Livro “O Reino, a Colônia e o Poder”, de Adelto Gonçalves, é um marco na história de São Paulo
26 abril 2020 às 00h00
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A capitania de São Paulo não vivia isolada nem tampouco estava despovoada, sobrevivendo de sua economia de subsistência
Nireu Cavalcanti
Especial para o Jornal Opção
“O Reino, a Colônia e o Poder: O Governo Lorena Capitania de São Paulo — 1788-1797”, recente livro de Adelto Gonçalves — editado em 2019, pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo —, já nasceu como importante marco da historiografia colonial brasileira e, especialmente, da paulista.
Adelto Gonçalves, como bom paulista e bandeirante intelectual, fincou seu marco de puro cristalino no território histórico colonial de São Paulo. O autor exibe sua peculiar habilidade de escrever com clareza um texto profundamente rico de conteúdo, baseado em vasta pesquisa documental e de leitura de textos consagrados de outros autores que trataram do tema desse livro.
O historiador britânico Kenneth Maxwell na sua apresentação desse livro do Adelto escreveu: “Esta obra é, em sua totalidade, não só uma rica análise do governo de Bernardo de Lorena, mas um estudo que abre muitas linhas de investigação, formula muitos problemas novos, o que deveria ser a tarefa de todo bom historiador. Para a história de São Paulo no século XVIII tardio, não há guia melhor”.
Concordo plenamente com Kenneth Maxwell e acrescento novas qualidades do texto e de sua importância para os leitores e demais pesquisadores.
Divulgação dos variados arquivos consultados por Adelto Gonçalves aqui revelados, como os de São Paulo, pouco utilizados por historiadores que tratam de outros territórios brasileiros: Arquivo do Estado de São Paulo (AESP), os Anais do Museu Paulista (AMP), Atas da Câmara de São Paulo (ATCSP), documentos interessantes para a história e costumes de São Paulo (DI) e o Registro Geral da Câmara de São Paulo (RGCSP). Além dos arquivos conhecidos do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, os portugueses: Torre do Tombo (ANTT), Biblioteca Nacional de Lisboa (BNP), Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) e a Academia das Ciências de Lisboa (ACL).
O texto de Adelto Gonçalves vai fluindo com a indicação da fonte, elemento de suma importância para o leitor, ao constatar sua habilidade em usar o conteúdo do documento e extrair dele elementos construtivos de sua narrativa. Esse seu método de vincular documento-texto é um traço marcante do autor e deve orientar seu leitor e pesquisador a usá-lo em seus futuros trabalhos.
Outro destaque desse livro é conter a visão ampla do autor sobre o fato histórico. Adelto Gonçalves nos traz a visão do historiador; do escritor cronista e romancista que é; da geografia histórica; da literatura e do rigor cronológico do fato, no espaço-tempo da complexidade do fato narrado.
Adelto Gonçalves contextualiza o fato histórico em suas relações econômicas, sociais, espaciais e políticas, sem se restringir às análises históricas das superestruturas, trazendo em sua narrativa os seres humanos envolvidos, com hábil literalidade, como a descrição da viagem para Cuiabá do governador de São Paulo Rodrigo Cesar de Menezes (1721-1727), pp.59-61. A expedição saiu em 1726, do porto de “Araritaguaba, às margens do Rio Tietê” com 305 canoas carregando negros, índios e paulistas num total de “3 mil homens, inclusive muitos indígenas — os únicos que sabiam “atravessar o sertão e navegar através dos rios cheios de cachoeiras”. Preciosas informações colhidas pelo autor, de documento do AHU, referente a São Paulo (caixa 7, doc. 750, ant. 26/10/1725).
Segundo sua narrativa, a expedição chegou a Cuiabá em 15 de novembro de 1726, mas o governador César de Menezes só elevou o “arraial mineiro de Bom Jesus de Cuiabá à categoria de vila” em 1º de janeiro de 1727. No ato, o governador instalou a Câmara, “reunindo oito vereadores — seis paulistas e dois reinóis casados com paulistas”. Considero que esse cuidado de nomear paulistas para a maioria da Câmara é o reflexo do trauma da Guerra dos Emboabas. Para o final da descrição do ato do governador, Adelto usou a obra de Charles R. Boxer, A idade de ouro do Brasil: dores de crescimento de uma sociedade colonial, 2000, p.274. Essa capacidade do autor de buscar fontes diversas para construir sua narrativa é um dos pontos altos do livro.
Adelto Gonçalves dividiu sua expressiva e marcante obra em duas partes, que se conectam e, ao mesmo tempo, são autônomas. A primeira (pp. 21 a 181) trata do estudo histórico da formação da capitania e da sociedade paulista, anterior à chegada e posse do personagem principal do livro: d. Bernardo José Maria da Silveira e Lorena, conde de Sarzedas (1788-1797).
A segunda parte, nas páginas 187 a 327, faz o estudo detalhado do personagem Lorena, sua origem familiar, formação intelectual e a exemplar governança da capitania de São Paulo. O autor esmiúça as relações políticas, administrativas, as redes formadas pela elite administrativa-política e econômica, local, na obtenção de poder e fortunas. Relata os interesses econômicos e políticos de Lorena — sociedade com o riquíssimo negociante e capitalista de Lisboa Jacinto Fernandes Bandeira, concedendo-lhe vários privilégios na capitania de São Paulo ─, destacando sua positiva forma de governança de muitas obras públicas, de organização administrativa e política da capitania e a equidade com que tratou os súditos da colônia.
O governo de Lorena foi um marco divisor aprovado pelos paulistas, ao ponto de os vereadores da cidade de São Paulo solicitarem o privilégio de postarem o seu retrato na sala principal da Câmara municipal (p. 307). “Para empreender tal iniciativa, os oficiais da Câmara pediram licença à rainha, lembrando que a concessão já havia sido feita à Câmara do Rio de Janeiro”, para homenagear o governador Gomes Freire de Andrade, conde de Bobadela (1733-1763).
Em sua petição, os camaristas de São Paulo justificaram a homenagem por ser “um fidalgo que tem sido o pai dos paulistas” (nota 391: AHU Conselho Ultramarino, São Paulo, caixa 41, doc. 3357, 6/3/1793). Nesse mesmo Arquivo Histórico Ultramarino, localizei o pedido dos vereadores do Rio de Janeiro, quando obtiveram permissão dessa homenagem a Gomes Freire. Era proibido que as autoridades da colônia brasileira tivessem representação de sua imagem em lugares públicos.
A pesquisa documental e bibliográfica feita por Adelto Gonçalves para escrever esse livro reflete-se na expressiva quantidade de notas: mais de mil referências. Haja fôlego!
Com autoridade de seu profundo saber histórico, conclui sua obra afirmando: “Ao contrário do que a historiografia tradicional sempre defendeu, a capitania de São Paulo não vivia isolada nem tampouco estava despovoada, sobrevivendo de sua economia de subsistência, à época da chegada do governador Luís Antônio de Souza Botelho, o morgado de Mateus, em 1765, quando deixou de ficar adjudicada à capitania do Rio de Janeiro” (p. 359).
Recomendo a leitura do livro “O Reino, a Colônia e o Poder: O Governo Lorena na Capitania de São Paulo — 1788-1797”, pela sua densidade, nível de informação e por ser um veículo de orientação de como devemos pesquisar e elaborar um texto científico, de leitura agradável e envolvente.
Nireu Cavalcanti, arquiteto formado em 1969 pela Faculdade Nacional de Arquitetura da Universidade do Brasil, é doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É professor de pós-graduação da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (UFF), da qual foi seu diretor de 2003 a 2007. É autor de “O Rio de Janeiro Setecentista — A Vida e a Construção da Cidade da Invasão Francesa Até a Chegada da Corte” (Zahar), seu trabalho de doutorado; “Histórias e Conflitos no Rio de Janeiro Colonial — Da Carta de Caminha ao Contrabando de Camisinha — 1500-1807” (Civilização Brasileira; “Arquitetos e Engenheiros — Sonho de Entidade Desde 1978” (Crea-RJ); “Crônicas Históricas do Rio Colonial” (Civilização Brasileira/Faperj), e “Tesouro — O Palácio da Fazenda, da Era Vargas aos 450 Anos do Rio de Janeiro” (Pébola Casa Editorial, em coautoria com Helio Brasil).