A sobriedade reina no manejo das emoções — de modo que o medo e as agruras são expressos sem serem aprisionados em fórmulas reducionistas

Ricardo Silva

Especial para o Jornal Opção       

Nunca falei com Ana, mas nessas paragens virtuais é muito fácil criar um simulacro de intimidade. Por isso acredito que não seja tão inoportuno usar a palavra “conheci” ao me referir à jovem poeta paranaense, já que ocorreu no espaço das redes sociais o primeiro contato entre nós. Na milimétrica restrição dos poucos caracteres, Ana tinha o traquejo certo de aliar concisão com boa pontaria. Sempre publicava algo certeiro.

Leitor com certa caminhada, percebi ali o germe de uma criação maior. Não me enganei. Não demorou muito tempo para que eu lesse eventuais poemas surgindo aqui e acolá, então os primeiros livros — “Relógio de Pulso” (2011) e “Não Conheço Ninguém Que Não Seja Artista” (2015) —, e as aparições em antologias. Mas não nunca falei com Ana. Me fiz apenas de crítico exercendo o papel de observador à distância de um talento patente, que valia a pena acompanhar a evolução. “Preocupações”, terceiro título da poeta e publicado pela editora Macondo em 2019, é a confirmação plena dessa ascensão.

Ao leitor que espera floreios, belezas lisas, muitas cores e poemas edificantes, não encontrará cá neste trabalho de Guadalupe quaisquer desses elementos. O que impera nos poemas é a generosa resignação consciente de sua própria condição.

Existe um certo ambiente fixo de melancolia e tristeza que costura a trama dos versos e alinha os poemas numa exposição límpida dessa condição solitária do existir: a eterna transitoriedade do nomadismo urbano, os amores que não acontecem, os que acontecem mas não criam raízes, o contato que precisa ser cortado, o funeral de si onde quase ninguém vai, o primeiro encontro onde o papel do beijo foi exercido pela terceira pessoa da trindade, os afastamentos e aproximações, as oscilações da felicidade, que se torna refém da ansiedade do espaço vazio e das caixas de mudança que nunca são desfeitas.

Ana Guadalupe, poeta paranaense: no seu mais recente livro, “Preocupações”, demonstra sua profunda capacidade da observação poética da vida | Foto: Facebook

A constante mudança de tudo, talvez seja essa uma das linhas responsáveis pelo emaranhado coeso da poesia de Guadalupe. A poeta não se ocupa com o excesso, os versos têm suas próprias formas de filtrar apenas o essencial e nos expor somente o necessário. É a sobriedade que norteia o quadro inteiro de “Preocupações”.

O título da obra também cumpre o papel de revelação quando nos debruçamos a analisar o livro. São diversas as preocupações da poeta: expor o que sente (“minha dor eu preciso/apresentar ao público/antes que desapareça”); com o dinheiro curto (“por quanto tempo/ terei dinheiro para viver nesta cidade/ antes que pese demais o medo/ e o medo me roube a energia?”); com a insuficiência das palavras (“a palavra não basta/ a palavra não dá nada em troca/ por isso vivemos preocupados”).

A preocupação dá o tom, mas nunca explícito, porque sutil. A sutileza estrutura-se como um caminho oportuno de seguir na tentativa de encontrar algumas chaves de leitura do livro, mas lhe alcançar é uma luta vã: a efemeridade na abordagem de Ana Guadalupe se apresenta em poemas cuja porosidade não é de simples captura. Nisso também repousa a beleza de “Preocupações”.

Se existe um resignado pessimismo (“às vezes dá na mesma/ viver antes ou agora”), o humor silencioso, sem a necessidade de sinalização (“que alegria/ bater os dentes/ no seu carinho que cresce”), também encontra no livro sua guarida.

Até mesmo um involuntário diálogo com nossos tempos de pandemia ecoa no ingenuamente profético “não haverá passeio” (“hoje não me convidaram para nenhum passeio/ nem amanhã/ nem amanhã”).

Na poética de Guadalupe a sobriedade reina ao conseguir manejar as emoções de forma que o medo — da vida, dos amores, do quarto escuro, da proximidade da infelicidade —, a paranoia, o desgaste da vida social, e as agruras dos gritos introspectivos possam ser expressos sem que sejam esgotados ou aprisionados em fórmulas reducionistas.

Termina-se “Preocupações” sem muitas esperanças para dias de luzes e sem saber “o que vai enfim destruir a dureza”, mas há uma certeza: Ana Guadalupe se sedimenta como uma das mais interessantes vozes da nova poesia brasileira.