seus propósitos de vida se encaminharam para a sua escritura. Com valentia calada, ele próprio se incumbiu de uma missão: lançar Goiás para fora. Ou seja, universalizar a cultura goiana, o seu povo e os seus problemas. Fincado os pés no chão, a sua literatura, ainda nas primeiras obras, esculpia, no estilo, a sentença do propósito: ela era uma voz goiana do modo goiano de expressar, mas tecida com a intervenção da cultura universal. Foi exatamente a aglutinação da fala popular aos móveis da cultura erudita que balançou, especialmente a partir da década de 1950, a estrutura do romanceiro nacional. Ao se colocar como uma novidade estilística no país,  o seu realismo regional, feito de uma prosa elegante e legível, de um léxico balançado entre a verve popular e erudita, rico de imagens e de imaginação, mas sem exageros poéticos, nutrido de um esquema de valor baseado na justiça e na denúncia dos desmandos oligárquicos, chancelou a sua entrada na Academia Brasileira de Letras. E o seu prestígio como um dos maiores escritores brasileiros. [caption id="attachment_248317" align="aligncenter" width="683"] Bernardo Élis em bico de pena de Luís Jardim[/caption] Premiada, objeto de estudo e referendada pelos maiores intérpretes da teoria literária nacional, a sua obra se evidencia como uma das maiores fontes de leitura de Goiás. Ou seja, quem deseja conhecer as raízes de Goiás, alguns de seus episódios históricos marcantes; os seus conflitos originários, assim como a picardia, o esforço e a luta do sertanejo goiano, tem nos livros desse literato, um documento raro. Pode-se sintetizar: lê Bernardo Élis para entender Goiás; lê Goiás para compreender o Brasil e a peleja humana aqui – e em todos os lugares. O chamamento para se ler hoje Bernardo Élis é, igualmente, um convite para que se cuide do maior patrimônio de um povo: a sua memória. Os livros de Bernardo Élis guardam a memória de Goiás e do povo goiano. As trajetórias biográficas do literato, de Corumbá, passando pela Cidade de Goiás, posteriormente Goiânia e Rio de Janeiro; a sua observação, sensibilidade e respeito pelas cenas simples do viver humano, juntando-se a uma erudição forjada com disciplina e entusiasmo no processo de leitura, fizeram com que o literato, por meio de sua imaginação criadora e de sua ficção realista, criasse uma obra inesgotável. Como ponderou o semiólogo, linguista e escritor italiano Umberto Eco, a leitura deixa o texto infinito. Ler Bernardo Élis é apalpar, assim, a infinitude de Goiás como componente vivo da sociedade brasileira; é ao mesmo tempo uma forma de apalpar as feridas pulsantes que ainda latejam na estrutura de poder e social daqui e do país. Como se diz, não se lê um excelente livro impunemente. Ao lê-lo, mais ou menos, algo essencial fica da leitura. E uma boa leitura faz o leitor escrever, mobilizar a sua consciência e a sua imaginação. Lê-se para compreender e para nunca morrer. É hora de pegarmos nas mãos de Bernardo Élis. Ou seja, é momento de revitalizá-lo. Eguimar Felício Chaveiro é professor do Instituto de Estudos Socioambientais, da Universidade Federal de Goiás; membro do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás; membro do Instituto Cultural e Educacional Bernardo Élis para os povos do Cerrado.

Mary del Priore, A Tamoia de Bonifácio

O livro “As Vidas de Bonifácio” tem cheiro de pasquim, de imprensa marrom. Estou me sentindo decepcionado, como leitor, e logrado, como consumidor

O realismo telúrico e fatalista de Bernardo Élis no conto “Nhola dos Anjos e a cheia do Corumbá”

Um par de Guimarães Rosa, o escritor cria um conto poderoso — forte na linguagem e na interpretação até antropológica das personagens

Jornalista: um escritor que navega pelas correntezas do verossímil

Por Paulo Stucchi* 

[caption id="attachment_247548" align="alignnone" width="620"] Paulo Stucchi | Foto: Divulgação[/caption] Recordo-me de um professor – daqueles que marcam a vida da gente numa época em que queremos abraçar o mundo, mas não temos braços e pernas longos o suficiente para tanto – que gostava de instigar os alunos com a seguinte questão: “Vocês acham que o jornalista lida com a verdade?”. Claro que, imaturos, respondíamos que sim. Então, ele nos corrigia, com um sorriso sádico: “Não! Jornalista lida com o verossímil. Mesmo porque nunca há um ponto de vista sobre um fato”. Isso me marcou de tal modo que, quando chegara minha vez de lecionar, lançava aos meus alunos a isca do mesmo questionamento. De fato, o jornalista é um cronista que seleciona um número determinado de pontos de vista para criar a receita de sua narrativa. Antes do ponto final, adiciona o seu próprio ponto de vista e critérios ao tema e, por fim, entrega ao editor para que ele também acrescente o ponto de vista da linha editorial do veículo. Está preparada a linha de montagem de um conteúdo jornalístico. Não, o jornalista não é falso, tampouco um mentiroso! Contudo, como dizia meu professor, ele empresta o ponto de vista dos outros para montar sua história, recorrendo a fontes, pesquisas, press releases, livros e acervos infindáveis. Como resultado, prende-se a uma versão de um fato, a qual deve ser contada com detalhes que enobreçam a sua função maior: informar e, com isso, fermentar o senso crítico. Ora, e não é assim que também trabalha o escritor? Emprestamos (se não, surrupiamos) pontos de vistas, estilos, fisionomias e histórias; misturamos tudo, adicionamos uma pitada de experiência pessoal e formatamos na forma de ficção. A diferença é que nosso compromisso com o verossímil é menor. Ao contrário do jornalista, navegamos pelo rio da imaginação, deixamo-nos levar pelas correntezas de vidas fictícias nascidas a partir do real, e apresentamos aquilo que, julgamos, o leitor deseja ler - e não necessariamente o que ele “precisa”, como no caso do jornalismo de boa qualidade. Nos dias atuais, vale mais uma reflexão: sem o jornalista (e o jornalismo) não há senso crítico; calam-se histórias que precisam ser contadas; cegam-se pontos de vista que emprestam lentes de aumento a míopes; engessa-se a linda dinâmica da trajetória pelo verossímil, da arte de contar histórias de pessoas de carne e osso, de mudar vidas, de talhar destinos. Sem jornalistas, assim como na ausência de escritores, ficamos órfãos de alguém que nos narre o mundo – como ele é, ou, mais belo, como gostaríamos que fosse. *Paulo Stucchi é jornalista e psicanalista. Formou-se em Comunicação Social pela Unesp Bauru. Ele é especialista em Jornalismo Institucional pela PUC-SP e Mestre em Processos Comunicacionais, com ênfase em Comunicação Empresarial pela Universidade Metodista de São Paulo. Trabalhou como jornalista em revistas e jornais impressos, tornando-se editor, por treze anos, de uma publicação segmentada para o setor gráfico. Divide seu tempo entre o trabalho de assessor de comunicação e sua paixão pela literatura, principalmente, romances históricos. É autor de A Filha do Reich, Menina – Mitacuña, O Triste Amor de Augusto Ramonet, Natal sem Mamãe e A Fonte.

Desespero em tempos de crise: o que há de humano em meio à barbárie?

Por Cláudia Cobalchini*

[caption id="attachment_247552" align="alignnone" width="620"] Pieter Bruegel the Elder - The Tower of Babel (Rotterdam)[/caption]
O momento atual que estamos vivendo nos permite observações interessantes acerca do comportamento humano - e o que não dá para negar é a força social exercida sobre o indivíduo. Primeiro, pelo bombardeio de informações de fontes diversas, algumas confiáveis, outras nem tanto, mas que chegam à população com status de verdade e a colocam em um movimento de “barata tonta”, com a pergunta “corro para onde”? Somos alvejados cotidianamente pelas posições sensacionalistas daqueles que ou têm em mente o intuito de manipular as informações, ou por aqueles que estão desesperados e, desenfreadamente, reproduzem-nas sem buscar conhecer as fontes ou ponderar a lógica do que está sendo veiculado. E diante disto, que parece um caos, ou melhor, uma “torre de Babel” com muitas “línguas” sendo faladas ao mesmo tempo, mas não sendo compreendidas, instala-se um comportamento coletivo de “histeria” (denominariam alguns colegas), em que sem nem bem saber porque, seguem a “onda”. Assim tem se apresentado o cenário mediante uma crise instaurada na saúde, cujas consequências atingem os âmbitos econômico, cultural, geopolítico, dentre outros. As pessoas mantêm comportamento tanto de avidez pela informação sobre os trágicos efeitos de uma epidemia (já pandêmica), como alimentam atitudes de discriminação (preconceitos) em relação ao que consideram a origem do problema, de egocentrismo na busca da garantia de seu bem estar em detrimento dos demais (vide as compras desenfreadas, brigas por artigos de higiene), acirrando as desigualdades sociais tão presentes em sociedades capitalistas. A saúde, nesse contexto, compreendida como produto, é o mote da vez: com a corrida em busca da “cura” (vacina ou controle), há nações que querem chegar antes, sem considerar as outras como seus pares, quase num conflito armado. Então podemos questionar para que existem as crises. Elas representam a possibilidade de ruptura de algo que já estava nos “trilhos”. Servem para questionar o que aparentemente estava em ordem, ou deflagram o que já não estava bem (mas ainda estava no escuro). Mesmo que o momento de ver sob a luz seja dolorido, o conhecimento - ou o reconhecimento - de que algo não está bem e impele mudanças, também pode ser libertador. Dessa forma, o que temos visto é a deflagração do que há de mais humano, os processos de identificação (no sentido de se sentir o mesmo) e de diferenciação (de comparação e distanciamento), que se apresentam como uma luta por sobrevivência (para alguns a qualquer preço, pois a civilidade depende de educação social - precisa ser aprendida para convivência em sociedade). A diferença é de que nível de sobrevivência estamos falando. Há possibilidade de viver sozinho? Fazemo-nos pelas relações sociais. Estas nos constituem. Então, se vivo interações de reconhecimento, consigo exercitar a empatia, a alteridade, com mais propriedade do que aqueles que foram privados dessa aprendizagem. Em um sistema que teima ideologicamente em disseminar a individualidade como ideal a ser conquistado, inibe-se o “espírito” gregário, de identificação sobre a mesma “natureza” (somos feitos de sangue e carne, que dói, que chora, que se apaixona...). A quem serve destituir o valor social de nossa constituição? A um plano de governança que nos quer ver digladiando, lutando pelo espaço, pela comida, pela água, ao preço de uma necropolítica, do genocídio, da miséria… A condição de humanidade precisa ser conscientemente alvo de aprendizagem, com a proposição da valoração de cada um no coletivo, e deste manifestando-se em cada eu. A história nos ensina: os processos grupais são importantes para o movimento das sociedades, tanto na evolução (de construção de novas tecnologias, de melhorias para qualidade de vida, de garantia de direitos), como para obstrução do desenvolvimento (ao diferenciar grupos sociais no acesso a bens, ao não garantir equidade, ao incitar a violência). A aposta agora pode se dar na produção de condições que valorizem a solidariedade e a aprendizagem mútua.
*Cláudia Cibele Bitdinger Cobalchini é psicóloga e mestre em Psicologia da Infância e Adolescência pela UFPR. É supervisora em práticas profissionais em Psicologia Comunitária e professora do curso de Psicologia da Universidade Positivo.

Maria João Cantinho e a poesia da condição humana 

Seus versos livres são dedicados “às pequenas coisas”, mas, ao mesmo tempo, mostram a pequenez da condição humana e evocam a natureza com imagens poderosas       Adelto Gonçalves Especial para o Jornal Opção “Do Ínfimo” (Penalux, 2018), de Maria João Cantinho (1963), publicado em 2016 pela Coisas de Ler, de Lisboa, vencedor do Prêmio Literário Glória de Sant’Anna de 2017 e finalista do Prêmio PEN (Poets, Essayists and Novelists) de Portugal em sua modalidade em 2017, é o  primeiro livro de poesia da autora lançado no Brasil, mas, desde já, constitui um motivo extremamente forte para que a sua atual editora e outras venham a publicar toda a sua obra, que inclui mais três livros de poesia, quatro de ficção e um de ensaios. Obra ligeira de 71 páginas, Do Ínfimo traz, na primeira parte, 24 poemas, reservando na segunda parte, intitulada “Caligrafia da Solidão”, uma prosa poética de 17 páginas, que, publicada em 2005 pela Escrituras Editora, de São Paulo, foi finalista do Prêmio Telecom de 2006. O texto traz dedicatória ao poeta paraense Vicente Franz Cecim (1946), o “mago de Andara”, conhecido tanto no Brasil como em Portugal pela força poética de uma escritura que escapa à classificação em gêneros literários e, não raro, é uma homenagem ao grande e estranho mundo da Amazônia. Basta isso para dizer que a prosa poética de Maria João é igualmente de difícil leitura e apreensão, o que, porém, não constitui obstáculo para que seja usufruída pelo leitor de bom gosto. E que pode ser lida como uma “carta de amor ao poeta”, como já observou a jovem crítica literária Danielle Magalhães (1990), poeta e doutoranda em Letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em recensão que fez do livro. O texto, como já percebeu o escritor, pesquisador e crítico literário Krishnamurti Góes dos Anjos (1960) em resenha que escreveu para este livro, é um eco ampliado do pensamento do filósofo, ensaísta, tradutor e sociólogo judeu alemão Walter Benjamin (1892-1940), que, aliás, foi tema de tese de mestrado da autora, intitulada “O Anjo Melancólico: Ensaio sobre o Conceito de Alegoria na obra de Walter Benjamin”, que recebeu o Prêmio de Apoio à Edição de Ensaio de 2002 da Direção-Geral do Livro e das Bibliotecas, do Ministério da Cultura português. Trata-se de um texto-metáfora com ressonâncias afetivas, um stream of consciousness (fluxo de consciência), técnica literária usada primeiramente pelo poeta francês Édouard Dujardin (1861-1949). Procura captar o ambiente da Amazônia, especialmente de Belém do Pará, região brasileira que a autora conheceu de perto, além do Rio de Janeiro, como já disse em entrevista. Não é, porém, um texto ditado apenas pela emoção ou por lembranças, que se destaca por sua qualidade lírica, pois se distingue também pelo rigor estilístico e pelo apuro técnico. Sem contar que, inspirado pela visão de mundo de Benjamin, um marxista, nada traz da pomposidade católica ou da esperança evangélica. Nele são raras as apologias religiosas, que são substituídas por referências a filósofos, ainda que seus nomes não sejam explicitamente lembrados, mostrando que a poeta pende mais para a incredulidade e para a descrença. Como exemplo disso, leia-se a parte final de sua prosa poética: (...) Depois, veio a chuva e a Terra inundou-se de uma água que era o Tempo, possuída de vozes do passado que percorriam a floresta. E aquele que, dormindo, via tudo em sonhos, chorou por dentro do sono, onde nada o alcançava. Porque luminescera a Letra, fundira o espírito e a carne na Leveza de si mesmo. Reescrevera o homem na mais perfeita Caligrafia da Solidão. E da sua urgência saía agora o pássaro leve, capaz de levar a boa nova aos homens, cujos olhos apenas viam a devastação. O pássaro alimentava-se da sua carne, do seu sangue, libertando-o de si, do sonho. (p. 71). [caption id="attachment_247529" align="aligncenter" width="545"] Maria João Cantinho, poeta e crítica literária portuguesa | Foto: Reprodução[/caption] Dos 24 poemas que compõem a primeira parte, há pelo menos dois que são explicitamente inspirados na meninice da autora, pois fazem referência à terra de seu pai, Angola, onde ela viveu a infância, tendo retornado a Portugal em 1975, com a guerra civil que, depois da independência do país em novembro daquele ano, continuou até 2002, envolvendo a luta pelo poder entre dois antigos movimentos políticos, o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e a União Nacional para a Independência Total de Angola (Unita). Um desses poemas é “Há um país antigo que se abriga em mim”, que evoca a época em que Angola ainda era uma colônia portuguesa. Leia-se o poema: Há um país antigo que se abriga em mim/ um país de que não me lembro/ senão de mim menina, uma língua/ de sol e água que se cola à minha pele,/ obstinadamente quer ser tempo em mim,/ quer ser boca, procura a abertura,/ escorre entre as fendas da memória,/ como um pássaro de asas partidas./ Há um país antigo que se abriga em mim/ e eu procuro a voz do vento que o cante,/ nessa harpa fria que é memória minha. (p. 27). Essa evocação continua em “Um rio, um nome” em que a poeta volta a evocar o vento, as árvores e as águas limpas de um rio daquele pedaço de África, a terra de seu pai, ao tempo em que ela, menina, ainda “não nadara no múltiplo leito de Heráclito” (500a.C-450a.C), o filósofo socrático, considerado o pai da dialética”, cujo pensamento só conheceria a fundo a partir de seus estudos para a tese de doutoramento em Filosofia Contemporânea que defenderia na Universidade Nova de Lisboa. Eis o poema: (...) Na terra do meu pai havia laranjas/ e chão, havia sol e murmúrios/ e  nós ouvíamos a respiração da noite/ por dentro das raízes das árvores/ e o rio falava com as pedras/ e com a luz/ e nós corríamos/ ou éramos levados pelo vento/ que acendia a folhagem./ Na terra de meu pai não havia medo/ só um rio e as águas limpas/ onde as mulheres lavavam a roupa/ e cantavam ao som da terra./ Na terra do meu pai corria um rio/ e os homens tinham lugar/ era um rio por coração/ era um nome/ para um homem. (pp. 28-29). O que se pode acrescentar ainda de seus versos livres é que são dedicados “às pequenas coisas”, mas, ao mesmo tempo, mostram a pequenez da condição humana e evocam a natureza com imagens poderosas. É o que se pode constatar no poema que dá título ao livro: Não sei senão do ínfimo/ e do murmúrio das pequenas coisas,/ as que não chegam à palavra/ como a sombra ou o vento desenhando-se sob os álamos,/ em quieta reverberação./ E nada sei, senão desse canto/ invisível, mais sonho que metáfora,/ do tempo que é no fruto/ ou do que sabe ser sol, sem alarde/ do breve e da passagem./ E nada sei dessa grandiloquência/ dos homens, das suas promessas/ e dos gestos que traem o coração,/ dessa palavra ou excesso que mata/ a perfeição circular do instante./ Se é vida, sangue ou oiro,/ nada sei, nada de nada/ escondido que ele é/ no ínfimo e na sombra. Oculto. (p.17). Como já observou com percuciência o escritor português António Cabrita (1959), residente em Maputo, nos poemas de Maria João Cantinho, “a ênfase não está no brilho (as imagens fulgurantes) mas antes na justeza das palavras”. Para Cabrita, são versos que testemunham um desencontro com as idealidades, disfóricos, versos de onde se parte ou nos quais se vinca que algo se perdeu e que quando encenam um retorno recortam um céu plúmbeo em fundo. “Contudo, a tristeza que neles se plasma foge de consolidar-se como a abstração de um saber, ou da congelação melancólica. Daí que surjam laivos de revolta e vários poemas reclamem um certo cariz social”. Melhor definição não seria possível. Nascida em Lisboa, Maria João Cantinho é professora, poeta, crítica literária e ensaísta. É investigadora do Centro de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e colaboradora do Collège d'Études Juives da Universidade da Sorbonne IV, de Paris. Foi professora do ensino secundário e atuou no Creative University of Lisbon (Iade) entre 2011 e 2016. É colaboradora da Revista Colóquio-Letras, da Fundação Calouste Gulbenkian, de Lisboa, e de diversas revistas literárias e acadêmicas, além de membro do Conselho Editorial do Caderno do Grupo de Estudos Walter Benjamin. É também editora da Revista Caliban. Foi professora-visitante no Brasil em 2013 (Brasília, Goiânia e Rio de Janeiro), tendo feito conferências também na França, Inglaterra, Alemanha, Espanha e Índia. Tem igualmente organizado vários congressos, consagrados ao pensamento de María Zambrano (1904-1991), em 2006, Walter Benjamin, em 2008, Emmanuel Levinas (1906-1955), em 2009, e Paul Celan (1920-1970), em 2012. Está representada em várias antologias publicadas no Brasil, Espanha, França e México.  É ainda curadora da Coleção Trás-os-Mares, que edita autores portugueses no Brasil, pela Editora Circuito, com o escritor e editor Renato Rezende. É igualmente curadora da Colecção MU-Continente Perdido, da Editora Exclamação, do Porto. Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de “Gonzaga, um Poeta do Iluminismo”, “Bocage — O Perfil Perdido” e “O Reino, a Colônia e o Poder — O Governo Lorena na Capitania de São Paulo 1788-1797”.

A sóbria poética de Ana Guadalupe

A sobriedade reina no manejo das emoções — de modo que o medo e as agruras são expressos sem serem aprisionados em fórmulas reducionistas Ricardo Silva Especial para o Jornal Opção        Nunca falei com Ana, mas nessas paragens virtuais é muito fácil criar um simulacro de intimidade. Por isso acredito que não seja tão inoportuno usar a palavra “conheci” ao me referir à jovem poeta paranaense, já que ocorreu no espaço das redes sociais o primeiro contato entre nós. Na milimétrica restrição dos poucos caracteres, Ana tinha o traquejo certo de aliar concisão com boa pontaria. Sempre publicava algo certeiro. Leitor com certa caminhada, percebi ali o germe de uma criação maior. Não me enganei. Não demorou muito tempo para que eu lesse eventuais poemas surgindo aqui e acolá, então os primeiros livros — “Relógio de Pulso” (2011) e “Não Conheço Ninguém Que Não Seja Artista” (2015) —, e as aparições em antologias. Mas não nunca falei com Ana. Me fiz apenas de crítico exercendo o papel de observador à distância de um talento patente, que valia a pena acompanhar a evolução. “Preocupações”, terceiro título da poeta e publicado pela editora Macondo em 2019, é a confirmação plena dessa ascensão. Ao leitor que espera floreios, belezas lisas, muitas cores e poemas edificantes, não encontrará cá neste trabalho de Guadalupe quaisquer desses elementos. O que impera nos poemas é a generosa resignação consciente de sua própria condição. Existe um certo ambiente fixo de melancolia e tristeza que costura a trama dos versos e alinha os poemas numa exposição límpida dessa condição solitária do existir: a eterna transitoriedade do nomadismo urbano, os amores que não acontecem, os que acontecem mas não criam raízes, o contato que precisa ser cortado, o funeral de si onde quase ninguém vai, o primeiro encontro onde o papel do beijo foi exercido pela terceira pessoa da trindade, os afastamentos e aproximações, as oscilações da felicidade, que se torna refém da ansiedade do espaço vazio e das caixas de mudança que nunca são desfeitas. [caption id="attachment_246686" align="aligncenter" width="960"] Ana Guadalupe, poeta paranaense: no seu mais recente livro, “Preocupações”, demonstra sua profunda capacidade da observação poética da vida | Foto: Facebook[/caption] A constante mudança de tudo, talvez seja essa uma das linhas responsáveis pelo emaranhado coeso da poesia de Guadalupe. A poeta não se ocupa com o excesso, os versos têm suas próprias formas de filtrar apenas o essencial e nos expor somente o necessário. É a sobriedade que norteia o quadro inteiro de “Preocupações”. O título da obra também cumpre o papel de revelação quando nos debruçamos a analisar o livro. São diversas as preocupações da poeta: expor o que sente (“minha dor eu preciso/apresentar ao público/antes que desapareça”); com o dinheiro curto (“por quanto tempo/ terei dinheiro para viver nesta cidade/ antes que pese demais o medo/ e o medo me roube a energia?”); com a insuficiência das palavras (“a palavra não basta/ a palavra não dá nada em troca/ por isso vivemos preocupados”). A preocupação dá o tom, mas nunca explícito, porque sutil. A sutileza estrutura-se como um caminho oportuno de seguir na tentativa de encontrar algumas chaves de leitura do livro, mas lhe alcançar é uma luta vã: a efemeridade na abordagem de Ana Guadalupe se apresenta em poemas cuja porosidade não é de simples captura. Nisso também repousa a beleza de “Preocupações”. Se existe um resignado pessimismo (“às vezes dá na mesma/ viver antes ou agora”), o humor silencioso, sem a necessidade de sinalização (“que alegria/ bater os dentes/ no seu carinho que cresce”), também encontra no livro sua guarida. Até mesmo um involuntário diálogo com nossos tempos de pandemia ecoa no ingenuamente profético “não haverá passeio” (“hoje não me convidaram para nenhum passeio/ nem amanhã/ nem amanhã”). Na poética de Guadalupe a sobriedade reina ao conseguir manejar as emoções de forma que o medo — da vida, dos amores, do quarto escuro, da proximidade da infelicidade —, a paranoia, o desgaste da vida social, e as agruras dos gritos introspectivos possam ser expressos sem que sejam esgotados ou aprisionados em fórmulas reducionistas. Termina-se “Preocupações” sem muitas esperanças para dias de luzes e sem saber “o que vai enfim destruir a dureza”, mas há uma certeza: Ana Guadalupe se sedimenta como uma das mais interessantes vozes da nova poesia brasileira.

Da inutilidade da filosofia à utilidade da ignorância em tempos de pandemia

Após corte no financiamento das ciências básicas e humanas, filósofo responde a pergunta: Para que serve a filosofia? Por que financiamos humanidades?

Em tempos de pandemia, BBB20 é o ópio do povo

Tsunami de más notícias sobre novo coronavírus favoreceu entusiamo dos brasileiros com BBB20, que parece ser a única alternativa de amplo acesso

Canto surdo: uma leitura psicanalítica por meio da música

Obra "A Voz no Divã" de Jean-Michel Vives, autor vencedor do prêmio ŒDIPUS na FRANÇA, é lançada no Brasil Em "A voz no divã, uma leitura psicanalítica sobre ópera, música sacra e eletrônica", o autor e psicanalista Jean-Michel Vives desenvolve sua tese sobre a voz enquanto objeto primordial do sujeito, antes mesmo do seio materno - como a psicanálise tem defendido até agora. Com coerência clínica e clareza conceitual, Vives analisa os três tipos musicais, de forma audaciosa. Entrelaça esse universo às questões psicanalíticas para demonstrar como os temas desenvolvidos despertam afetos específicos no ouvinte, do mais puro prazer ao horror desmedido. Publicado em parceria pelas Editoras Aller e 106, o livro busca entender como os sons que tocam, envolvem e ressoam no corpo do sujeito permitem que se produza paisagens e presenças. Vives afirma ainda a necessidade do ponto surdo para que o sujeito possa fazer-se voz. Com a música sacra, o professor de psicopatologia clínica na Universidade Côte d’Azur (Nice – France) demonstra, usando a figura dos castrati, o quanto uma voz pode ser instrumento daquilo que alcança o além da imposição da Lei. E o quanto isso, para o ouvinte, pode ser extremamente prazeroso. Já em um segundo momento, Vives destrincha várias óperas e o papel que a diva ocupa em cada uma. Ao mesmo tempo em que analisa o que há de tão encantador nessa voz que alcança notas sublimes, questiona por que a falha da protagonista é tão odiosa para os ouvintes. Nesse ponto, também retoma o grito das sereias, enquanto sedutor e mortífero. Ao tratar dos tempos contemporâneos para falar da música eletrônica, por sua vez, o autor constrói a teoria de que o DJ ocupa o lugar do pai da horda, mas dessa vez, disposto a compartilhar algo de seu gozo. É nisso que se baseia a rave: na possibilidade do gozo compartilhado, no qual a lei é suspensa. Jean-Michel Vives dedica a última parte do livro à importância da voz como principal vetor de trabalho do psicanalista, enfatiza o caráter único e indizível do timbre de voz de cada sujeito e como esse pode apropriar-se dele pelo processo analítico. “A voz no divã” nos leva a refletir desde duas perspectivas: a primeira abre para a grande erudição de um profissional versado no que a literatura psicanalítica escreveu sobre tal questão. A segunda, para um grande conhecimento do mundo da música. Esta é a junção que deu a Jean-Michel Vives a possibilidade de propor uma visão teórica totalmente nova, em particular a respeito das razões que fundamentam o surgimento do que nomeamos voz.

Sobre o autor

Jean-Michel Vives é psicanalista e professor de psicopatologia clínica na Universidade Côte d’Azur (Nice – France). É membro do movimento Insistance em Paris e do Corpo Freudiano – RJ (Brasil). Pesquisa sobre a dimensão pulsional da voz e a gestão social do gozo a ela associado. Aborda a questão a partir das práticas artísticas (ópera, música tecno), religiosas (música sacra, misticismo), terapêuticas (dispositivos terapêuticos que implicam o uso da música e da voz) e psicopatológicas (alucinações auditivas, relação com a voz no sujeito autista). Interessa-se pela teorização dos desafios psicológicos da prática teatral. Ministra, regularmente, cursos e conferências em universidades de Nova Iorque, Rio de Janeiro, São Paulo, Fortaleza, Toronto. Foi também colaborador artístico de Jacques Nichet no Centro Dramático Nacional de Montpellier e no Teatro Nacional de Toulouse, no qual dirigiu, de 2002 a 2005, o Atelier Voador do Centro de Formação e Pesquisa sobre Teatro Musical. Participou, como dramaturgo, de inúmeras encenações teatrais e óperas. Seus artigos foram publicados em várias línguas. No Brasil, além de A voz no divã, Jean-Michel Vives publicou os livros A voz na clínica psicanalítica (Contracapa, 2012) e Variações psicanalíticas sobre a voz e a pulsão invocante (Contracapa, 2018).