O realismo telúrico e fatalista de Bernardo Élis no conto “Nhola dos Anjos e a cheia do Corumbá”
18 abril 2020 às 15h02
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Um par de Guimarães Rosa, o escritor criou um conto poderoso — forte na linguagem e na interpretação até antropológica das personagens
Nilson Jaime
Especial para o Jornal Opção
Dentre os vinte contos de Bernardo Élis (1915-1997) que compuseram seu livro de estreia “Ermos e Gerais — Contos Goianos” (Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos, 1944,172 páginas), “Nhola dos Anjos e a cheia do Corumbá” é um dos mais marcantes e mereceu publicação em seletas e antologias. Foi reproduzido, por exemplo, no livro “Literatura Comentada — Bernardo Élis”[1], organizado por Benjamin Abdala Júnior, para a Editora Abril, e também na “Antologia do Conto Goiano”[2], organizado pelas professoras Darcy França Denófrio e Vera Maria Tietzmann Silva.
Dentre as dezenas de menções elogiosas por figuras de destaque da crítica literária nacional (em grande parte por “Ermos e Gerais”), Tristão de Athayde, codinome de Alceu de Amoroso Lima, escreveu que Bernardo Élis construiu “… obra de verdade social impressionante e uma criação linguística[3] de uma beleza e de uma originalidade singulares”[4]. Athayde expressa: “O estudo de seu estilo já está em ponto de merecer uma análise linguística científica, tal a sutileza da sua oralidade”[5]. A literatura de Bernardo Élis, frisa o crítico carioca, “é uma fusão rara entre o falar culto e o falar popular”. Essa análise linguística científica requerida por Amoroso Lima vem sendo desenvolvida, com o passar dos anos, por diversos autores.
Para o crítico literário Antonio Candido, “na literatura brasileira poucos podem gabar-se de ter encontrado uma fórmula narrativa tão eficiente”[6]. Sua impressão é corroborada por Mário de Andrade, que assevera a Bernardo Élis: “Você tem a qualidade principal para quem se aplica à ficção: o dom de impor na gente, de evidenciar a ‘sua’ realidade, pouco importando que esta ‘sua’ realidade seja ou não o relato da vida real”[7].
O professor e doutor em literatura José Fernandes sublinha que a ficção produzida em Goiás teve como precursor Hugo de Carvalho Ramos, que gerou três vertentes, sendo que “a primeira, tendente para o regionalismo e, conseguintemente, para a visão sociológica do homem e do meio, passa por Pedro Gomes, Eli Brasiliense, Bernardo Élis e desemboca em Carmo Bernardes e Bariani Ortencio”[8]. A segunda, de acordo com José Fernandes, é de cunho fantástico, praticada por Bariani Ortencio e Maximiano da Mata Teixeira. Sendo a terceira — de matiz existencialista, uma “ficção do absurdo” — levada a lume por José J. Veiga, Miguel Jorge e Roberto Fleury Curado.
A escritora e crítica literária Moema de Castro e Silva Olival postula que o livro “Ermos e Gerais” é “estranho, fascinante e doloroso”, sendo o precursor da obra bernardiana que, “depois dos largos horizontes da revolução de 1930 e da penetração, no Brasil, das ideias socialistas, quando sua literatura já experimentava outras formas da técnica realista e naturalista, mesclando ideologia e realidade — o neorrealismo, o realismo crítico — atinge a dimensão de José Américo de Almeida, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, e, noutra linha, Guimarães Rosa: os mais expressivos prosadores do século vinte”[9].
Gilberto Mendonça Teles escreveu que Bernardo Élis, o introdutor do Modernismo em Goiás, “…narra como se estivesse contando oralmente o que acabara de ouvir. Por trás de cada conto de ‘Ermos e Gerais’ está, pode-se dizer, a estrutura de uma estória ou de um ‘causo’, quando não de uma lenda ou de um mito”. Para o poeta, professor e crítico literário goiano, “é uma estrutura simples que suporta uma fábula (no sentido dos formalistas russos) também simples e por isso contada com técnicas de narrativa oral”[10].
Nelly Alves de Almeida[11], analisando o conto “A Enxada”, presente no livro “Veranico de Janeiro”, que veio a lume 21 anos após a publicação de “Ermos e Gerais”, apresenta algumas características que também se fizeram presentes no livro de estreia de Bernardo Élis e, particularmente, no conto “Nhola dos Anjos…”: as várias manifestações das metáforas, das onomatopeias e das expressões idiomáticas populares, dentre outras.
Sinopse do conto de Bernardo Élis
O enredo se desenvolve em um quinhão de terras na confluência dos rios Capivari e Corumbá, município de Corumbá de Goiás, onde morava a família Dos Anjos, vinda de Minas Gerais “há 80 anos” (o conto foi publicado em 1944), a fim de instalar uma pequena fazenda de gado. Ali, dentro do triângulo equilátero formado pela junção dos dois rios e uma várzea de buritis, como terceiro lado do polígono, o avô de Quelemente, nos tempos da “Guerra dos Lopes” (Guerra do Paraguai) implantou um apartador de gado e construiu a residência da família.
Após a morte do migrante, e de quase todo o gado, o sítio entrou em decadência. A casa de alvenaria foi substituída por um rancho de palha, onde moravam Nhola dos Anjos, deficiente física, e o filho Quelemente, ambos viúvos da malária, juntamente com um menino “perrengue”, neto da primeira, por Quelemente.
Com a deterioração do rancho e as enchentes anuais, a família intentava, havia quarenta anos, abandonar o local — sem sucesso. Quando chega a temporada de chuvas e o rancho começa a desabar, os três moradores tentam fugir da área alagada sobre a porta do rancho, construída com folhas de buritis, à guisa de jangada. Contudo, acontecimentos imprevisíveis frustram os planos da família ribeirinha, no melhor estilo regionalista, realista e fatalista de Bernardo Élis.
A personagem Nhola dos Anjos
A primeira questão sobre esse conto advém do título: Nhola é um neologismo? O vocábulo é um pronome de tratamento, ou um substantivo próprio, designador de pessoa? As buscas nos dicionários “Houaiss da Língua Portuguesa”; “Antenor Nascentes” — da Academia Brasileira de Letras; “Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa”; no “Moderno Dicionário da Língua Portuguesa” — Michaelis; no antiquíssimo “Dicionário da Língua Portuguesa”, de Carvalho & Peixoto; e em léxicos regionais, como no “Dicionário do Brasil Central”[12] e no “Dicionário Tocantinense de Termos e Expressões Afins”, de Bariani Ortencio e de Liberato Póvoa, respectivamente, mostraram-se infrutíferas. Não há qualquer menção a Nhola. Nem mesmo nos dicionários de nomes próprios, disponíveis na internet, se encontra o vocábulo.
Ribeiro e Matos (2017) entendem que Nhola “é a variação caipira de senhora, pronome de chamamento votado à mulher que merece respeito e consideração”[13]. Nos léxicos pesquisados é possível encontrar senhor, senhora, nhá, nhazinha, ioiô, iaiá, sinhá, sinhô, sinhazinha, inhô, inhá, inhazinha, nhanhá, nhanhã, nhor e nhora, e outras variantes utilizadas para tratamento de adultos de ambos os sexos, crianças, mocinhos e mocinhas. Mas, salvo engano, a ser corroborado ou desmentido por pesquisas posteriores, não há Nhola, até então, na literatura goiana. Embora o vocábulo já fosse utilizado no dia-a-dia da população do Estado de Goiás, literariamente trata-se de um neologismo criado por Bernardo Élis.
Nhá é um pronome de tratamento, etimologicamente feminino de nhô. Esse, por sua vez, é uma forma aferética[14] de senhor (suprime-se o fonema /se/), com apócope[15] do fonema /r/. Assim, analogicamente, por aférese, senhora se transforma em ‘nhora’, pela supressão do fonema /se/. E, por lambdacismo[16], ‘nhora’ origina ‘nhola’. Portanto, por aférese e lambdacismo, senhora converte-se em ‘nhola’. Dessa forma, Senhora dos Anjos passa a ser Nhola (um nome próprio) dos Anjos, na narrativa de Bernardo Élis. O pronome de tratamento Nhola se transforma em substantivo designador da pessoa, um nome próprio: “As águas agitadas vieram banhar as pernas inúteis de mãe Nhola” (parágrafo 23°, página 81).
Figuras de linguagem no conto
Bernardo Élis utilizou como recursos estilísticos em sua narrativa no conto “Nhola dos Anjos…”, diferentes derivações das figuras de linguagem: semânticas, ou de palavras (metáfora e catacrese); de pensamento (hipérbole e prosopopeia), sintática ou de construção (anáfora e zoomorfização) e de som (onomatopeia).
Em pelo menos três ocasiões emprega a hipérbole, recurso para alcançar credibilidade, com uma linguagem coloquial exagerada: “– O Rio encheu mais?” (pergunta Nhola dos Anjos). “— Chi! Tá ‘um mar d’água’” (respondeu o neto) (parágrafos 2° e 3°, página 78). Nesse caso a hipérbole, ou auxese, denota o grande volume de água do rio, expresso exageradamente como em um mar. E, ainda, diz Quelemente à matriarca: “Mãe, o vau tá que tá sumino a gente…” (par. 7°, página 78), ao constatar que, devido à profundidade, não mais poderiam sair pelo vau seco, já inundado.
Bernardo Élis faz uso da catacrese, figura de linguagem metafórica que consiste no uso de uma palavra ou expressão que não descreve com exatidão o que se pretende expressar. À falta de vocábulo adequado, parte do rio é associado a um membro do corpo humano: “Somente para o sul, para a várzea, é que estava mais enxuto, pois o ‘braço do rio’ aí era pequeno” (par. 4°, página 78); E também: “a correnteza pegou a jangada de chofre, fê-la tornear rapidamente e arrebentou-a no lombo espumarento” (par. 33°, p. 82). Na narrativa bernardiana, o rio é dotado de braço e possui lombo.
Nesse conto a prosopopeia — figura de pensamento em que seres inanimados assumem características humanas — é utilizada à exaustão. O rio (e sua cachoeira), como um dos protagonistas, é personificado, roncando, estrugindo, rugindo, cambalhotando, ficando neurótico: i) “Agora a gente só ouvia o ronco do rio lá embaixo — ‘ronco confuso, rouco’, ora mais forte, ora mais fraco…” (par. 10°, página. 79); ii) “Os gritos friorentos das marrecas povoavam de terror ‘o ronco medonho da cheia’” (par. 16°, p. 80); iii) “Esforçava-se para identificar o local e atinar com um meio capaz de os salvar daquele ‘estrugir encapetado’ da cachoeira” (par. 34°, p. 82); iv) “As águas ‘roncavam e cambalhotoavam’ espumejantes na noite escura…” (par. 36°, p. 82); v) [O rio] “Começou a escurecer nevroticamente” (par. 5°, p. 78) – se “comportando” de maneira neurótica, conforme o narrador.
Na narrativa em “Nhola dos Anjos”, além de rugirem, as águas são cínicas, refletido um céu que fica estuporado, entrevado e, por fim, morre: “E as águas escachoantes, ‘rugindo’, espumejando, refletindo ‘cinicamente’ a treva do céu parado, do céu defunto, do céu entrevado, estuporado” (par. 44°, página 84).
A noite, aliás, é igualmente comparada a um defunto, prenunciando algum acontecimento trágico que viria em breve: “A noite era um grande cadáver, de olhos abertos e embaciados” (par. 16°, p. 80).
Mas Bernardo Élis utiliza também a prosopopeia inversa, quando é a personagem humana quem adquire características de um ser inanimado: “– É o mato? – perguntou engasgadamente Nhola, cujos ‘olhos de pua’ furavam o breu da noite” (par. 23°, p. 82). Metaforicamente, os olhos de pua significam olhos penetrantes, a fixar-se em um ponto da escuridão e dilatar as pupilas, a fim de enxergar algo que sirva de referência à infeliz ribeirinha.
Como todo falar popular, a onomatopeia — palavra com reprodução aproximada do som natural usando os recursos de que a língua dispõe — ocupa seu lugar na narrativa desse conto: “… Ora mais forte, ora mais fraco, como se fosse um ‘Zum-zum’ subterrâneo” (par. 12°, p. 80). E, ainda, “Os torrões de barro do pau-a-pique se desprendiam dos amarrilhos de embiras e caiam nágua com um barulhinho brincalhão — Tchibungue-tibungue” (par. 17°, p. 81). Dá até para o leitor “ouvir” o barulho do reboco se desprender do pau a pique e produzir tal som ao mergulhar nas águas de cheia do rio assustador.
A anáfora reforça ideia negativa e repetida de desalento ante a catástrofe natural iminente: “Nem uma estrela. Nem um pirilampo. Nem um relâmpago” (par. 16°, p. 80). Os personagens encontram-se sós em seu infortúnio em meio à escuridão, sem o auxílio da luz natural de relâmpagos fugazes, astros longínquos, ou ao menos da luz piscante e intermitente de um reles vagalume.
Palavras e expressões regionais
A narrativa em “Nhola dos Anjos” é rica em expressões coloquiais regionais, usadas cotidianamente no meio rural, e nas cidades interioranas de Goiás: “Qué vê espia — e apontou com o dedo para fora do rancho” (par. 2°, p. 78). O menino desafia Nhola a “ver com os próprios olhos”, a fim de realçar que está dizendo a verdade, enfim, que é fidedigno em seu testemunho.
Já em seu livro de estreia Bernardo Élis utilizou um recurso linguístico que se repetiria em todos os seus trabalhos: a designação descuidada dos nomes de suas personagens, escrevendo-as tal qual se fala popularmente, modificando, acrescentando ou suprimindo fonemas a esses nomes. Assim, o filho de Nhola dos Anjos, Clemente, vira, por prótese (um metaplasmo de adição de fonema no início do vocábulo), ‘Quelemente’, da mesma forma que o Cabo Silvério seria conhecido como ‘Cabo Sulivero’ no conto ‘Ontem, como hoje, como amanhã, como depois’, popularizado nas telas do cinema pelo ator Nuno Leal Maia, no do filme ‘Índia —A Filha do Sol’ (1982), roteirizado por Marco Altberg, Bubi Leite Garcia, Eduardo Coutinho e também pelo diretor, Fábio Barreto. De forma análoga, Cipriano de “A Enxada” se transformaria em ‘Supriano’, ou ‘Piano’, por fortição[17] e aférese, respectivamente.
A técnica da corruptela, por metaplasmos de nomes de pessoas, teria se originado — no escopo da literatura goiana —, em Pedro Gomes [1882-1955], que em seu livro “Na Cidade e na Roça” (1924)[18] criou a personagem “Joaquim Pandiló”, corruptela de Joaquim Pão-de-Ló. O mesmo autor deu voz a “Manezinho da Colodina” — pronúncia “desmazelada” de Claudina —, personagem que morava com sua mãe na zona rural de Leopoldo de Bulhões, no Estado de Goiás, no conto “Voando… de caminhão”, parte do livro “Pito Aceso” (1942)[19]. Assim, caberia a Pedro Gomes a primazia da inovação desse artifício vocabular, já que Hugo de Carvalho Ramos (1895-1921) não o utilizou em sua obra?
Posteriormente, outros regionalistas fizeram uso dessa ferramenta: Carmo Bernardes (1915-1996) com “Zecaria”/Zacarias (“Vida Mundo”, 1966) e “Ermira”/Elmíria (“Jurubatuba”[20], 1972); Bariani Ortencio (nascido em. 1923] (“Força da Terra”[21], 1974) criou “Agnel”/Agnelo; e José J. Veiga (1915-1999) (“Aquele Mundo de Vasabarros”[22], 1982) deu vida a “Mognólia”/Magnólia e “Gregóvio”/Gregório; dentre outros. Ninguém, contudo, utilizou-se mais dessa técnica, que acrescenta empatia à personagem, que Bernardo Élis.
Outras palavras de cunho popular, como “entrevada” e “estrupiada” (pessoa com deficiência física, que anda com dificuldade), são utilizadas, na narrativa deste conto, para indicar que Nhola padece de “ar de estupor”, ou seja, é uma “estuporada”: “Havia 20 anos apanhara um ar de estupor e desde então nunca mais se valera das pernas, que murcharam e se estorceram” (par. 4°, p. 78). E ainda: “O menino chorava aos berros, tratando de subir pelos ombros da estuporada e alcançar o teto” (par. 26°, p. 81).
O autor utiliza bastante as expressões e palavras coloquiais, corriqueiros no interior goiano: “ensopadinho da silva” (par. 6°, p. 78); “se Deus ajudá” (frase que denota fé na onipotência divina, a dirigir os destinos humanos) e “nois se muda”. Também termos como “biruzinho” (criança doente de amarelão), “perrengado” (enfraquecido, doente), “terreiro” (quintal), “sirga” (corda para puxar a embarcação). “atilhos” (cordões de amarração), “aflissurada” (horrorizada), “vadear” (atravessar a vau, rio, etc), e “perambeira” (lugar escarpado, precipício), são vocábulos utilizados no conto.
Costumes, religião e culinária
Dentro da narrativa de Bernardo Élis em “Nhola dos Anjos”, há lugar para uma “simpatia” que faria cessar a chuva. Já na oração inicial do conto, o autor dá mostras da importância dos mitos e crendices no controle das forças da natureza para a família Dos Anjos: “– Fio, fais um ‘zoio de boi’ lá fora pra nóis” (par. 1°, p. 78). “O menino saiu do rancho com um baixeiro na cabeça, e no terreiro, debaixo da chuva miúda e continuada, enfincou o calcanhar na lama, rodou sobre ele o pé, riscando com o dedão uma circunferência no chão mole — outra e mais outra” (par. 1°, p. 78).
De acordo com Póvoa (2002)[23], olho de boi é um “círculo que se faz no chão, girando o corpo sobre o calcanhar e usando a ponta do dedão como haste de compasso. Segundo a superstição, serve para chamar o sol, em época de muita chuva”. Na falta de recursos para fazer frente às intempéries, a família Dos Anjos apela para a superstição — com as simpatias — ou para o Divino: “Este ano mesmo, se Deus ajudá, nois se muda”.
Quando as paredes do rancho começam a desmoronar, mãe Nhola lança seu grito de desespero ao além: “— Nossa Senhora d’Abadia do Muquém” (par. 24°, p. 81). O apelo remete à padroeira da centenária romaria que acontece no povoado de Muquém, município de Niquelândia, Goiás, no mês de agosto de cada ano. Por via das dúvidas, a matriarca também apela, incontinenti, ao padroeiro da Romaria de Trindade, cuja festa se dá, anualmente, ao final do mês de junho: “— Meu Divino Padre Eterno!” (par. 24°, p. 81).
Os utensílios de uso regional são lembrados no conto: “baixeiro”, “forquilha”, “colher de pau”, “cuias”, “panela de barro”, “panela de ferro”, “calça de algodão grosso” e “fornalha”, dentre outras. A culinária não deixa dúvida de tratar-se de uma casa do sertão do Brasil Central: “A velha trouxe-lhe um prato de folha e ele começou a tirar, com a colher de pau, o feijão quente da panela de barro. Era um feijão brancacento, cascudo, cozido sem gordura. Derrubou farinha de mandioca em cima, mexeu e pôs-se a fazer grandes capitães com a mão, com que entrouxava a bocarra” (par. 14°, p. 79).
Se a citação das “várzeas” e de uma “vargem de buritis” são insuficientes para se determinar a territorialidade exata do conto, a localização do quinhão de terra em que a família Dos Anjos construíra sua moradia há mais de 80 anos é fornecida pelo autor, que não deixa dúvidas: “Na foz do Capivari com o Corumbá” (par. 12°, p. 79).
Realismo fatalista da prosa bernadiana
O fatalismo em Bernardo Élis é uma das características marcantes nesse conto modernista de matizes realistas. Na tentativa desesperada de salvar-se, à mãe ‘estrupiada’ e ao filho ‘perrengue’, que se amontoavam na porta de buriti improvisada em jangada, Quelemente racionaliza pragmaticamente: “A Velha não podia subir, sob pena de irem todos para o fundo. Ali já não cabia ninguém. Era o rio que reclamava uma vítima” (par. 25°, p. 82).
De acordo com Ribeiro e Matos (2017), “a personagem exerce com tenacidade e submissão os papeis de esposa, mãe a avó, porém a narrativa não a poupa de uma caracterização pejorativa e mesmo animalesca, seu andar é comparado ao de uma cadela”. Tal criatura não seria dispensável, naquelas circunstâncias?
Em sua ânsia de fugir à cachoeira que se aproximava, e do mar d’água que ameaçava afogar a todos, “Quelemente segurou-se bem aos buritis e atirou um coice valente na cara afissurada da velha Nhola. Ela afundou-se para tornar a aparecer presa ainda à borda da jangada, os olhos fuzilando numa expressão de incompreensão e terror espantado” (par. 37°, p. 83).
Quelemente não titubeou em desferir segundo chute ainda mais forte no rosto da paralítica. Somente para ver a jangada virar e descobrir que sacrificara a mãe inutilmente, pois o local onde Nhola se desesperara para subir na tosca embarcação era raso. Dava pé. A mãe fora morta sem necessidade. Só morreu porque era estrupiada. “Era o rio que reclamava uma vítima.”
“— Mãe! — lá se foi Quelemente gritando dentro da noite, até que a água lhe encheu a boca aberta, lhe tapou o nariz, lhe encheu os olhos arregalados, lhe entupiu os ouvidos abertos à voz da mãe que não respondia, e foi deixá-lo, empanzinado, nalgum perau distante, embaixo da cachoeira.”
Nilson Jaime, mestre e doutor em agronomia, membro do IHGG, Icebe, Aplam, Aplamc, e da Academia Goianiense de Letras, é colaborador do Jornal Opção.
Notas
1 ABDALA Jr. (1983). ‘Literatura comentada – Bernardo Élis’. p. 17-22.
2 DENÓFRIO & SILVA (1993). ‘Antologia do conto goiano I – dos anos dez aos sessenta’, p. 73-78.
3 A ortografia da época requeria trema para esta palavra.
4 In: ÉLIS (1967). ‘O Tronco’. 2ª edição refundida. (apresentação de orelha).
5 Ibidem.
6 In: ÉLIS (1979). ‘Veranico de Janeiro’. 4ª edição. (2ª capa).
7 Ibidem.
8 In: FERNANDES (1992). ‘Dimensões da literatura goiana’, p. 225.
9 OLIVAL (2018). ‘A crítica em novos espaços – ensaios – entrevistas – fortuna crítica’, p. 385.
10 TELES (1995). ‘A Crítica e o princípio do prazer’, p. 199.
11 In: ALMEIDA (1985). ‘Estudos sobre quatro regionalistas’. 2ª edição.
12 ORTENCIO (1983). ‘Dicionário do Brasil Central – Subsídios à Filologia’.
13 RIBEIRO E MATOS (2017). ‘Isolados e mutilados; o feminino e o masculino na ficção de Bernardo Élis’, p. 18.
14 Aférese: supressão do fonema no princípio do vocábulo.
15 Apócope: mudança fonética que consiste na supressão de um ou vários fonemas no final de uma palavra.
16 Lambdacismo: metaplasmo em que se dá a transformação do fonema /r/ em /l/. Na foniatria, lambdacismo é uma dislalia fonética que consiste em distúrbios de pronúncia que afetam especificamente o fonema /l/ (ele).
17 Fortição: metaplasmo que, em fonética, corresponde à transformação de um fonema em outro mais ‘duro’.
18 GOMES (1924),’Na cidade e na roça’, p. 24-27.
19 GOMES (1942). ‘Pito Aceso’, p. 59-62.
20 BERNARDES (2006), Carmo. ‘Jurubatuba’. 4ª edição. A publicação original é de 1972.
21 ORTENCIO (2017). ‘Força da Terra – contos’. 2ª edição. A publicação original é de 1974.
22 VEIGA (2006). ‘Aquele mundo de vasabarros’. A publicação original é de 1982.
23 PÓVOA (2002). ‘Dicionário tocantinense de termos e expressões afins’, p. 127.