O camponês cheio de mundo na obra de Bernardo Élis
26 abril 2020 às 00h00
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A palavra do escritor quis dizer que o grande mundo dos feitos humanos é igual ao pequeno mundo dos gestos banais semeados na terra dadivosa do cotidiano rural
Ricardo Junior de Assis Fernandes Gonçalves
Especial para o Jornal Opção
“Entendo que escrever é a minha janela para o mundo, a minha maneira de participar da vida geral. Não consigo fazer do ato de escrever uma distração ou um passatempo. É um trabalho, é um exercício de conhecer as pessoas, as coisas, as situações, o mundo”. (“A Vida São as Sobras” — Bernardo Élis).
No dia 13 de abril de 2020 ocorreu o primeiro Colóquio virtual do projeto “Colóquios Primordiais sobre Bernardo Élis”, promovido pelo Instituto Cultural e Educacional Bernardo Élis (Icebe). As discussões apresentadas demonstraram que a obra de Bernardo Élis é referência de leitura e de interpretação da formação econômica, social e espacial de Goiás.
A partir dos rudimentos da realidade regional, a obra de Bernardo Élis contém narrativas ficcionais que usufruíram da organização do espaço agrário goiano e fez dele uma fonte primordial de imagens, enredos e situações literárias. Ainda, tal como foi a vida do escritor colombiano Gabriel García Márquez¹, Bernardo Élis “viveu para contar”.
A palavra de Bernardo Élis, de tino consistente diante das injustiças sociais, quis dizer também que o grande mundo dos feitos humanos é igual ao pequeno mundo dos gestos banais semeados na terra dadivosa do cotidiano rural. Assim procedendo, a obra do escritor goiano sublinha um preceito educativo e estético: é papel da palavra vasculhar a realidade socioespacial, dizer como os sujeitos vivem, trabalham, moram e lutam.
Com efeito, no presente texto exploramos a relação entre a obra bernardiana e o espaço agrário goiano. Sublinhamos que em Bernardo Élis o camponês e seu mundo são narrados com requinte estético e engajamento social.
Assim, antes de adentrar no conteúdo a que o título remete, partimos do seguinte pressuposto: o interior do Brasil, o sertão goiano, o Planalto Central, ou o que depois do final do século 19 e início do século 20, aprendeu-se a denominar de mundo do Cerrado, possui uma escala de representações específica em estudos sobre a formação econômica, social e cultural do Brasil. Representações que inferiorizaram essa parte gigantesca do país. O sertão foi inferiorizado. O interior foi inferiorizado. O sertanejo foi inferiorizado. E, em resumo, o camponês foi inferiorizado.
Por outro lado, tínhamos, especialmente até meados do século 20, um país armado pelo litoral, especialmente com a proeminência sudestecêntrica e a luminosidade polarizada no Rio de Janeiro e São Paulo. O fato é que se o sertão foi inferiorizado, o pensamento social brasileiro o predicou de maneira inferiorizada. Lugar isolado. Região inóspita. Lugar das léguas vazias, onde a civilização e a justiça passavam ao largo. Um vasto território no qual arvoravam as cores turvas da privação, do medo, da escassez, do vazio, da corrupção e do atraso.
Por consequência, o camponês goiano, noção que, por volta dos anos 1940, agrupou os trabalhadores rurais no contraponto à dominação latifundiária, era tratado como caricatura da decadência. Um sujeito sem importância social. Um retrato jocoso do atraso, perceptível no modo de comer, no modo de falar, nas pequenas roças de toco, nas águas sem tratamento, nas doenças, no analfabetismo e na moradia de casa pau-a-pique. Pintou-se uma representação destratante do camponês e de seu mundo material e simbólico.
Diante disso, podemos interrogar: quais fontes, senão a literatura, para esmiuçarem e deixarem registros tão primorosos e profundos desse universo geográfico e humano incógnito ou negativado pela história oficial hegemônica?
Logo, temos o primor da literatura produzida em Goiás por escritores como Hugo de Carvalho Ramos, Cora Coralina, Carmo Bernardes, Bernardo Élis, Bariani Ortencio e outros. As narrativas desses escritores são guardiãs e testemunhos das realidades sociais e simbólicas específicas do universo regional goiano. Mas, universais ao pronunciar as tragédias, sonhos, desejos, estruturas de classes e dramas humanos.
Camponês como portador de um mundo respeitável
Na obra de Bernardo Élis, contos como “A enxada”², “A moagem”³, “Sua alma, sua palma”⁴, “O arrendo”⁵; ou livros inteiros como “A Terra e as Carabinas”⁶ e “O Tronco” apresentam o camponês como portador de um mundo respeitável, digno. Belo de alguma maneira. Também inteligente, com picardia, solidariedade e esperança. Todavia, injustiçado pela distribuição desigual de terras, pelo analfabetismo, pelas práticas de arrendo e meiagem que marcaram o que Borges (2016) chamou de “fazenda roça-goiana”⁸.
Ao longo da vida, Bernardo Élis presenciou transformações socioespaciais em Goiás resultantes de políticas como a Marcha para o Oeste, de Getúlio Vargas, que contribuiu com a construção da nova capital de Goiás, Goiânia, nos anos 1930, e a criação da Colônia Agrícola Nacional de Goiás (CANG) em 1941; foi contemporâneo da transferência da capital federal do Rio de Janeiro para Brasília e das políticas de modernização do campo. Essas mudanças implicaram na organização dos espaços rural e urbano, na expansão de redes de energia, rodovias e crescimento de cidades. Todavia, a população pobre do campo foi mantida desamparada de políticas como a reforma agrária.
Dessa maneira, ao explorar amiúde, no rés do chão, o mundo rural goiano, percebemos que a gravidade da narrativa bernardiana, ao colocar na ponta da caneta o camponês, ou o mundo do camponês, trilhou dois caminhos: o caminho da sua cultura, da cultura rural goiana; e outro da exploração sofrida pelas práticas do coronelato e latifundiários mandões de terra. A exploração em meio ao desamparo social dos pobres da terra.
Ao percorrer o caminho da cultura, Bernardo Élis “fez de sua obra um testemunho do sertão e do sertanejo com suas festas, crendices, seus ditados, sua conduta moral”⁹. Um ambiente sublinhado pela presença de assombrações, capetas, almas penadas, isolamento rural e sensações de medo. Ermos indômitos e envoltos em crenças e misticismo.
As crenças, benzeções, dias santos e rezas que povoavam o sertão goiano e o imaginário do sertanejo são explícitos na descrição do personagem Liduvino e sua sabedoria popular, no conto “Veranico de Janeiro”. “Êle era carapina de profissão, mas também defunteiro e tocador de rabeca. O instrumento êle mesmo que fabricava, tirando o cedro na minguante de novembro, não vê que esse mês é o da devoção de Santa Cecília, protetora dos músicos! Arriba de tudo, e por isso que ficou por derradeiro na apresentação, era o rezador mais famanaz de toda a região. Benzeção de cobra, quebrante, ar virado, urucubaca de qualquer espécie, isso era com êle e com mais ninguém. Quando tinha gente em artigo de morte, vinham chamá-lo por ser hábil em ajudar cristão a morrer. Ah, o Liduvino era célebre!”¹⁰.
No conto “Rosa”, constatamos rudimentos do cotidiano do trabalho, da alimentação e da vida que palpitavam o dilatado sertão goiano. “Rosa se foi ficando para lavar uma roupa, rachar lenha, pilar arroz, socar paçoca, capinar quintal, torrar e socar café, fazer sabão, buscar água na bica. Cozinhar ela bem que principiou, mas Dona Rita desistiu. Não havia ninguém que aguentasse engolir seu feijão dessorado, seu arroz grudado na panela, sua mandioca cozida com casca e tudo, suas carnes mal refogadas, geralmente destemperadas, pois onde ela nasceu e se criou o sal era muito vasqueiro e carecia de estar não gastando sempre”¹¹.
Ao palmilhar o caminho da exploração, percebemos que Bernardo Élis vasculhou as “situações e práticas próprias do mundo rural. O arrendo, a meia, o barração, o aprisionamento por dívidas, as violências, a subserviência das forças policiais aos coronéis, a corrupção das autoridades, a incipiente organização camponesa”¹².
Quem não se perturba com o fim trágico de Piano, personagem do conto “A enxada”? É assombroso o momento em que os soldados, a serviço do capitão Elpídio, encontram Piano intrépido e desesperado, possuído por arroubos de medo e de loucura, lançando no solo o punho das mãos dilaceradas e com os ossos expostos. Enquanto o sangue das mãos escorria viscoso e irrigava o solo com o sacrifício de Piano, os soldados desafogaram contra o roceiro a fúria e a violência. “Aí o soldado abriu a túnica, tirou de debaixo um bentinho sujo de baeta vermelha, beijou, fez pelo-sinal, manobrou o fuzil, levou o bruto à cara do camarada […] o baque do tiro sacudiu o frio da manh㔹³.
O mundo de exploração, de violência e de opressão, recrudescido no cotidiano de camponeses, agregados, sem terras e sem trabalho digno, desperta indignação e perturba o leitor de “A moagem”, primeiro capítulo da novela “A terra e as Carabinas”. Na narrativa, Totinha é descrito como um agregado que morava no paiol da fazenda e trabalhava para pagar as dívidas que nunca eram quitadas. “Totinha devia a Jeromão duzentos mil réis. Não conseguia pagar nunca essa quantia que agora já subia a quase trezentos, com os juros e abatimentos. Fazia dois anos que estava ali sem ver um níquel sequer, só trabalhando para pagar os gastos”¹⁴. Mesmo quando tentou fugir das humilhações que pesavam sobre ele, “Jeromão deu parte a polícia e dois soldados o trouxeram de volta para o Retiro, como um negro fujão”¹⁵. Submetido ao trabalho alienado e sofrido, Totinha é o desenho da exploração desonrosa do trabalhador. Foi no trabalho de moagem de cana, pressionado pelos gritos de “Jeromão feito capeta”, que Totinha, feito objeto, feito bagaço de cana, teve a mão esbagaçada nas moendas do engenho. “O diabo do engenho lhe mascara até o punho, deixando dependurada uma pasta sangrenta”¹⁶.
Percebe-se, então, que a obra de Bernardo Élis é depositária da realidade humana e espacial do camponês e seu mundo. Concordamos com Pauliane Braga, em seu livro “Entre Sertões”, ao dizer que “a literatura produzida por Bernardo Élis disse do camponês, e não só de seu contexto de exploração, mas de sua conformação íntima, seus medos, suas angústias e seus desejos; e de sua psicologia, com suas concepções de mundo, seu entendimento de Deus, seu temos do imponderável”¹⁷.
No momento em que Bernardo Élis ressalta o mundo do camponês, o seu sentido político não se faz ao modo de um engajamento vulgar; o faz pelo caminho da literatura comprometida. “Minha literatura procurava sublinhar a humanidade do homem sem terra, mostrando a injustiça do latifúndio e da opressão feudal, responsável pelo atraso e pelos males sociais de que éramos vítimas”¹⁸. Ou seja, a sua ficção, embora com imagens realistas e de um realismo fundado numa região, tem um brado criativo e universalista, como disse Tristão de Athayde no texto “Regionalismo universalista”¹⁹.
Finalmente, destaca-se que a sensibilidade política de Bernardo Élis se uniu ao seu senso de justiça, e isso gravitou no conteúdo de sua narrativa. Uma narrativa que tornou o camponês um sujeito cheio de mundo e cuja matéria da vida foi descoberta como fonte infinita para se contar estórias.
Ricardo Junior de Assis Fernandes Gonçalves é doutor em Geografia. Professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG). Membro Titular, Cadeira 37, do Instituto Cultural e Educacional Bernardo Élis para os Povos do Cerrado (Icebe).
Notas
¹ MÁRQUEZ, Gabriel García. Viver para contar. Tradução de Eric Nepomuceno. 3.ed. Rio de Janeiro: Record, 2003.
² A enxada. In: ÉLIS, Bernardo. Veranico de janeiro. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1966. pp.45-80.
³ A moagem. In: ÉLIS, Bernardo. A terra e as carabinas. Goiânia: R&F Editora, 2005. pp.11-18.
⁴ Sua alma, sua palma. In: ÉLIS, Bernardo. André louco. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1978. pp.65-90.
⁵ O arrendo. In: In: ÉLIS, Bernardo. Onde canta a seriema. Goiânia: R&F Editora, 2005. pp.41-54.
⁶ ÉLIS, Bernardo. A terra e as carabinas. Goiânia: R&F Editora, 2005.
⁷ ÉLIS, Bernardo. O tronco. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1974.
⁸ BORGES, Júlio César Pereira. Fazenda-roça goiana: matriz espacial do sertanejo e do território goiano. 213f. Tese (Doutorado em Geografia), Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Goiás, 2016.
⁹ BRAGA, Pauliane de Carvalho. Entre sertões: comunismo e campesinato na obra de Bernardo Élis. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2019. p.86.
¹⁰ Veranico de Janeiro. In: ÉLIS, Bernardo. Veranico de janeiro. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1966. pp.6-7.
¹¹ Rosa. In: ÉLIS, Bernardo. Veranico de janeiro. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1966. p.87.
¹² BRAGA, Pauliane de Carvalho. Entre sertões: comunismo e campesinato na obra de Bernardo Élis. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2019. p.92.
¹³ A enxada. In: ÉLIS, Bernardo. Veranico de janeiro. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1966. p.75.
¹⁴ A moagem. In: ÉLIS, Bernardo. A terra e as carabinas. Goiânia: R&F Editora, 2005. p.12.
¹⁵ Ibidem. p.12.
¹⁶ Ibidem. p.18.
¹⁷ BRAGA, Pauliane de Carvalho. Entre sertões: comunismo e campesinato na obra de Bernardo Élis. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2019. p.110.
¹⁸ ÉLIS, Bernardo. A vida são as sobras. Goiânia: Kelps, 2000. pp.61-62.
¹⁹ ATHAYDE, Tristão de. Regionalismo universalista. Remate de Males, Unicamp, Campinas, 17(1), 2012. pp. 123-124.