Diadorão das Curvinhas e Janjão das Cobras relatam que o preso Carlão das Tropas  mandou matar sócio de advogado por ciúme da bela Karlinha

José Carlos Leite 

Quem conta um conto espicha um tanto, diriam Guy de Maupassant e, quem sabe, Anton Tchekhov. Conta-se, a seguir, uma história imaginária. Acontecida — na imaginação de quem relata — nos confins de Alvinorte, distrito de Alvivunhas.

Pintura de Caravaggio

Joãozinho das Covas, também conhecido como Janjão das Cobras — ele espantava cobras das fazendas com uma reza das mais bravas —, saiu de Alvinorte, à tarde, escanchado na sua mula Filomena, de 3 anos. “Por sinal, muito calma para uma mula”, disse o compadre Quelemente, um mulandeiro devotado.

O destino de Janjão das Cobras era São Vicente, cidade próspera do Entorno de Viadante. Parou no Bar do Quiabo Seco, bebeu uma pinga com murici e quedou-se a ouvir histórias. Quem falava, e alto, era um tal de Diadorão das Curvinhas, primo do Reinaldim do Hermógenes e de Simeão do Bacamarte.

Diadorão não inventa, mas aumenta — dizem todos da cidade de Frutal, em Minas, onde nasceu de sete meses pelas mãos mágicas da parteira Setembrina das Cruzes. Sabe-se que falou com dez meses, sempre pedindo comida.

A história de Diadorão transmitida por Janjão das Cobras:

Carlão das Tropas havia sido preso, em Congonhas de Dentro, porque fora pego traficando drogas, ao menos é o que dizem os puliças. Coisas miúdas mesmo, tipo cocaína e maconha. Cigarro, não; porque cigarro é legal, não dá xilindró.

A mão de Deus, de Rodin

Mas Carlão das Tropas não quer ficar preso, não. Por isso contratou o advogado Pedro Porta de Cadeia para defendê-lo. Ainda que não seja para retirá-lo da cadeia, ao menos para reduzir a pena.

Porta de Cadeia, um sujeito gordo e afável, tem um sócio, cunho nome é José Saraiva Domenico, mas todos os conhecem como Zé Bebelo do Sertão.

Zé Bebelo do Sertão é um homem alto e bonitão — dizem que já foi até ranger nos Estados Unidos ou policial federal no Brasil. São histórias requentadas e talvez apócrifas.

No Sertão do meu Deus dizem que as mulheres, quando viam Zé Bebelo do Sertão, apaixonam-se em questão de minutos, quiçá segundos. Conta-se que carrega uma pata de lobo na carteira. Seria afortunada.

Pintura de Caravaggio

Zé Bebelo do Sertão não advoga para Carlão das Tropas, cujo tio Piancó das Serra Funda comanda um negoção em Palmas da Tapioca. Tudo coisa branquinha.

Mas, como ganharão que é, Zé Bebelo do Sertão certo dia viu a mulher de Carlão das Tropas conversando com Pedro Porta de Cadeia. Os dois se olharam e foi paixão à primeira vista.

Pedro Porta de Cadeia avisou: “Lembre-se que o Inácio da Didinha morreu porque decidiu namorar a mulher de um traficante”. Zé Bebelo do Sertão ouviu, riu e disse, desarvorado: “Como sabe, meu amigo, não tenho medo de nada”. Dali por diante, Zé Bebelo do Sertão passou a saracotear por aí com Karlinha do Carlão das Tropas. Todo mundo comentava que aquilo não traria bons eflúvios.

Mas Zé Bebelo do Sertão, um rábula de primeira, não se fazia de rogado e continuava a andar com Karlinha do Carlão das Tropas. Usava inclusive sua caminhonete branca, nova e bonita. O veículo é de Carlão das Tropas, esclareça-se.

Pintura de Caravaggio

Karlinha do Carlão das Tropas quase nem visitava mais seu marido aos domingos. Para disfarçar, ia na penitenciária uma duas vezes por mês. Quando não queria ir, dizia que estava doente. Era a mulher que mais adoecia na cidade. “A mulher tá perrengue” — avisava Pedro Porta de Cadeia, visivelmente constrangido com a mentira.

Carlão das Tropas, que não é bobo nem nada, pediu a um amigo, um morenão forte e bravo, para seguir Karlinha do Carlão das Tropas.

Não precisou de muito tempo, não. Depois de uns dois dias, num domingo, Mário Viracopos apareceu na “penitença” e disse: “Meu amigo, sua cabeça não está doendo, não?” Carlão das Tropas foi sucinto: “Não. Por quê?” Viracopos redarguiu: “Meu amigo, com tanto chifre, você não sente nada, não?” Pensando que era brincadeira, Carlão das Tropas replicou: “Pois já me disseram que chifre, depois que nasceu, para de doer”.

Viracopos riu, mas decidiu esclarecer: “Meu amigo, a Karlinha mudou de nome”. “Como?”, assustou-se Carlão das Tropas. “Agora é conhecida como Karlinha do Zé Bebelo do Sertão”.

Carlão das Tropas ficou sem fala, irritado, doente. Jurou vingança eterna. Mandou buscar o amigo e sócio José das Tranças, aquele que vende tapioca — branquinha — em Brazlândia. Pediu um favorzão. “Assuste o Zé Bebelo para mim”, disse. “Assustar? Faço não. Mas, se quiser, mato”, respondeu.

O Assassinato, de Paul Cezanne

José das Tranças alugou uma “mota” e passou a seguir Zé Bebelo do Sertão. Consta que Carlos das Tropas arrependeu-se e disse: “Amigo Tranças, agora não precisa mais matar o Zé Bebelo. Não precisa mais não. Porta de Cadeia me disse que ele terminou com Karlinha”.

Tranças disse, com raiva: “Agora é eu que quero matar o cabra, e por conta própria. Zé Bebelo traiu a confiança do sócio e a você. Merece morrer”.

Dias depois, quando Zé Bebelo do Sertão passeava por uma rua movimentada, Tranças apareceu, na “mota” alugada, e deu alguns tiros. “Quantos?”, quis saber um amigo que o ajudou a fugir para o Estado de Toca dos Mutuns. “Não sei. Atirei quatro vezes. Acredito que acertei pelo menos dois tiros”.

Assim acabou a história da morte de Zé Bebelo, o bonitão que, tendo namorado a mulher de um traficante, adora dorme numa fazenda de sete palmos medidos.

Diadorão terminou a história e Janjão das Cobras voltou para seu distrito. Lá recontou-a, acrescentando um ponto. Disse que Carlão das Tropas e Karlinha reataram o casamento. Ela parou de ficar doente, como se por milagre, e voltou a visitá-lo todo domingo. “Oh, mulher boa; oh, se é.”

Guy de Maupassant e Tchekhov? Passou longe disse. Mas a história contada por Diadorão e repicada por Janjão das Cobras, embora imaginária, parece coisa da tal realidade.

José Carlos Leite é escritor, ainda que inédito.