Opção cultural

A capitania de São Paulo não vivia isolada nem tampouco estava despovoada, sobrevivendo de sua economia de subsistência

A palavra do escritor quis dizer que o grande mundo dos feitos humanos é igual ao pequeno mundo dos gestos banais semeados na terra dadivosa do cotidiano rural

Diadorão das Curvinhas e Janjão das Cobras relatam que o preso Carlão das Tropas mandou matar sócio de advogado por ciúme da bela Karlinha

*Juremir Machado Da Silva

No dia 3 de abril de 1964, quando o golpe militar se deu consumado na missão de derrubar João Goulart da presidência, um homem chamado Wamba Guimarães parte de Brasília com duas malas. Era o então oficial de gabinete da Presidência da República. Wamba viajaria a até o interior de São Paulo para cumprir a última missão dada a ele quando tudo se perdeu: ser o guardião da correspondência endereçada a Jango sob a forma de cartas, telegramas, relatórios, informes, cartões de Natal, de aniversário, de Ano-novo e outras congratulações. Missão essa cumprida com fiel rigor até a ocasião de sua morte, em 2003. É Wamba o guardião da memória que menciona o título do novo livro do jornalista Juremir Machado, “A memória e o guardião” (Editora Civilização Brasileira). E são as correspondências que carregara nas malas que formam a memória sobre a qual esta obra se debruça e apresenta em uma narrativa envolvente, que visita um decisivo recorte histórico brasileiro e nos apresenta a um universo heterogêneo e vasto, apesar de íntimo.
“A Memória e o Guardião” não é simplesmente uma coleção epistolar de João Goulart enquanto presidente, pré-golpe, mas retrata uma cultura política personalista no Brasil, uma rotina que alimentava uma engrenagem burocrática, onde todas as decisões passavam pelo presidente, desde as nomeações de cargos mais básicos, do baixo escalão, aos importantes postos em estatais, ministérios e embaixadas brasileiras, trazendo à luz também nomeações distribuídas até mesmo a adversários como parte da arquitetura de uma base governista e de manutenção de aliados. Uma política clientelista também é revelada pelas correspondências, sabidamente não uma exclusividade deste governo, mas apresentadas agora por um registro literário de como ocorriam os mais variados e inusitados pedidos à figura do Presidente da República, como os pedidos por um “cavalo preto”, ou mesmo o esperançoso pedido de uma moça que gostaria que lhe custeassem uma cirurgia nos lábios.
Estão nas correspondências desde os anônimos brasileiros que pediam ajuda para completar a renda mensal, jantares com o presidente, por quem se diziam apaixonados e ávidos pela oportunidade de conhecê-lo pessoalmente até nomes como Juscelino Kubitschek e Magalhães Pinto pedindo e agradecendo a concessão de empréstimos pela Caixa Econômica para compra da casa própria a amigos e outros favores presidenciais. Dentre os notáveis, é expoente o nome da estrela de Hollywood, Janet Leigh. Em estrondoso sucesso com o filme “Psicose”, Janet esteve no Brasil e gozou do empréstimo de um avião da frota de João Goulart, escrevendo-lhe, depois, uma carta em agradecimento pela gentileza, utilizando papel timbrado do hotel Copacabana Palace, um local iconográfico também pelas celebridades que hospedava.

AO PRESIDENTE
De anônimos a celebridades internacionais, a correspondência de Jango estava recheada de variados nomes e pedidos, alguns um tanto quanto
De | Para João Goulart |
Ione Teixeira, de Belo Horizonte | Autodesignada “a louca por cavalos”, Ione apresentou a sua demanda em versos de rimas equestres: “(...) Sempre quis um cavalo / E só consigo no sonho / Por isto peço e imploro / A vós Presidente Jangolar / Para meu sonho realizar (...) Com a vossa permissão / Mais umas palavras vou dar / Para V. Excia mandar / Se não muito incômodo, Uma resposta me dar” |
Geralda, do Rio de Janeiro | A pequena Geralda, 14 anos, pedia ao presidente uma plástica nos lábios. “Eles não são lábios, mas sim beiços.” A moça dizia ter nariz chato e enviava também a figura de uma bela boca sendo pintada com um batom vermelho. Terminava com uma observação divertida: “Lembre-se que o sonho de toda moça é pintar os lábios na idade devida.” |
Auxiliadora Zuazo, de Manaus, 10/09/1962 | Auxiliadora conta a Jango que gostaria de “ser jornalista e viajar muito”. Há já uma viagem em vista, mas ela não tem recursos: “Será que o senhor não pode bancar a fada encantada para mim? Você é tão poderoso, chefe de uma nação, possui um bom coração, vamos, ajude-me, sim.” A menina enfatiza: com um sim ela poderá ser considerada “a mais feliz do globo”. Aceita ir em terceira classe. Garante que as experiências de viagem lhe servirão como assuntos para os seus romances e para a sua formação |
Juscelino Kubistchek, 4/11/1963 | J.K costumava interceder por municípios e a amigos, mirando as eleições 1965 (que nunca chegaram). Neste telegrama, agradece um empréstimo a um terceiro. “Agradeço eminente amigo autorização dada pedido Delamare de Abreu empréstimo cx Econômica São Paulo aquisição casa própria.” Delamare de Abreu ficou famoso como o segundo a usar o nome de Ranchinho, integrante da dupla sertaneja de sucesso Alvarenga & Ranchinho. Um simples favor de admirador? |
Janet Leigh, do Rio de Janeiro, 13/11/1961 | A estrela de Hollywood, famosa por ter estrelado “Psicose”, também escreveu ao presidente. Para agradecer... O empréstimo de uma avião! “Meus amigos e eu desejamos expressar nossos agradecimentos pela sua bondade conosco em Brasília. O uso do seu avião foi muito útil e estamos profundamente em dívida pela sua consideração”, escreveu Janet em um papel timbrado do Copacabana Palace, onde esteve hospedada com seu marido, o ator Tony Curts. |
*Sobre o autor
Juremir Machado Da Silva (Santana do Livramento/RS, 1962) é escritor, tradutor, jornalista e professor universitário. Graduado em história e em jornalismo pela PUCRS, fez doutorado e pós-doutorado em sociologia na Université Paris V – Sorbonne. Publicou mais de trinta livros, entre ficção, ensaio e tradução. Entre as diversas distinções recebidas constam a condecoração como Chevalier de l’Ordre des Palmes Académiques, pelo governo francês, em 2008; o Prêmio da Bienal do Livro de Brasília, em 2014, por Jango, a vida e a morte no exílio; o Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA), em 2018, por Raízes do conservadorismo no Brasil, seu primeiro livro pela Civilização Brasileira; e, em 2019, a Medalha do Mérito Farroupilha, maior distinção concedida pela Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul.

*Por Regiane Moreira



Pode-se sintetizar: lê Bernardo Élis para entender Goiás; lê Goiás para compreender o Brasil e a peleja humana aqui — e em todos os lugares
Eguimar Felício Chaveiro
Especial para o Jornal Opção
[caption id="attachment_48258" align="aligncenter" width="620"] Bernardo Élis: a leitura de sua obra (como "O Tronco") é apalpar a infinitude de Goiás como componente vivo da sociedade brasileira, é uma forma de apalpar as feridas pulsantes que latejam na estrutura de poder e social de Goiás e do país[/caption]
Contra a política do esquecimento e com o intuito de mobilizar leituras da obra literária de Bernardo Élis, o Instituto Cultural e Educacional Bernardo Élis para os povos do Cerrado (Icebe) está realizando o projeto “Colóquios primordiais sobre Bernardo Élis”. A reflexão da biografia do autor goiano, diretamente ligada ao seu estilo narrativo e aos seus propósitos estéticos e sociais, foi o toque inicial do primeiro colóquio realizado no dia 13/4/2020.
Duas perguntas eclodem no leitor do literato corumbaense: como alguém do interior de Goiás foi capaz de, nos primeiros quarteis do século 20, produzir uma obra tão consistente, merecedora de aplausos da crítica literária nacional e da intelectualidade brasileira? Pergunta-se também: o que há na narrativa bernardiana que, mesmo versando sobre o mundo do camponês goiano, sobre as peripécias históricas do sertão e sobre a estrutura do poder local, ganhou tônus universal?
Bernardo Élis, desde os seus primeiros livros, “Ermos e Gerais” (1944), “A Terra e as Carabinas” (1951), “O Tronco” (1956), ganhou destaque nacional. Profundamente tímido, com sentimento de inadequação ao mundo, observador compulsivo das cenas comuns e domésticas, ressabiado com a imagem pública de si, encontrou nos livros e na escrita o seu refúgio de vida, a sua inspiração para suportar a sua desconfiança no mundo.
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Carta de Guimarães Rosa para Bernardo Élis a respeito de "Caminhos e Descaminhos" | Foto: Reprodução[/caption]
Logo nos primeiros livros, os seus propósitos de vida se encaminharam para a sua escritura. Com valentia calada, ele próprio se incumbiu de uma missão: lançar Goiás para fora. Ou seja, universalizar a cultura goiana, o seu povo e os seus problemas. Fincado os pés no chão, a sua literatura, ainda nas primeiras obras, esculpia, no estilo, a sentença do propósito: ela era uma voz goiana do modo goiano de expressar, mas tecida com a intervenção da cultura universal.
Foi exatamente a aglutinação da fala popular aos móveis da cultura erudita que balançou, especialmente a partir da década de 1950, a estrutura do romanceiro nacional. Ao se colocar como uma novidade estilística no país, o seu realismo regional, feito de uma prosa elegante e legível, de um léxico balançado entre a verve popular e erudita, rico de imagens e de imaginação, mas sem exageros poéticos, nutrido de um esquema de valor baseado na justiça e na denúncia dos desmandos oligárquicos, chancelou a sua entrada na Academia Brasileira de Letras. E o seu prestígio como um dos maiores escritores brasileiros.
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Bernardo Élis em bico de pena de Luís Jardim[/caption]
Premiada, objeto de estudo e referendada pelos maiores intérpretes da teoria literária nacional, a sua obra se evidencia como uma das maiores fontes de leitura de Goiás. Ou seja, quem deseja conhecer as raízes de Goiás, alguns de seus episódios históricos marcantes; os seus conflitos originários, assim como a picardia, o esforço e a luta do sertanejo goiano, tem nos livros desse literato, um documento raro. Pode-se sintetizar: lê Bernardo Élis para entender Goiás; lê Goiás para compreender o Brasil e a peleja humana aqui – e em todos os lugares.
O chamamento para se ler hoje Bernardo Élis é, igualmente, um convite para que se cuide do maior patrimônio de um povo: a sua memória. Os livros de Bernardo Élis guardam a memória de Goiás e do povo goiano. As trajetórias biográficas do literato, de Corumbá, passando pela Cidade de Goiás, posteriormente Goiânia e Rio de Janeiro; a sua observação, sensibilidade e respeito pelas cenas simples do viver humano, juntando-se a uma erudição forjada com disciplina e entusiasmo no processo de leitura, fizeram com que o literato, por meio de sua imaginação criadora e de sua ficção realista, criasse uma obra inesgotável.
Como ponderou o semiólogo, linguista e escritor italiano Umberto Eco, a leitura deixa o texto infinito. Ler Bernardo Élis é apalpar, assim, a infinitude de Goiás como componente vivo da sociedade brasileira; é ao mesmo tempo uma forma de apalpar as feridas pulsantes que ainda latejam na estrutura de poder e social daqui e do país.
Como se diz, não se lê um excelente livro impunemente. Ao lê-lo, mais ou menos, algo essencial fica da leitura. E uma boa leitura faz o leitor escrever, mobilizar a sua consciência e a sua imaginação. Lê-se para compreender e para nunca morrer. É hora de pegarmos nas mãos de Bernardo Élis. Ou seja, é momento de revitalizá-lo.
Eguimar Felício Chaveiro é professor do Instituto de Estudos Socioambientais, da Universidade Federal de Goiás; membro do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás; membro do Instituto Cultural e Educacional Bernardo Élis para os povos do Cerrado.

O livro “As Vidas de Bonifácio” tem cheiro de pasquim, de imprensa marrom. Estou me sentindo decepcionado, como leitor, e logrado, como consumidor

Um par de Guimarães Rosa, o escritor cria um conto poderoso — forte na linguagem e na interpretação até antropológica das personagens

Por Paulo Stucchi*
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Por Cláudia Cobalchini*


Seus versos livres são dedicados “às pequenas coisas”, mas, ao mesmo tempo, mostram a pequenez da condição humana e evocam a natureza com imagens poderosas
Adelto Gonçalves
Especial para o Jornal Opção
“Do Ínfimo” (Penalux, 2018), de Maria João Cantinho (1963), publicado em 2016 pela Coisas de Ler, de Lisboa, vencedor do Prêmio Literário Glória de Sant’Anna de 2017 e finalista do Prêmio PEN (Poets, Essayists and Novelists) de Portugal em sua modalidade em 2017, é o primeiro livro de poesia da autora lançado no Brasil, mas, desde já, constitui um motivo extremamente forte para que a sua atual editora e outras venham a publicar toda a sua obra, que inclui mais três livros de poesia, quatro de ficção e um de ensaios.
Obra ligeira de 71 páginas, Do Ínfimo traz, na primeira parte, 24 poemas, reservando na segunda parte, intitulada “Caligrafia da Solidão”, uma prosa poética de 17 páginas, que, publicada em 2005 pela Escrituras Editora, de São Paulo, foi finalista do Prêmio Telecom de 2006. O texto traz dedicatória ao poeta paraense Vicente Franz Cecim (1946), o “mago de Andara”, conhecido tanto no Brasil como em Portugal pela força poética de uma escritura que escapa à classificação em gêneros literários e, não raro, é uma homenagem ao grande e estranho mundo da Amazônia. Basta isso para dizer que a prosa poética de Maria João é igualmente de difícil leitura e apreensão, o que, porém, não constitui obstáculo para que seja usufruída pelo leitor de bom gosto. E que pode ser lida como uma “carta de amor ao poeta”, como já observou a jovem crítica literária Danielle Magalhães (1990), poeta e doutoranda em Letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em recensão que fez do livro.
O texto, como já percebeu o escritor, pesquisador e crítico literário Krishnamurti Góes dos Anjos (1960) em resenha que escreveu para este livro, é um eco ampliado do pensamento do filósofo, ensaísta, tradutor e sociólogo judeu alemão Walter Benjamin (1892-1940), que, aliás, foi tema de tese de mestrado da autora, intitulada “O Anjo Melancólico: Ensaio sobre o Conceito de Alegoria na obra de Walter Benjamin”, que recebeu o Prêmio de Apoio à Edição de Ensaio de 2002 da Direção-Geral do Livro e das Bibliotecas, do Ministério da Cultura português.
Trata-se de um texto-metáfora com ressonâncias afetivas, um stream of consciousness (fluxo de consciência), técnica literária usada primeiramente pelo poeta francês Édouard Dujardin (1861-1949). Procura captar o ambiente da Amazônia, especialmente de Belém do Pará, região brasileira que a autora conheceu de perto, além do Rio de Janeiro, como já disse em entrevista. Não é, porém, um texto ditado apenas pela emoção ou por lembranças, que se destaca por sua qualidade lírica, pois se distingue também pelo rigor estilístico e pelo apuro técnico. Sem contar que, inspirado pela visão de mundo de Benjamin, um marxista, nada traz da pomposidade católica ou da esperança evangélica. Nele são raras as apologias religiosas, que são substituídas por referências a filósofos, ainda que seus nomes não sejam explicitamente lembrados, mostrando que a poeta pende mais para a incredulidade e para a descrença. Como exemplo disso, leia-se a parte final de sua prosa poética:
(...) Depois, veio a chuva e a Terra inundou-se de uma água que era o Tempo, possuída de vozes do passado que percorriam a floresta. E aquele que, dormindo, via tudo em sonhos, chorou por dentro do sono, onde nada o alcançava. Porque luminescera a Letra, fundira o espírito e a carne na Leveza de si mesmo. Reescrevera o homem na mais perfeita Caligrafia da Solidão. E da sua urgência saía agora o pássaro leve, capaz de levar a boa nova aos homens, cujos olhos apenas viam a devastação. O pássaro alimentava-se da sua carne, do seu sangue, libertando-o de si, do sonho. (p. 71).
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Maria João Cantinho, poeta e crítica literária portuguesa | Foto: Reprodução[/caption]
Dos 24 poemas que compõem a primeira parte, há pelo menos dois que são explicitamente inspirados na meninice da autora, pois fazem referência à terra de seu pai, Angola, onde ela viveu a infância, tendo retornado a Portugal em 1975, com a guerra civil que, depois da independência do país em novembro daquele ano, continuou até 2002, envolvendo a luta pelo poder entre dois antigos movimentos políticos, o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e a União Nacional para a Independência Total de Angola (Unita). Um desses poemas é “Há um país antigo que se abriga em mim”, que evoca a época em que Angola ainda era uma colônia portuguesa. Leia-se o poema:
Há um país antigo que se abriga em mim/ um país de que não me lembro/ senão de mim menina, uma língua/ de sol e água que se cola à minha pele,/ obstinadamente quer ser tempo em mim,/ quer ser boca, procura a abertura,/ escorre entre as fendas da memória,/ como um pássaro de asas partidas./ Há um país antigo que se abriga em mim/ e eu procuro a voz do vento que o cante,/ nessa harpa fria que é memória minha. (p. 27).
Essa evocação continua em “Um rio, um nome” em que a poeta volta a evocar o vento, as árvores e as águas limpas de um rio daquele pedaço de África, a terra de seu pai, ao tempo em que ela, menina, ainda “não nadara no múltiplo leito de Heráclito” (500a.C-450a.C), o filósofo socrático, considerado o pai da dialética”, cujo pensamento só conheceria a fundo a partir de seus estudos para a tese de doutoramento em Filosofia Contemporânea que defenderia na Universidade Nova de Lisboa. Eis o poema:
(...) Na terra do meu pai havia laranjas/ e chão, havia sol e murmúrios/ e nós ouvíamos a respiração da noite/ por dentro das raízes das árvores/ e o rio falava com as pedras/ e com a luz/ e nós corríamos/ ou éramos levados pelo vento/ que acendia a folhagem./ Na terra de meu pai não havia medo/ só um rio e as águas limpas/ onde as mulheres lavavam a roupa/ e cantavam ao som da terra./ Na terra do meu pai corria um rio/ e os homens tinham lugar/ era um rio por coração/ era um nome/ para um homem. (pp. 28-29).
O que se pode acrescentar ainda de seus versos livres é que são dedicados “às pequenas coisas”, mas, ao mesmo tempo, mostram a pequenez da condição humana e evocam a natureza com imagens poderosas. É o que se pode constatar no poema que dá título ao livro:
Não sei senão do ínfimo/ e do murmúrio das pequenas coisas,/ as que não chegam à palavra/ como a sombra ou o vento desenhando-se sob os álamos,/ em quieta reverberação./ E nada sei, senão desse canto/ invisível, mais sonho que metáfora,/ do tempo que é no fruto/ ou do que sabe ser sol, sem alarde/ do breve e da passagem./ E nada sei dessa grandiloquência/ dos homens, das suas promessas/ e dos gestos que traem o coração,/ dessa palavra ou excesso que mata/ a perfeição circular do instante./ Se é vida, sangue ou oiro,/ nada sei, nada de nada/ escondido que ele é/ no ínfimo e na sombra. Oculto. (p.17).
Como já observou com percuciência o escritor português António Cabrita (1959), residente em Maputo, nos poemas de Maria João Cantinho, “a ênfase não está no brilho (as imagens fulgurantes) mas antes na justeza das palavras”. Para Cabrita, são versos que testemunham um desencontro com as idealidades, disfóricos, versos de onde se parte ou nos quais se vinca que algo se perdeu e que quando encenam um retorno recortam um céu plúmbeo em fundo. “Contudo, a tristeza que neles se plasma foge de consolidar-se como a abstração de um saber, ou da congelação melancólica. Daí que surjam laivos de revolta e vários poemas reclamem um certo cariz social”. Melhor definição não seria possível.
Nascida em Lisboa, Maria João Cantinho é professora, poeta, crítica literária e ensaísta. É investigadora do Centro de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e colaboradora do Collège d'Études Juives da Universidade da Sorbonne IV, de Paris. Foi professora do ensino secundário e atuou no Creative University of Lisbon (Iade) entre 2011 e 2016. É colaboradora da Revista Colóquio-Letras, da Fundação Calouste Gulbenkian, de Lisboa, e de diversas revistas literárias e acadêmicas, além de membro do Conselho Editorial do Caderno do Grupo de Estudos Walter Benjamin. É também editora da Revista Caliban.
Foi professora-visitante no Brasil em 2013 (Brasília, Goiânia e Rio de Janeiro), tendo feito conferências também na França, Inglaterra, Alemanha, Espanha e Índia. Tem igualmente organizado vários congressos, consagrados ao pensamento de María Zambrano (1904-1991), em 2006, Walter Benjamin, em 2008, Emmanuel Levinas (1906-1955), em 2009, e Paul Celan (1920-1970), em 2012.
Está representada em várias antologias publicadas no Brasil, Espanha, França e México. É ainda curadora da Coleção Trás-os-Mares, que edita autores portugueses no Brasil, pela Editora Circuito, com o escritor e editor Renato Rezende. É igualmente curadora da Colecção MU-Continente Perdido, da Editora Exclamação, do Porto.
Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de “Gonzaga, um Poeta do Iluminismo”, “Bocage — O Perfil Perdido” e “O Reino, a Colônia e o Poder — O Governo Lorena na Capitania de São Paulo 1788-1797”.

A sobriedade reina no manejo das emoções — de modo que o medo e as agruras são expressos sem serem aprisionados em fórmulas reducionistas
Ricardo Silva
Especial para o Jornal Opção
Nunca falei com Ana, mas nessas paragens virtuais é muito fácil criar um simulacro de intimidade. Por isso acredito que não seja tão inoportuno usar a palavra “conheci” ao me referir à jovem poeta paranaense, já que ocorreu no espaço das redes sociais o primeiro contato entre nós. Na milimétrica restrição dos poucos caracteres, Ana tinha o traquejo certo de aliar concisão com boa pontaria. Sempre publicava algo certeiro.
Leitor com certa caminhada, percebi ali o germe de uma criação maior. Não me enganei. Não demorou muito tempo para que eu lesse eventuais poemas surgindo aqui e acolá, então os primeiros livros — “Relógio de Pulso” (2011) e “Não Conheço Ninguém Que Não Seja Artista” (2015) —, e as aparições em antologias. Mas não nunca falei com Ana. Me fiz apenas de crítico exercendo o papel de observador à distância de um talento patente, que valia a pena acompanhar a evolução. “Preocupações”, terceiro título da poeta e publicado pela editora Macondo em 2019, é a confirmação plena dessa ascensão.
Ao leitor que espera floreios, belezas lisas, muitas cores e poemas edificantes, não encontrará cá neste trabalho de Guadalupe quaisquer desses elementos. O que impera nos poemas é a generosa resignação consciente de sua própria condição.
Existe um certo ambiente fixo de melancolia e tristeza que costura a trama dos versos e alinha os poemas numa exposição límpida dessa condição solitária do existir: a eterna transitoriedade do nomadismo urbano, os amores que não acontecem, os que acontecem mas não criam raízes, o contato que precisa ser cortado, o funeral de si onde quase ninguém vai, o primeiro encontro onde o papel do beijo foi exercido pela terceira pessoa da trindade, os afastamentos e aproximações, as oscilações da felicidade, que se torna refém da ansiedade do espaço vazio e das caixas de mudança que nunca são desfeitas.
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Ana Guadalupe, poeta paranaense: no seu mais recente livro, “Preocupações”, demonstra sua profunda capacidade da observação poética da vida | Foto: Facebook[/caption]
A constante mudança de tudo, talvez seja essa uma das linhas responsáveis pelo emaranhado coeso da poesia de Guadalupe. A poeta não se ocupa com o excesso, os versos têm suas próprias formas de filtrar apenas o essencial e nos expor somente o necessário. É a sobriedade que norteia o quadro inteiro de “Preocupações”.
O título da obra também cumpre o papel de revelação quando nos debruçamos a analisar o livro. São diversas as preocupações da poeta: expor o que sente (“minha dor eu preciso/apresentar ao público/antes que desapareça”); com o dinheiro curto (“por quanto tempo/ terei dinheiro para viver nesta cidade/ antes que pese demais o medo/ e o medo me roube a energia?”); com a insuficiência das palavras (“a palavra não basta/ a palavra não dá nada em troca/ por isso vivemos preocupados”).
A preocupação dá o tom, mas nunca explícito, porque sutil. A sutileza estrutura-se como um caminho oportuno de seguir na tentativa de encontrar algumas chaves de leitura do livro, mas lhe alcançar é uma luta vã: a efemeridade na abordagem de Ana Guadalupe se apresenta em poemas cuja porosidade não é de simples captura. Nisso também repousa a beleza de “Preocupações”.
Se existe um resignado pessimismo (“às vezes dá na mesma/ viver antes ou agora”), o humor silencioso, sem a necessidade de sinalização (“que alegria/ bater os dentes/ no seu carinho que cresce”), também encontra no livro sua guarida.
Até mesmo um involuntário diálogo com nossos tempos de pandemia ecoa no ingenuamente profético “não haverá passeio” (“hoje não me convidaram para nenhum passeio/ nem amanhã/ nem amanhã”).
Na poética de Guadalupe a sobriedade reina ao conseguir manejar as emoções de forma que o medo — da vida, dos amores, do quarto escuro, da proximidade da infelicidade —, a paranoia, o desgaste da vida social, e as agruras dos gritos introspectivos possam ser expressos sem que sejam esgotados ou aprisionados em fórmulas reducionistas.
Termina-se “Preocupações” sem muitas esperanças para dias de luzes e sem saber “o que vai enfim destruir a dureza”, mas há uma certeza: Ana Guadalupe se sedimenta como uma das mais interessantes vozes da nova poesia brasileira.

Após corte no financiamento das ciências básicas e humanas, filósofo responde a pergunta: Para que serve a filosofia? Por que financiamos humanidades?

Tsunami de más notícias sobre novo coronavírus favoreceu entusiamo dos brasileiros com BBB20, que parece ser a única alternativa de amplo acesso

Obra "A Voz no Divã" de Jean-Michel Vives, autor vencedor do prêmio ŒDIPUS na FRANÇA, é lançada no Brasil
Em "A voz no divã, uma leitura psicanalítica sobre ópera, música sacra e eletrônica", o autor e psicanalista Jean-Michel Vives desenvolve sua tese sobre a voz enquanto objeto primordial do sujeito, antes mesmo do seio materno - como a psicanálise tem defendido até agora. Com coerência clínica e clareza conceitual, Vives analisa os três tipos musicais, de forma audaciosa. Entrelaça esse universo às questões psicanalíticas para demonstrar como os temas desenvolvidos despertam afetos específicos no ouvinte, do mais puro prazer ao horror desmedido.
Publicado em parceria pelas Editoras Aller e 106, o livro busca entender como os sons que tocam, envolvem e ressoam no corpo do sujeito permitem que se produza paisagens e presenças. Vives afirma ainda a necessidade do ponto surdo para que o sujeito possa fazer-se voz.
Com a música sacra, o professor de psicopatologia clínica na Universidade Côte d’Azur (Nice – France) demonstra, usando a figura dos castrati, o quanto uma voz pode ser instrumento daquilo que alcança o além da imposição da Lei. E o quanto isso, para o ouvinte, pode ser extremamente prazeroso.
Já em um segundo momento, Vives destrincha várias óperas e o papel que a diva ocupa em cada uma. Ao mesmo tempo em que analisa o que há de tão encantador nessa voz que alcança notas sublimes, questiona por que a falha da protagonista é tão odiosa para os ouvintes. Nesse ponto, também retoma o grito das sereias, enquanto sedutor e mortífero.
Ao tratar dos tempos contemporâneos para falar da música eletrônica, por sua vez, o autor constrói a teoria de que o DJ ocupa o lugar do pai da horda, mas dessa vez, disposto a compartilhar algo de seu gozo. É nisso que se baseia a rave: na possibilidade do gozo compartilhado, no qual a lei é suspensa.
Jean-Michel Vives dedica a última parte do livro à importância da voz como principal vetor de trabalho do psicanalista, enfatiza o caráter único e indizível do timbre de voz de cada sujeito e como esse pode apropriar-se dele pelo processo analítico.
“A voz no divã” nos leva a refletir desde duas perspectivas: a primeira abre para a grande erudição de um profissional versado no que a literatura psicanalítica escreveu sobre tal questão. A segunda, para um grande conhecimento do mundo da música. Esta é a junção que deu a Jean-Michel Vives a possibilidade de propor uma visão teórica totalmente nova, em particular a respeito das razões que fundamentam o surgimento do que nomeamos voz.
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