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Miley Cyrus e Jennifer Lopez: o poço sem fundo do mau gosto e da falta de respeito próprio

O que está ruim sempre pode piorar. Ao que parece, a carência de talento (e de vergonha na cara) no mundo da música não tem limites. O cúmulo da falta de respeito próprio ainda é um horizonte infindo ante a obsessão humana de ganhar dinheiro e fama

Pacto com a memória

“As Fantasias Eletivas”, de Carlos Henrique Schroeder, faz uma ode à literatura, ao mostrar o encontro de dois solitários que buscam reinventar o mundo através do olhar sobre a ficção

O menino não mora mais aqui

[caption id="attachment_16252" align="alignright" width="260"]M. File M. File[/caption]

O começo como se conta O tempo se leva com os ventos. As ventanias da vida, os redemoinhos do mundo, para onde nos levam? Aonde foi aquele menino encantado com as curicacas e o vento nos guizos dos arrozais? Por onde foram os meninos, como foi que se perderam de nós? Perguntas se perguntam, respostas se inventam, verdade o que se conta.

Dobras do tempo, sombras. Não era ele, aquele menino? Será que ainda se encanta com o cicio dos cachos de arroz? Ainda lhe apraz extrair, com o polegar e o indicador, o verde assovio ao liso das folhas na touceira de grãos? Ainda se lembra de seus bois de mangas verdes, sabugos e caramujos? Provável que já nem seja mais como antes. Perdido no tempo sombrio, pode que seja outro, diferente de ontem, podendo que a vida revele sua real(idade).

Bem-te-vi avisou, insistiu que viu o menino passar por ali, ao amanhecer. Já o murmúrio da coruja acusara-lhe a passagem, em hora escura. Levado embora a cavalo da noite. Os vultos silentes dos cavaleiros. Os cascos dos cavalos ressoando no solo. Noite adentro, sertão afora. Longe, o mundo estranho. As mãos agressoras do mundo. O riso de quem rosna. As hienas da Terra. Do porvindouro percurso de vida do menino, que se conta mais adiante, recorte-se, antecipando a figura paterna, o dia em que um sanfoneiro cantava assim, dirigindo-se justamente ao pai do garoto:

O senhor, Seo Valdemar, escuta o que vou falar, não fui eu, não fui eu que matei seu canarinho, no galho da laranjeira, no derradeiro galhinho.

Noites seguintes, dias adiantes, anos seguidos. Procura-se o menino. “Mora não senhor. O menino não mora aqui mais não. Saiu da­qui do Desemboque e desapareceu.” O fio da conversa alinhavando as palavras. Um modo pe­culiar de falar, fluindo simplicidade e sapiência. “A vida, o senhor sabe como é: anda e desanda. A vida mesma se perde na própria vida.”

As curicacas nas redondezas gritam que o menino foi uma criança in­feliz. Que mal teve infância, desde a­quela noite. Um caco de lua minguante, nenhuma estrela no céu. “Muita vez o destino entorta o focinho e desatina. A vida vai de mau jeito, como um salto de botina acalcanhado, pisando torto pelos caminhos.”

Desvãos cinzentos da memória Os bois ali à sombra do arvoredo, ao lado do curral, perto de umas ro­chas negras, brotadas da terra fei­to fossem tubérculos gigantes e abru­ptos, de natureza mineral. “Não se sabe do menino. Nunca que dele se soube mais não. E pouco se lembra.”

Do que mal se conta e muito não se acrescenta. Cinzento é o tempo da memória. Desvãos. Que mal se lembre, o tempo esquece. O dia não clareia, a noite não esclarece. Assunto delicado, de desacerto familiar. Ao certo é que era um menino claro, alourado, e tinha olhos azuis, o mesmo que ver bolinhas de vidro. E havia outros. Eram quatro, ao todo: três meninos e uma menina. O mais velho também tinha olhos azuis. Só eles dois puxaram pelos olhos do pai.

Os outros tinham os olhos castanhos da mãe. O menino foi na garupa da montaria do pai, e sua irmãzinha, aos cuidados de outro cavaleiro. Iam a passos compassados. A noite ao redor e a noite pela frente, numa noite só. Os homens calados. As duas crianças foram entregues a uma tia, irmã do pai; já o mais velho ficou com outra tia, e o mais novinho deles foi deixado com a mãe, de nome Sebastiana, que dali também se foi.

“Ficou aí a casa vazia. Foi construída em 1935. Compramos essas terras já de um outro dono, e construímos a casa nova. A casa velha agora abriga um peão nosso, com mulher e filho. O peão, vocês cruzaram com ele, na vinda pra cá; a mulher e o filho foram ver uns parentes.”

O fantasma da velha casa A conversa se desenrola de um novelo. Fala-se de velhos tempos, sem que se fale muito ao certo, por incerto o incerto mesmo. Difuso o tempo confuso. Ouvissem, do passado, o riço dos cachos de arroz soprados pelo vento, algo parecido com o chocalho das cascavéis. Avistassem a alma-de-gato, ou alma-perdida, com o seu penacho e as penas de sua longa cauda, pousada no mandiocal. Um encanto de ave, muito bonita, todavia agourenta, aviso de morte para breve, como se acredita. Mas o certo é que a infância se foi e o menino cresceu. Bem-te-vi de outras terras viu o menino já crescido passar acolá.

Agora o berro de um boi. Um familiar aroma no ar. O cheiro da terra, da relva e do seco esterco das vacas. O contentamento de voltar ali, passados mais de sessenta anos. A casa antiga, ao lado, ainda é a mesma, salvo um puxado que não tinha, e vitrôs ao invés dos janelões que havia.

Por trás da casa, os dois irmãos chupavam manga escondidos da mãe, enquanto ela cozinhava o almoço; vigiavam-na pela janela da cozinha e, às pressas, se lambuzavam com a fruta. “Limpa a boca”, sussurrava o mais velho. Iam lá dentro da sala, pra mãe não desconfiar, daí voltavam, sorrateiros, pra se lambuzarem de manga novamente. A doce infância!

Avulta-se o fantasma do passado. Espectro o próprio aspecto da casa. O que alegra os dois irmãos, ali chegar, também os entristece, só de olharem a casa por fora. Tomados pela comoção, ou como se deles mesmos saísse, liberta, aquela aparição.

O berço vazio Envelhecidos e grisalhos, foram rever o chão de suas origens. O berço. Lá no fundo do tempo, por onde corre o ribeirão Desemboque, e de onde as lembranças são as mais remotas que guardaram de si mesmos. Aquelas que não se apagam nunca. Mais dolorosas as que mais profundamente se guardam. Espaço e tempo houvesse a contento para tudo se contar.

A terra perdida, enfim reencontrada. Uma viagem sentimental, profundamente gratificante. E lá estavam as curicacas, como se fossem as mesmas de antes, ainda sobrevoando aquele chão de ausências. Tinham-nas, iguaizinhas, retidas nas retinas da memória.

O retorno às origens mistura sen­timentos: contentamento, nostalgia, melancolia. Dorzinha sutil, feito farpa miúda. Fragmentos, lascas de histórico de família, de coisas que se guardam. Pudessem recompor o antigo lar, recolocar a mobília. E o pai, a mãe, os filhos. Refiar os fios. Reatar os laços de afeto. De resto, o que resta, senão pedaços de recordações? O berço é uma terra vazia. Não há ninguém. Nenhum deles por ali.

Não olhe para trás A tarde debulha seus minutos. Os dois visitantes precisam ir embora, recusam o convite pra mais demora. Voltarão, um dia, numa outra hora. Cocos secos e ocos de muito tempo, de bacuri e guariroba, um dia mascados pelo gado e agora cinzentos de pó, foram recolhidos do chão pelo irmão mais novo, próximo ao ribeirão, e guardados nos bolsos, como lembranças do regresso à terra da infância. Comentou que, se pudesse, se mudaria de volta. “É um belo lugar — completou —. Tem mais coisas do que supunha a minha memória, assim de encher os olhos e se derramar com o ribeirão que passa bem ali, rente aos fundos da casa”.

A casa. A profunda emoção de revê-la, e agora o pesar de deixá-la, como quem se separa do seio materno. Ainda antes da despedida, o mais novo caminhou até o ribeirão, molhou as mãos e lavou o rosto com água fresca, só pra dizer que tinha voltado, e sentir o gostinho da volta. Se se demorasse um pouco mais por ali, seria bem capaz de ouvir um menino chamando pelo pai e pela mãe. Então se despediram e saíram já com vontade de voltar, e de chorar.

Suspiros dobrados, sentidos, vindos do fundo da alma. “Ah, não olhe para trás! Dói demais, de tanta saudade e tristeza. E dá um vazio danado na gente”. Disse o mais novo ao irmão, ou mais para si mesmo, e enxugou os olhos na manga da camisa.

Para sempre separados (Álbum de família) A morte o levou em 26 de janeiro de 2007. A família quase toda, de vidas separadas, agora se junta. Ali, onde as diferenças se igualam e os extremos da vida se tocam e se cobrem de terra fúnebre. Só ali, e só então, se dá o momento da reunião. Quatro coveiros de uniforme azul aguardam. Três enxadas e três pás de prontidão. Os familiares em volta, à beira do chão aberto. A família desunida, enfim reunida. O que a vida separa, a morte reúne. A cova escancarada e ali o fundo do fim. Quatorze blocos de concreto, quinze tijolos e os calços de sustento. A camada retangular do reboque e cinco placas de laje que fecham o jazigo. O senhor Lá­zaro, “responsável pelo campo-santo”, como se identifica, supervisiona o serviço.

A terra é vermelha no Parque Memorial. Os vivos pisam na grama. São quinze horas e trinta minutos agora. Quadra 02, Módulo 5, Jazigo 01. Valdemar se foi. O pai. Uma vez mais, ele se vai, como de outras vezes se foi. “O pai de vocês tomou chá de sumiço”, a tia dizia. “Comeu pé de cachorro e sumiu no mun­do”, dizia. “Parece que virou passarinho, que voa e desaparece”, concluía. Casado pela segunda vez, e pai de dois outros filhos, repegou dois do primeiro casamento: o menino em questão e a menina. Acabou que não deu certo. A madrasta não quis. Escorraçava-os, cometia-lhes horrores; por isso foram levadas de volta para a tia.

De alma boa, a tia, justiça seja feita, fez tudo por eles, não mediu sacrifícios; foi-lhes a mãe (e o pai) que não tiveram. Pra começar, foi ela quem lhes acendeu a luz do saber; ensinou-os a ler e escrever, e eles já entraram na escola sabendo, adiantados. O menino, certa feita, na verdade já rapaz, adoeceu e ficou cego; chegou a ser desenganado pelo médico sobre voltar a enxergar. A tia, desesperada, mas decidida, e ainda pela ciência do doutor, logrou salvar das trevas, e da morte, o filho enfermo. Mo­mentos críticos.

Violentas convulsões do rapaz. Aos gritos e choro de desespero, clamando pelo Divino Pai Eterno, ela o trouxe de volta à vida. Foi como se o tomasse dos braços da morte, no último instante — a ele que, logo que se “viu” cego, não demonstrou desespero, mas pensou em suicídio. Saiu das sombras do vale da morte, transpôs o portal de intensa claridade e emergiu com os olhos inundados de luz. A luz da providência divina, segundo a tia, imbuída de fé.

A boa tia, porém, sofria dos nervos e havia vezes em que os tratava, aos meninos, com excessiva fúria, às cegas. Depois vinha com a salmoura do remorso, a banhar os ferimentos; e o menino até condoía-se dela em seu ar sofrido, tomada pelo arrependimento. De tudo, ficam as marcas, de certa forma confusas entre o sentimento de gratidão e de magoado perdão. Fica sempre um resquício de ressentimento, enfurnado e surdo, num escaninho da alma; fica lá, feito um morcego, no seu esconderijo, respirando e se remoendo no escuro. Repisar tudo isso, denuncia o resquício. Mas fica, sobretudo, o reconhecimento do bem que se recebe, e fica o afeto compartilhado, ainda que de forma defeituosa. Prevalece a falta que fica, o vazio da ausência: a tia-mãe já falecida.

Após devolver os meninos à tia, o pai andou sumido com a outra família. Cerca de oito anos sem dar notícia. Sem que se soubesse por onde andava. Nesse tempo foi que o menino cresceu.

A mãe Sebastiana morreu primeiro. Vivia ela só com o seu silêncio e sua solidão. Analfabeta e de pouco assunto. Conversa avulsa, quando muito. Quedava-se contemplando o filho já rapaz que a visitava, e vinha-lhe um riso curto e repentino, seguido por comentário relacionado a ele quando criança; coisa de que ela se lembrava e achava graça. A voz tirante a grave; o rosto de traços rústicos; o sobrecenho carregado, o olhar cor de terra sombria. O semblante fechado e um ar pensativo de quem parecia aceitar resignadamente o rumo tomado por sua vida. Vê-la assim era doloroso para o filho, por conta do sentimento de compaixão que o perseguia.

A mãe tinha uma violinha velha, ponteava trechos de modinhas e era comovente. Lembrava-se de seus tempos de moça. Isso também doía no filho, incomodava-o imaginar a mocidade da mãe e seus sonhos perdidos. A pobre mãe. Morava numa casinha simples, humilde, em cidade do interior, onde preferia ficar. Não se da­va bem na capital em que o filho re­sidia. Em sua pró­pria ca­sa, mantinha sobre uma pequena mesa a “máquina de costura de mão”, como então se dizia da máquina sem pedal, tocada a manivela; e costurava por encomenda, a mãe. Por certo que também tinha lá sua vida particular, algum namorado ocasional. Tocava sua vida. Já o filho caçula numa vida andarilha, buscando seu próprio caminho.

A terra cobre a sepultura no Parque Memorial. Valdemar se foi. O pai. Aonde vai agora, assim sozinho? Ouve-se pelo “campo” o voar de um passarinho.

O sopro do vento Mas, olha só, o menino que se foi com os demais, deixou seus rastros por aqui, escritos no pó, como se a dizer que um dia os ventos voltam e os tempos se reencontram. Os meninos por escrito. Demiro, Divino, Aparecida, Valdinho. Folga sabê-los ainda vivos. Saídos do tempo cíclico para o tempo interior da ficção, a cavalo de letras, com a língua de trapo do fio narrativo. O conto como se conta pelo fio, num colar de contas-de-lágrimas.

Os ventos que voltam, que cinzas sopram agora? Os tempos de volta, o que contam do que foi embora um dia? Que rosto de dor agora se contrai e se mostra dos meninos? Que rosto lhes resta, em ruínas?

“Que mal pergunte, o se­nhor é parente do me­nino que está procurando? É mes­mo?! Mas então é o se­nhor mesmo?! O­ra, ora, quem ha­ve­ria de imaginar? Esse mundo dá mesmo suas voltas.”

Ele mesmo que se procura, um pouco se reencontra. A velha casa ali ao lado, soturna, silenciosa. Um livro que se fecha no tempo. Por dentro, quem sabe? O espírito do passado, por suposto que não inteiramente morto. “Vivo! Ele está vivo! Abriu os olhos! Mexeu ali!” Os gritos das curicacas. Que o menino virou personagem de livro. Ali, feito fantasma. Uma sombra que se move no desemboque das palavras.

Valdivino Braz é jornalista e escritor.

Nota: o conto aqui publicado, misto de prosa poética, foi vencedor da primeira etapa, em seleção regional (Centro-Oeste), da 14ª Edição do Concurso Cultural Talentos da Maturidade, promovido, em âmbito nacional, pelo Banco Santander (Santander Cultural/Ministério da Cultura). Agora revisto e reestruturado, posteriormente o conto será acrescido de uma segunda parte, ainda em processo de elaboração. O título do conto inspira-se no nome do filme norte-americano “Alice Não Mora Mais Aqui”, de 1974, dirigido por Martin Scorsese, com roteiro de Robert Getchell.

O tempo passa como um rio que nos olha sem parar

[caption id="attachment_16251" align="alignright" width="620"]Lori McNamara Lori McNamara[/caption]

Graça Taguti Especial para o Jornal Opção

Era um folguedo antigo, lembra? Jogar bolas de gude, no cimento da pra­ça. Ou tampinhas de refrigerante. Como é também um tanto desbotada a palavra folguedo, mas que goza, entretanto, de um frescor artesanal. Frescor que passeia livre em nossas pueris lembranças.

Nossos olhos já brincavam de ziguezaguear à toa, se intrometendo em nossas infâncias, algumas travessuras mescladas ao sumo de maduras carambolas, roubadas gostosamente do pé da casa das tias ou vizinhas.

Depois nossos olhos cresceram, adolesceram e foram jogar boliche, sempre redondas, pesadas e incertas bolas, buscando acertar metas no longo corredor comprido e encerado. Diversão noturna, regada à cerveja, azarações, alguns eventuais ficantes no pulsar das madrugadas promissoras.

Mais tarde, entramos na sinuca dos bares. Jeito cool, meio mafioso, as bolas, o taco nem sempre preciso, a bola sete, estratégias e desvios simultâneos no entrechoque destes olhos rolando a esmo na mesa de feltro.

Sem que imaginássemos, porém, perdemos certa vez nosso dinheiro e, com estas bolas-olhos-de-viver-aos-solavancos, fomos com um esfaimado sorriso circense exercer malabarismos nos nevrálgicos abre-e-fecha dos sinais de trânsito.

Eram todos olhos metafóricos os nossos aqui descritos. Você já reparou? Os da infância, perdidos em superfícies cimentadas. Glóbulos de retina exposta a aventuras inexperientes e verdes ainda, piscando buliçosas e irrequietas traquinagens.

O boliche, a sinuca, o fascínio da sedução redonda, ultrapassando sinais de trânsito, definiam eventuais percursos ou distrações dos nossos olhos. Até então a malícia estava em greve, sonolenta, desconhecida e distante dos nossos neurônios e da nossa curiosa visão — sentido, aliás, explicitamente alerta, filtrando cores e fatos, acoplados nas membranas de paisagens do mundo.

Aí nossos olhos tomaram outros rumos. Foi quando a maturidade bateu à porta de nossa razão afoita e já um tanto embebida em inaugurais malícias. Os olhos esconderam-se ladinos na saliva ambiciosa de porta-joias, na conta corrente surrupiada do quase noivo. Na gula adornada por azeitonas importadas, em tentação nos couverts de restaurantes caríssimos, untados a pompa, elegância e cardápios únicos.

Nossos olhos também, sem mandar recado, escorregaram em relacionamentos fortuitos e se perderam rapidamente nos muitos outros rondando à nossa volta. Olhos que eram teus, por acaso. Eles ansiavam gritar “Amor, amor”, mas sem quaisquer sinais de emissão sonora.

Gritar em silêncio vítreo e corajosamente honesto, algum assustado sentimento, desatrelado das tecnologias do século 21.

A fuga, contudo, anunciava-se embutida neste encontro, quando nossos olhos se adesivaram a outros e aos teus.

Sim, porque, havia aqueles olhos outros, aficionados no redondo das bolas de futebol, rolando no milionário gramado junto aos pés dos nossos ídolos. As irresistíveis luvas e prêmios dos clubes internacionais.

Até que os smartphones invadiram nosso presente e a premência de atualíssimas intenções touch, apartadas da simples, aveludada e erótica tatilidade entre humanos.

Telas de amoled, sistemas operacionais velocíssimos. Os olhos se hipnotizaram com as premissas de tantos aplicativos e viagens nas redes virtuais.

De novo pularam fora as órbitas. Rejeitaram namoros licorosos em eloquente início. Saltaram para micro telas reluzentes e obedientes, afixadas em nossas mãos e dedos, nossas incansáveis e polivalentes gueixas digitais.

Atualmente circula nas ruas de países aflitos ardorosa campanha cingida aos retornos dos olhos à sua função de olhar, poetizar, admirar, contemplar as luzes e suas sombras no decorrer dos tempos e das horas mortas.

Olhos que aplaudam encantados todas as nuances de estações provisórias, aterrissadas nos vastos continentes da imensa geografia do planeta.

Que se intrometam em jogos de praça, bolinhas de gude inocentes, ou painéis digitais-eletrônicos consoles sofisticados e ultrassensíveis, viciados no comando de games complexos.

Mas que não desistam, estes olhos de vidro, de se recolarem plenos aos nossos rostos sedentos por contato. Que insistam sempre, estes olhos úmidos, em cerrar as pálpebras devagar. Não apenas durante o sono. Que fiquem à espera de delicados e mornos beijos.

Porque estes beijos e estes olhos macios ainda existem e resistem hoje . Mesmo que você duvide, eles existem e insistem. São carinhos apaixonados, embora sutis às vezes. E felizmente nada tecnológicos.

Graça Taguti é escritora e jornalista.

via Revista Bula

O desencanto de Woody Allen

“Magia ao Luar” é uma comédia romântica repleta de mau-humor, desencanto e citações filosóficas que, no final, sorri de forma inocente e apaixonada justificando uma das principais premissas do filme: a vida é indiscutivelmente um fardo, e cada pessoa necessita (tanto) de distração (quanto de mentiras) para seguir em frente

O intelectual e seus deveres

Em diálogo com autores-profetas, Carpeaux reflete sobre os riscos à civilização, oferecidos pela Segunda Guerra Mundial, e expõe as próprias angústias de exilado, entrincheirado com a liberdade

O silêncio dos calabouços

[caption id="attachment_15599" align="alignright" width="620"]Foto: Artchive Foto: Artchive[/caption]

Leonardo Teixeira Isolada nos recônditos dos matagais, entre os vales do Pitumbal, onde estourava es­treito do aquífero um açude na­tural, um casarão secular imperava majestoso. A casa era avarandada por grossas pilastras, suas paredes de pedras foram assim concebidas para não sucumbir aos canhões de uma futura e possível guerra. O avô Oliveira acreditava que a loucura do mundo lá fora viesse atracar em solo brasileiro depois da grande guerra. Então reuniu as famílias lo­cais com agregados e colocou em prá­tica seu plano furtivo de sobrevivência. Uma casa repleta de mistérios. Robusta como um forte, cheia de porões, sótãos, vãos labirínticos, mas­morras, calabouços e passagens secretas.

A guerra não veio, mas o velho O­li­veira se deteriorou com os pigarros de sua velhice, não sem antes fazer com que seu filho jurasse que não o enterraria, talvez por nojo dos vermes da terra. O velho queria deixar sua caveira mantida num daqueles silenciosos calabouços escondidos. Os lugares mais sinistros da casa não serviam para nada nesses tempos de paz moderna, salvo a alegria de algumas crianças corajosas e forasteiras, que depois pararam de aparecer.

O filho Oliveira encasquetou que toda linhagem de seu sobrenome não voltaria ao pó da terra, quando não mais estivesse disponível a essa vida excessiva no mundo. Quando rogou esse seu voto ao velho, ele se foi em paz com seus pensamentos, ficando naquele instantâneo momento com a mente vazia. O corpo debilitado deixou de sentir as dores que os últimos respingos de vida ainda lutavam para se manter, até afrouxar de vez e se esvair a sensação da realidade, decretando a falência de suas funções físicas.

O Oliveira filho desceu com os restos carnais do seu pai pelo porão central, abriu a porta de um armário, girou a parede e entrou pela passagem secreta num corredor estreito. Chegou numa saleta sombria onde havia depósito de grossos tijolos, areia, cimento e materiais de construção. Abriu um alçapão escondido sob um tapete que ficava no meio do cômodo. Teve dificuldades para descer com o peso de seu pai, escada abaixo, num espiral sinistro e escuro, tendo a vista clareada por um fino feixe da lanterna, naquelas profundezas abissais daquele buraco medonho.

Deixou-o num cubículo que nunca tinha visto, com cerca de dois metros cúbicos. Na entrada, a grade mostrou ser aquilo tudo o cafofo de uma penosa cela, de ar rarefeito, paredes grossas de pedra, enlodadas e úmidas, escuras e frias, e ali no solo algumas correntes, grilhões e cadeados. Deixou seu pai ali, ao lado de outros esqueletos esquálidos e contorcidos pelo tempo, alvos como a neve, a clarear aquela escuridão tenebrosa, mas sabendo que os vermes e organismos da podridão o encontrariam, aonde estivesse escondido, para que se juntasse aos parceiros de ossos, depois de ser consumida toda a carne do corpo imprestável.

Um repentino tilintar de correntes ecoou um urro fantasmagórico. Podia-se ouvir o barulho, os gritos abafados naquele silencioso calabouço. Como a lanterna falhava pelas pilhas fracas, o Oliveira filho deixou aquele lugar rapidamente, com seus agonizantes gemidos dos ventos. Fechou o alçapão, tampou-o com o tapete, passou pela passagem e regressou ao porão. Saiu de lá com a sensação do dever cumprido. Acabou se fechando em seus pensamentos contritos, tendo pesadelos noturnos terríveis. Esse filho Oliveira era uma retranca desmedida sem sentimentos. O homem era fechado e sisudo, e poucas vezes revelava seus dentes em sorrisos sociais. Era exatamente o oposto do seu outro irmão, o Oliveira filho caçula, a quem os pais e irmãos o chamavam simplesmente de Oliveirinha. Essa rapa do tacho vivia pregando peças nas pessoas, rindo alto de tudo e de todos, incluindo aí seu sério irmão Oliveira, que passou a nutrir profundas mágoas pelo irmão mais novo. Ele não levava nada na brincadeira e criava um péssimo rancor, sempre lembrando desses episódios fatídicos e os alimentando como se fossem seus filhos. Esse filho Oliveira era mesmo um pretensioso museu, que vive sempre do passado, criando um monstro dentro do coração envenenado. Com pés de caipora, vivendo sua vida presente toda enlaçada por esses ocorridos magoados. Tudo se sedimentava no seu coração como tijolos de uma parede bloqueada. Cada parte uma jocosidade pejorativa do irmãozinho. E ali construiu seu mundo repleto de obstáculos como os muros e paredes daquele casarão da família Oliveira.

Eis que o filho Oliveira mudou repentinamente seu comportamento. Sentindo-se injuriado constantemente pelas lembranças daquelas traquinadas, jurou vingar-se de seu irmão caçula. Porém, resolveu mudar seu modo de agir, passando a mostrar os dentes em sorrisos fáceis e mais constantes. Aplicou a arte dos tapinhas nas costas e aprendeu a copiar algumas das brincadeiras do irmão. Resolveu então cevá-lo para que se sentisse confortável e amistoso na presença do dileto consanguíneo. Mal sabia o rapaz que o sorriso do irmão Oliveira nascia sempre da ideia constante de acabar com a sua vida. Mas além de liquidar com sua existência, deveria ainda impedir que seus restos mortais retornassem ao pó da terra, conforme promessa ao velho pai Oliveira. Tudo isso de forma sombria, oculta, sem testemunhas e provas para usufruir de sua liberdade impune.

[caption id="attachment_15600" align="alignright" width="300"]Foto: Artchive Foto: Artchive[/caption]

Eis que numa dessas alvoradas mansas badaladas por suaves sinfonias de pássaros, em pleno dia de feriado junino, o filho Oliveira se aproveitou da solidão do casarão e levou seu irmão Oliveirinha para ajudar a decifrar um dito mistério de estranhas tumbas escondidas naquelas passagens secretas. O filho Oliveira perguntou se o rapazote tinha peito para se aprofundar naquele breu, e o jovem disse que dominava tudo por ali quando era criança. O irmão então prosseguiu com seu sórdido plano e cumpriu a primeira etapa na ausência de testemunhas. Levou consigo uma pá e alguns pedaços de pau, pedindo ao garoto que levasse um garrafão de água e que fosse na frente com a lanterna para iluminar o caminho. Passaram pelo porão central, abriram o armário, girou a parede secreta e entraram naquele corredor estreito. Oliveirinha disse que a passagem acabava ali e não havia mais nada, se recordando também que há alguns anos ali era um lugar limpo, com alguns mantimentos e provisões. Definitivamente não tinha restos de construções nem aqueles materiais para reforma.

“Vejo que o mano está enganado!”, disse o mais velho (afastando o enorme tapete do meio da sala). A­briu o alçapão e continuou: “é aqui que devemos descer. Vá na frente!” O Oliveirinha acatou a or­dem e desceu aquelas escadas escuras e espiraladas, dizendo que nunca entrou aquele local. “Será nossa fonte de alegria e descoberta!”, concluiu o sisudo. No meio dos degraus o odor fétido de seus pais impregnaram as narinas. O filho Oliveira disse que era a vontade do seu velho que se cumpria. O novato tinha que suportar aquela prova de resistência. Lá embaixo havia uma ante sala enclausurada e úmida. Depois dela, algo como se fosse uma masmorra subterrânea. Então passaram pelas grades e o jovem percebeu alguns vultos claros como ossos.

A pá fez “póf”. Um barulhão abafado como se tivesse rebatido um melão jogado pelo ar. O rapaz caiu desacordado com um açude sanguíneo na cabeça. Um filete de estreito riacho escarlate desceu pela fronte até se empoçar nos olhos, e dali se despedir em gotas pelas narinas até se espatifar em manchas estouradas no chão. O filho Oliveira cuidou logo de prender o irmão naqueles grilhões pesados, atracando-o em cadeados e correntes. Em breve retornaria a consciência, mas ainda ficaria desnorteado pela pancada. Seu algoz buscou os materiais de construção, carregando pedras, tijolos, areia, cimento e a água trazida pelo jovem, deixando aquele lugar para mergulhar num ofurô instalado num luxuoso banheiro lá em cima, no canto de um dos quartos da casa. Rompeu os sais de banho e se lavou dos respingos de sangue.

O filho Oliveira voltou ao cubículo com as forças renovadas para construir mais muros reais e sentimentais. Lá embaixo, no cubículo, o irmão já tinha recuperado seus sinais sensoriais, mas estava com muito medo daqueles ossos e do corpo de seu pai em decomposição. Quando viu o filho Oliveira chegando disse: “Graças a Deus! Tire a gente daqui!”, mas o irmão não respondia. Antes disso, fitava-o de cima embaixo e admirava sua condição de preso. “Pare de brincar... Já conseguiu o que queria. Pronto... Sujei minhas calças de medo. Agora vamos embora!” E o filho Oliveira analisava tudo aquilo como se contemplasse uma obra prima de móvel escultura, como se fosse um belíssimo quadro e ainda fechou os olhos para sentir melhor a música de suas súplicas.

Quando o irmão Oliveira juntou areia, cimento e água, misturando a massa cinzenta da pá, tudo isso revelado pelo finíssimo feixe de luz que apontava pa­ra o baixo teto daquele am­bi­en­te, percebeu a maldade do irmão e começou a gritar in­da­ga­ções. O irmão, sempre calado, com pedaços de madeira mol­da­va o solo com aquela perfeição. Do primeiro andar de ti­jolos passou para dois e três. Fez uma pausa e se sentou para o­b­servar o irmão conjurar, orar, xin­gar, suplicar, gritar, silenciar em alternados temperamentos. O Oli­veira mais velho não perdia um movimento daquelas oscilações.

Ergueu quatro e cinco andares de tijolos e pedras, alcançando mais da metade da porta. Perguntou ao irmão qual seria a sua última refeição. Após os praguejos do Oliveirinha, seu irmão gritou e urrou muito alto, até que Oliveirinha se silenciasse. Tornou a perguntar qual seria seu último lanche, pois refeição estaria agora fora de cogitação. Alertou o garoto que novo protesto iria permanecer faminto até a morte. O jovem escolheu um sanduíche com ovos, bacon, carne bovina, alface, milho e batatas. Para beber, um suco de laranja. O irmão ironizou a escolha americana, mas foi providenciar o alimento. Depois de alguns minutos voltou com uma bandeja e sobre ela o sanduíche, o copo de suco, um guardanapo e uma vela acesa. Trouxe também um tamborete e se sentou em frente a parede parcial. Conferiu se estava firme e voltou para o tamborete. Pôs a bandeja sobre o colo e passou a ingerir o quitute desejado pelo irmão lentamente, olhando nos olhos do Oliveirinha. Ele ficou irado, cuspiu, esbravejou e virou um leão. O irmão Oliveira fitava aquilo tudo sem piscar, e devorava o sanduba regado à laranjada como se estivesse em frente a uma tela de cinema. Quando acabou de comer, limpou os lábios com o guardanapo e as mãos. Levou a bandeja de volta com o tamborete, deixando a vela acesa em cima de sua última fileira de tijolos.

Subiu aos aposentos superiores e resolveu tomar novo banho. Mas lá naquela água quente ficou curioso para ver a desenvoltura do irmãozinho. Apressou com as roupas e desceu novamente. Teve certo asco com o cheiro do lugar, pois estava com o estômago cheio, mas chegou rapidamente e o irmão iniciou com os vitupérios, a­frontas e outras depravações. “Nem assim você toma jeito, O­liveirinha. Cresça! Pare de pregar peças... Ops, você já vai parar brevemente... Quero que ao menos nesses últimos instantes você amadureça!” Então o irmão chorou, se debateu (se machucou!) e esgoelou penosamente. Seu algoz irmão Oliveira gritou e urrou novamente, até que Olivei­ri­nha silenciasse. “Tenha um pingo de dignidade, morra ao menos como homem!” O irmãozinho chorou baixinho e viu seu irmão mais velho aumentar a fileira de tijolos.

A segunda parte do trato estaria resolvida. O mistério do desaparecimento de Oliveirinha chocou os familiares e a comunidade. Com o passar do tempo, sobrou somente o filho Oliveira, ainda mais sombrio e calado. Dizia que isso se devia pelo desaparecimento dos seus familiares. Anos depois acabou se juntando a uma interesseira com quem teve um filho. Esse neto Oliveira vivia tendo pesadelos e dizia ouvir coisas durante as noites naquele casarão. Ecos de súplicas, gemidos de dor, gritos, passos e correntes. Seu pai então resolveu certo dia entrar naquelas passagens secretas sombrias e encontrou a clausura intacta. Resolveu, com o auxílio de uma marreta e de uma picareta, remover uma das fileiras daqueles tijolos assentados por ele. Algo o sugou para dentro da cela e depois a parede se restabeleceu por si. Foi assim que o neto Oliveira ficou órfão com seu pai desaparecido.

Com a venda de parte da herança se criou sozinho e frequentou escola na cidade mais próxima. Lá na escola havia um coleguinha de nome Augusto Pereira, que vivia desacatando o neto Oliveira, humilhando-o na frente de todos, tomando seu lanche e o achincalhando com regularidade. Seis meses depois, apavorado com pesadelos sombrios de prisões eternas, Oliveira neto encontrou a passagem secreta, mas (ainda!) não descobriu o alçapão que levava aos ossos. Mesmo assim, algo o encheu de coragem e resolveu erguer a cabeça. Era preciso punir sem deixar vestígios, ficando impune diante das autoridades e da sociedade, pois aquele Augusto Pereira arrancara sua honra. Mas, entre a frieza e os pratos da vingança, as ideias regurgitam calores de um ódio tórrido.

No dia seguinte, numa manhã muito agradável, olhou o coleguinha e sorriu. Mal sabia o estudante que aquele sorriso vinha da decisão tomada por Oliveira neto: os Pereiras nunca mais voltariam ao pó da terra!

Leonardo Teixeira é escritor.

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Três contos de Carlos de Edu Bernardes

O hospital

Eu moro perto de uma estação aonde chegam e partem pessoas todos os dias: é um hospital imenso. Às vezes, à noite, olho pela janela, acordado que estou pela minha inseparável companheira insônia, e vejo sempre muita movimentação no seu interior. Em meio a luzes quase opacas não é difícil imaginar que ali alguém está morrendo, ou nascendo.

É um hospital público, o seu expediente é ú­nico e sem pausas. Nele, muitas vidas en­tram na fila para se extinguirem pois, tão ca­rentes de médicos e medicamentos, quando vêm até um hospital dessa natureza é porque a saúde já suportou de tudo. E desoladamente, já vi acontecer, algumas abandonam de vez e silenciosamente seus corpos debilitados ali mesmo no corredor, porque morrer não espera.

Por outro lado há vidas que entram na fila para dar à luz outras vidas. Instantes em que prorrompem novíssimas e frágeis presenças, delicadamente transportadas pelos mesmos corredores, porque nascer também não espera.

Nalgumas vezes, percebo crianças já crescidinhas nas janelas esboçando um tchauzinho entre um sorriso e uma careta, inocentes das coisas que acontecem ao seu redor. Vívidas, porque protegidas pelas suas infâncias, dão a impressão de estarem no assento traseiro de um carro de passeio ou simplesmente indo para a escola num banco de ônibus. Mas, naquele hospital público e superlotado, elas não me parecem estar repetindo esses gostosos momentos. De repente, pressinto algo que, apesar de corriqueiro, ainda me soa incomum: é quando os quartos estão vazios exalando um previsível anúncio da chegada de alguém, que já sem sorrisos, aguardará serenamente a sua partida.

Por isso, poucos entram nos quartos e saem pela mesma porta que entraram. E assim, voam madrugada a fora pelas janelas, pelos vãos dos prédios, leves e tranquilos e, talvez, até se espantem ao me notar concentrado em algo que não posso ver...

Daí eu sempre me pergunto: serão somente pessoas todos aqueles seres de branco a transitar por aqueles recintos? Serão apenas doentes, moribundos ou enfermeiros a caminhar para lá e para cá, alguns tão levemente, outros tão pesadamente, mas todos se movendo incansáveis e resignados num mesmo lugar?

Ademais, flutuarão perto da minha janela as alminhas puras de bebês desembarcando ali tão cheias de esperanças? Subirão as almas de pessoas, agora isentas das suas histórias, bebendo o espaço numa outra dimensão? Creio que Fernando Pessoa estava certo ao escrever: “A vida é uma estrada. Só porque você fez uma curva e ninguém mais o vê não quer dizer que você deixou de existir”.

A partir de hoje colocarei flores na minha janela.

Uma palavra

Estava eu no rio quando uma palavra boiou perto da sombra de uma árvore. Era uma palavra feia, embolada, tinha um cheiro de coisa estragada, era viscosa e escura.

Pelo jeito, ela nada sabia sobre córregos, bichos e matas, porque por onde passava, e ao seu redor, era apenas água, lambari e planta se sujando e pronto.

De todas as palavras do meu parco repertório e de muitas pronúncias saltitantes no vilarejo, essa era ruim de falar e tinha um semblante ambicioso e mau, como se suas letras conspirassem macular também o dicionário.

Sob o sol e o céu ainda azul, pressenti a sua certeza em desfilar altiva por cursos d´água e em dançar inconteste pelos ares e pétalas. Ao mesmo tempo, nenhum esboço de receio em ser impedida por humildes e simples ribeirinhos, homens de bem. Pelo contrário. Sendo abusada e apadrinhada da ganância, não exalavam dúvidas sobre sua presença em todos os lugares daqui para diante.

Incrédulo, e como quem agradece to­dos os dias por esse abençoado mundão de meu Deus, além de respeitoso com as poucas palavras conhecidas, eu a segurei pelos lados e tentei clarear suas sílabas oleosas de substantivo. Porém, nesse instante e com espanto, constatei que ela não ficaria limpa e sim que contaminaria os panos da minha canoa e os corpos dos meus peixes sadios de natureza.

Assim, com o seu rastro turvo nas mãos e nas roupas, estremeci ao vê-la facilmente retornar para as águas. Logo, outras do mesmo álbum de sinônimos vieram acompanhá-la.

Agora, de cada cin­co palavras ditas nos arredores e nos açudes, três são 'poluição' e as ou­tras duas, pelo visto e sentido, nem multiplicadas por mil acabarão com ela não.

A casa dos meus brinquedos antigos

Eu me mudei. E, por uma dessas coincidências imobiliárias, ou simplesmente por coisas que têm que acontecer, o meu novo lar é vizinho da casa dos meus brinquedos antigos. Ontem, percebi que eles me reconheceram, pois me olharam demoradamente pela janela quando cheguei tarde e cansado do trabalho.

Agora, dá quase para apalpar a surpresa de cada um deles ao me no­tarem assim tão sério, tão grande, tão opaco, tão gordo. E talvez de­du­zam, resignadamente, que acabei me transformando em mais um a­dulto com um arremedo de rosto. Quem sabe até sofram por esses, nós, seres que jogam fora pipas, ca­sinhas e bolas de gude – ou vidros de maionese para colocar um pe­que­no peixe. É... Toda infância deveria ter um céu e um riacho à prova de esquecimentos, ou exigir alarme no despertador para serem visitados.

Vejo que a casa dos meus brinquedos antigos não tem mais, nos seus espaços, a sensação de que irmãos e amigos vão chegar a qualquer momento e espocar sorrisos e assovios. Suas brincadeiras e pantomimas, adubos imprescindíveis para qualquer estágio da vida, devem ter ficado de vez nas fotos amareladas de álbuns perdidos e jamais reclamados, ou regularmente encaixotados. Bi­sonhamente, alimentos assim não estão nas televisivas e sérias regras de nutrição...

Por isso, muito menos há indícios de que os meus brinquedos antigos possam vir a pertencer ao meu mundo atual. Aqui, na nova casa, com horários tão rígidos, há home-banking, ao invés de um vira-lata que necessita de um banho e carinho. Casas de adultos não brilham o bastante pa­ra guardar um jogo de queimada, nem para continuar pulsando a lembrança do primeiro toque na mão de uma garota durante uma matinê do Jerry Lewis.

E lá, do outro lado da rua, reverbera, por fim, a constatação de que não há mais o que fazer sobre os meus primeiros e fascinantes espantos.

Certos de não haver resquícios de criança nos meus olhos, os meus brinquedos antigos recolhem-se calmamente, sem interesse qualquer pelos lugares por onde tenho andado.

Carlos Edu Bernardes é graduado em Filosofia e autor do livro de contos “Minhas Mulheres, Essas Ventanias”.

Getúlio Vargas: do crepúsculo à entrada para a história

Na última parte da trilogia, o jornalista Lira Neto, amparado numa minuciosa pesquisa, reconstitui os últimos anos da vida de Getúlio Vargas procurando elucidar um dos períodos mais importantes da história política brasileira

Navegante

José Fernandes

[caption id="attachment_14567" align="alignright" width="620"]Foto: M. File Foto: M. File[/caption]

Quando tiveram de sacrificar o Navegante, Sontônio Bello ficou desconsolado. Era um boi de estimação, o par de Navio. Bastava declinar-lhes os nomes para eles se emparelharem, onde estivessem. Nenhum veterinário conseguira um diagnóstico exato sobre aquela doença. Navegante emagrecia a olhos vistos. A disenteria não amainava. Nenhum remédio conhecido pela ciência médica, alopática ou homeopática, surtia efeito. Nem mesmo chás de mané-magro, carqueja ou boldo, infalíveis em outras ocasiões. Sequer os poderes do sagrado: as benzeduras de Maria Coelha e suas rezas bravas, sempre acompanhadas de cura infalível, eram o mesmo que água com açúcar. O animal piorava a cada dia, apesar da vontade de viver que se via em seus olhos e na disposição de manter-se em pé. Para não perdê-lo totalmente, Sontônio seguiu o conselho de Salustiano, seu tio: abatê-lo o quanto antes.

À abertura da buchada, a resposta para o seu mal: cinquenta pregos dezoito por trinta e cem, dezoito por quarenta. Sontônio ficou indignado; mas deixou tudo nas mãos de Deus. O autor era conhecido de todos: Jodisão. Não havia dúvidas: a demanda pelo desvio do córrego de suas terras a tudo explicava; mas não justificava a maldade daquele vizinho de anos. Até compadres eram; embora sempre fosse obrigado a viver com um pé atrás e outro na frente.

Passou-se o tempo, mas a lembrança de Navegante não se apagava da memória de Sontônio Bello. Aquele passeio à cidade fora providencial. Conhecera uma fábrica de estátuas que trabalhava com fibra de vidro. Mandara fazer uma, em tamanho natural. Sua chegada trouxe vida nova ao senhor da Fazenda Conceição de Arco Verde. Parecia-lhe recuperar a junta de bois com que trabalhara mais de quinze anos. Até os mugidos de Navio e Navegante a solicitar a ração da tarde, chegara a ouvir, aquele dia. Todavia, não queria o Navegante ali no estábulo. Mandara colocá-lo próximo à porteira da divisa com Jodisão. Seria uma espécie de punição por tamanha crueldade. Não há nada pior que um crime rememorado a toda hora. É como pisada de arreio, sempre esfolando a ferida.

No outro dia, ao aproximar-se da cancela, Jodisão quase teve uma vertigem. Soubera que o animal fora abatido, há anos. Como pode ele estar ali, com aqueles olhos vivos, a olhar-me, espantado, como se houvesse descoberto o mal que lhe fizera ao alimentá-lo com aquelas palhas recheadas de pregos? Será que ressuscitaram o Navegante? Ele está em posição de ataque! Será que veio cobrar-me a vida abreviada pelo mal que a indigestão lhe causou? Assombração, à noite, sempre soube que pode existir; mas de dia, com o sol quente, é a primeira vez! Jodisão estava imóvel, em seu cavalo, como a estátua. Os olhos fixos de Jodisão no animal e o calor do sol davam-lhe a impressão de que o boi se movia em direção à cerca. Ainda bem que estou a cavalo! Como que o compadre Antoim foi comprar outro boi igualzinho, sô?! Oh gente! Tava até me esquecendo de que tenho de ir trabalhar. Ah! É uma estátua! Que desaforo, botar essa coisa bem aqui, na minha passagem! Nunca é tarde para se acertar contas nessa vida! O inferno é aqui mesmo, dizia o meu avô! O inferno são os outros, ouvi dizer certa vez a Feliciano, homem de saberes e livros.

Àquela noite, Jodisão não conseguiu o sono de quem passa o dia sobre uma tora puxando serra. A todo momento acordava-se aos sobressaltos, sempre correndo do Navegante que abandonara aquele passo pachorrento do engenho ou do arado, para precipitar-se sobre a cerca e vazá-la como se os fios de arame não passassem de linha de costura. Os chifres, já rombudos pelo tempo, agora lhe pareciam pontiagudos; prontos para lhe rasgar as carnes das nádegas ou dos costados.

Jodisão não queria acreditar no que lhe estava acontecendo. Sabia que não passava de sonho; mas a cada vez que se punha a modorrar, a figura do animal lhe aparecia, sempre mais ameaçadora. Seria o espírito de Navegante que estava por dentro daquela estátua? Levantou-se disposto a destruí-la; porém, Belmira, a mulher, acordou-se:

— O que foi, homem? Já despertou, pulando, umas três vezes!...

— Aquele maldito boi não para de me perseguir. Basta eu fechar os olhos para vê-lo, enorme, vindo sobre mim! Você também não está vendo?

— Eu, hem!.. Ta ficando maluco, Velho?! Espere que vou lhe trazer uma água com açúcar! Você ficou impressionado com a estátua. Aquilo não passa de um plástico qualquer!...

— Mas que é idêntica ao Navegante, é!...

— Quem mandou fazer maldade!?...

— Vá pros infernos, mulher! Vai querer me azucrinar.... também

— Aqui está a água! Vê se se acalma, homem! O galo já cantou; deve ser umas quatro horas!...

Jodisão, àquela noite, ainda se acordou, cansado, mais duas vezes. O coração pulava-lhe na garganta, como se quisesse sair pela boca.

Dia seguinte, pensou dar volta pelos Rosa, para chegar ao serviço. Fez os cálculos. O percurso triplicaria. Era melhor enfrentar o mistério. Sempre fora homem de coragem. Nun­ca perdoou desaforo. Não será uma estátua que irá me abalar, diabo! Irei por onde tenho de ir. Se o demo aparecer, meto bala nele! Não será uma estatua que irá me perturbar os nervos!

Jodisão chegou à porteira, trêmulo. Não estava se conhecendo. Nem mesmo no dia que Toim Porela lhe apontara aquele revólver, chegara a tremer. Que diabo tem esse boi? Um tropel de animal o seguia, sem que se visse nada às suas costas. Os cascos do cavalo não poderiam produzir tamanha cavalgada. Será que estou ficando louco?

Naquele dia Jodisão trabalhou atabalhoado. Não fosse a maestria de Geraldo Polina, e teriam inutilizado toda uma tora de jacarandá. Em seus ouvidos, o reque-reque da serra era contraponteado pelo tropel de Navegante que, como no sonho, estava sempre ao seu encalço. Não via a hora de o dia terminar. Iria tomar uma boa birita para poder dormir sossegado. Foi pior, sonho e alucinação se conjugavam em seu inconsciente. Madrugada velha, despertou-se, aos gritos, empapado de suor.

— O que houve, Jodisão? perguntou-lhe Belmira, amedrontada.

— Não me amole, mulher! Não vê que, desde que botaram esse boi aí na divisa, não tive mais descanso!

— Ara, homem, não vê que não passa de um monte de... Nem sei do que... É uma coisa imóvel, como uma fotografia! Por que você não ficou alucinado quando tiveram de sacrificar o xodó de Compadre Antônio?...

— Não sei! Parece que a estátua trouxe o espírito do animal de volta:

— Que espírito?! Animal nem alma tem!?...

— Quer saber de uma coisa? Vamos dormir que, amanhã, me espera uma tora enorme de sacupema para fazer casqueiro! Além disso, ainda tenho de trabalhar para esse homem! Ele não quer perder um palmo daquela árvore que seu trisavô plantara naquele alto e que a última tempestade derrubou.

O sono não veio mais àquela noite. Jodisão levantou-se moído. Tenho de tomar uma atitude. Se esse boi começou a perseguir-me depois que instalaram aquela coisa ali na porteira, só me resta dar-lhe um fim. Mas, se não havia como provar que eu fora responsável pela morte do Navegante, agora, se destruí-la, além de um crime novo, ainda ficará patente o antigo. Não tenho saída. Além do mais, ela está bem à frente da casa de Salatiel, que poderá me delatar. O negócio é esperar. Nada como um dia atrás do outro. Às vezes, tudo não passa de impressão minha. Um boi morto não poderá me fazer mal algum. Não sei por que estou dando importância a sonhos! Vou encarar esta desgraça, como sempre fiz. Vou passar por lá, hoje, decidido, como se nada de novo houvesse nas proximidades.

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Jodisão abriu a porteira fingindo ignorar a estátua que lhe parecera ainda maior. Que impressão mais idiota! Onde já se viu matéria morta crescer? Assim que transpôs o rego d´água, sentiu um bafo quente pelas costas. Baba de boi, mesmo! Malcheirosa, como se viesse de entranhas podres. Mais essa agora! Como explicar esse mal-cheiro em minha roupa? Se contar a verdade, vão dizer que estou maluco. No trabalho, Geraldo não reclamou do almíscar. Não queria que ele me visse naquele estado. Ainda bem que ele fica em cima do jirau da serraria! Mesmo assim, resolveu inquiri-lo sobre a causa daquela fedentina, vê se ele dizia alguma coisa, nem que fosse para dizer que devia ter tomado banho depois de um dia inteiro de suor:

— Compadre, não há de ver que um passarinho me deu uma cusparada, quando passava pela capoeira! Acho que o excremento se misturou com o vapor da água e impregnou minha camisa. Está sentido um cheiro sufocante, Compadre?

— Estou não, Compadre! Acho que é impressão sua! Sua roupa está limpa, como foi pega do armário. Não vejo nada nela, não! Deve ser impressão sua!

Que diabo! Só eu me sinto sufocado com esta coisa. Será que o Compadre está cego? Como que me sinto sujo e malcheiroso?

À volta para casa, pareceu a Jodisão que a estátua tinha se aluído; estava mais perto da estrada. Como pôde se mover, se está afixada em uma sapata de concreto? Esse bicho está a fim de me liquidar. Por que ele não me chifrou numa daquelas vezes que o alimentei com palha e prego? Eu o chamava, e ele vinha, com aquele passo pachorrento. Abria a boca e engolia a palha, mal esta se molhava com sua baba de garapa, tomada ao cocho, no curral. Os pregos desciam sem que os mastigasse. Depois, se ninguém sente este fedor, alguma coisa está errada! Por que só eu me sufoco com este almíscar insuportável?!

Jodisão não desejava nova agressão, semelhante à que lhe ocorrera pela manhã. À aproximação da passagem, fixou os olhos nos olhos estatelados da estátua, como a dizer que não temia as energias que ela parecia emanar. Ao fechar a cancela, pôde vê-la frente à frente, embora sentisse que ela o acompanhara todo o dia. Antes de se virar para o destino, um berro gemido e uma golfada de sangue em seu rosto. Um sangue quente, visguento, que lhe escorria pelas vestes, avermelhando-as. Jodisão levou a mão ao revólver; mas recolheu-a, como se uma força superior a sustivesse. Pela primeira vez na vida, teve medo. Percebeu que não enfrentava homens; mas o espírito de um boi vingativo. Após limpar os olhos, pôs-se a caminho, sem nada dizer.

Ao chegar à casa, quis livrar-se daquela coisa pegajosa que lhe escorria pelo corpo, antes que alguém o visse naquele estado. Tinha de pedir roupa limpa à mulher. Sabia que Belmira não se arriscaria a contar nada a ninguém. Chamou-a, mas ela não manifestou espanto algum ante sua viscosa carapaça vermelha. Será que só eu estou vendo essa coisa imunda que se adensa à passagem do tempo? Acho melhor testar os olhos de Belmira:

— Belmira, você não esta vendo nada no meu rosto e na minha roupa?

— Não! Por quê?

— Por nada, não!

Esse bicho tem parte com o demo ou... será castigo de Deus?! O Geraldo também não sentia o mau-cheiro; não via nada em minha camisa. Achou até que ele é que fora cuspido por algum pássaro. O que posso fazer para me libertar dessa coisa!? Amanhã será domingo, vou aproveitar para ir à casa de Toimbijim. Se o povo tem razão, ele deve entender das coisas do Sujo e poderá me dar uma receita para eu deixar de me influenciar por essas coisas do além! Onde já se viu um boi morto, há tanto tempo, acabar com a minha tranquilidade!

Jodisão banhara-se; contudo, continuava com a sensação de que o sabão de sapucaia não retirara nada daquela gelatina grudenta que lhe impregnava, agora, até as entranhas. À noite, a bem dizer, não dormira! Sentia-se revolvendo dentro de uma câmara de visgo, a cada vez que se virava na cama. Ao primeiro canto do galo, levantou-se. Amanheceria na casa de Toimbijim.

O pactuado já ordenhava as vacas, quando Jodisão chegou. Toimbijim manifestou certa repugnância ao vê-lo.

— Eu já o esperava, Compadre! As cosias não andam boas pro seu lado. O pior é que nada posso fazer. Você sabe que Antoim Bello é homem que nunca fez mal a ninguém, mesmo quando se vê prejudicado. Não tenho poder algum contra ele. O Grande Bem o protege!

— Até quando esse boi vai me perseguir? Não aguento mais, Compadre! Este visgo malcheiroso que me envolve, causa-me um mal estar dos diabos!

— Espere um pouco, que vou consultar os meus protetores!

Passada uma meia hora, Toim­bijim retornava, cabisbaixo. Sentou-se no tamborete usado para a ordenha, mas nada dizia. Jodisão olhava-o, inquisitivo. Será o que me aguarda? Se ele disser que devo pedir perdão ao Sontônio Bello, está enganado! Prefiro enfrentar toda desgraça, que me humilhar.

— Olha, Compadre, essa coisa só vai acabar, quando lhe ocorrer uma grande desgraça. Não sei o que é. Será um grande mal!

Desconsolado, Jodisão se despediu do Compadre e se pôs a caminho. Ainda bem que não preciso transitar por aquela estrada hoje. Passar o domingo com essa sensação de estar coberto por uma massa imunda é horrível. Ainda bem que só Compadre Toim a vê. Já me encontrei com o Zé Bellinho e o Ângelo Bello, e eles nada esboçaram que denunciasse repugnância. Zé Bellinho até achou que estou com ótima aparência. Ele é muito brincalhão, mas não acredito que tivesse ironizado. Se fosse a mulher dele, Conceição, sim; ela tem um terceiro olho. Capta as coisas no ar e na matéria.

Jodisão chegou à casa e encontrou-a entupida de filhos, netos... Entrou e foi direto para o quarto. Não estava para conversas, ainda mais que sentia um cheiro sufocante de sangue podre. Expor aquele visgo ao sol não fora uma boa medida. Sentia-se envolvido por uma camada gelatinosa, deteriorada. O filho mais velho, que viera ter com ele, nada dissera. Real­mente, estou dominado pelo espírito da vingança, sem poder me defender. Logo eu que sempre comandei as ações, eu que dominei grandes e pequenos. Todos sempre me disseram “Sim senhor” e, agora, nada posso contra essa força invisível que me anula.

Aquela noite, passara-a com o tropel de Navegante nos ouvidos. Cada vez que se acordava, a cabeça estava para estourar. Não de dor, mas pelo ruído dos cascos no cascalho. Não era apenas o Na­vegante. Eram muitas juntas de bois que se aliaram a ele, inclusive o Navio, morto meses após o infortúnio do velho companheiro de canga. Somava-se a esse mal estar a fedentina de sangue em decomposição, que lhe descia pelas narinas, como se as fosse estourar. Isso é sofrimento demais para um ser humano. O pior é que Com­padre Toim me disse que desgraça maior se abaterá sobre mim.

Não sei se vou aguentar. Qualquer coisa, estouro os miolos. É o único jeito de aliviar esta vida miserável. Até a chegada da es­tá­tua, vivia tão tranquilo! Não sei por que acontecem estas coisas comigo. Nunca fiz mal a ninguém. Apenas cobrei aos outros aquilo que me tiraram. Bastava saber que alguém houvesse falado qualquer coisa, para tirar satisfação. Mas isso não é motivo para que esse boi venha me aporrinhar!

Àquele dia, ao passar pela estátua, cobriu o rosto com o chapéu, esperando que o animal não se desse pela sua presença. Sua artimanha, no entanto, não surtiu o efeito desejado. Bastou pôr o pé no terreno de Sontônio Bello, para ouvir um espirro, seguido de uma gosma que veio se sobrepor à outra; só que ainda mais nauseante. Com o corpo todo encoberto de visco, seus braços ficaram suspensos no ar, parecendo um pássaro pronto a alçar voo. Como irei trabalhar com essa coisa me comprimindo o corpo? Resolveu enfrentar o animal, pelo menos em pensamento. Por que não me mata de uma vez, já que está se vingando do que o fiz, há anos? Como resposta ouviu um berro sonoroso, parecido com uma gargalhada.

Para se ver longe daquela coisa e de seus poderes, a que não conseguia explicar, esporeou o matungo e virou a curva, que se seguia ao rego d’água. Aos poucos, pôde retornar os braços à posição costumeira; mas o fedor vindo às ventas revolvia-lhe o estômago. Espero que Compadre Geraldo não se aperceba dessa coisa nauseante. Senão, como explicar-lhe as causas? Minha situação está ficando, cada dia, mais incômoda! Não sei realmente o que fazer, se nem Compadre Toimbijim soube me aconselhar. O pior ainda está por vir. Que castigo poderá se sobrepor à desgraça dessa fedentina? Teve de interromper o reque-reque da serra umas três vezes. O vômito vinha farto; mas não havia nada para expelir. Nem café tomara, ao sair. O estômago, embrulhado com o fartum de sangue podre, agora se comprimia, nauseado.

À hora do almoço, Jodisão sequer abriu a marmita. Sentia as narinas ardentes, como se fossem estourar. À simples vista da comida no prato de Geraldo foi suficiente para golfadas de bílis, secundadas pela observação do companheiro:

— O Compadre não quer ir à cidade, consultar o dr. Semir? Desde que chegou está muito amarelo! Parece que está com icterícia!

— Fique tranquilo. Não creio que seja grave! Quando chegar a casa, tomo um chá de mané-magro! Ele sempre me cura estas indisposições!

— Carqueja, não é melhor? Quanto mais amargo, mais o fígado agradece, Compadre!

— Você tem razão! Quando voltar, vou aproveitar e apanhar um molho, ali perto da cachoeira do Gonzaga!

Jodisão pouco rendeu àquele dia. À volta, porém, o animal deixou-o passar despercebidamente, como se nunca o tivesse visto; mas a camada incômoda de visgo continuava. O cheiro recendia no cérebro, como se fosse estourá-lo. O banho, mesmo esfregando-se com a escova de limpar alpercatas e coxinilhos, não eliminou o carniça que o envolvia. Teve uma noite tranquila. Belmira até estranhou não haver se acordado, com os costumeiros pinotes do marido. Pela manhã, até esboçou um sorriso; arriscou um assobio. Sempre ouvira dizer que quem canta seus males espanta. Tinha de espantar aquele fartum que lhe não saía das narinas. Talvez, esquecer-se da estátua, do mal que fizera ao Navegante, fosse a solução.

Ao dirigir-se ao trabalho, novamente fez de conta que nada mudara nas cercanias do rego que leva água à casa de Sontônio Bello. Passou, altivo, sem olhar para a estátua. Apenas o cheiro nauseante permanecia em suas ventas. Passou a primeira ponte, a segunda, tranquilo. A estátua realmente tinha se arrefecido. Será que o boi se contentara com o zunido de cascos no ouvido e com aquela redoma de nojo impondo-lhe um diuturno mal-estar? Não é bom festejar. Afinal, continuo dominado pela desgraça dessa estátua. Também não posso me esquecer de que algo pior haverá de me acontecer. A menos que Toimbijim tenha errado seus vaticínios. Foi um dia profícuo, aquele!

Ao entardecer, adotou a mesma postura. Boi de carro geralmente é cordato. Ainda mais o Navegante, que tinha receio até de coicear as mutucas que o azucrinavam, ao sol quente. À passagem, teve a sensação agradável de que a camada de visgo se desfizera, e o mal-cheiro se dissipara. Aquele barulho intermitente de cavalgada pelos seixos abandonara-lhe os ouvidos. Era a felicidade antiga. Poderia dormir sossegado, àquela noite. O boi se esqueceu de mim. Tomara que Toimbijim tenha falado aquelas coisas só pra me perturbar. Apesar de Compadre, nunca confiei nele. Aquilo é cobra criada: está sempre disposto a um bote, mesmo que a vítima seja de sua cozinha.

Colocou a cabeça no travesseiro, feliz. A modorra veio rápido. Depois de um dia cheio, puxando serra, nada como uma cama macia para refazer os ânimos. Não demorou para que Navegante viesse cortejá-lo. Via-se andando pela proximidade da cerca, seguido pelo animal babando espuma de garapa, tirada à taxa, desejoso daquelas palhas graúdas. Milho das vargens do Sapateiro. Àquele dia, o animal parecia esfomeado. Engolia palha e espiga com uma sofreguidão nunca vista. Terminado aquele balaio, teve de correr ao paiol e descascar mais outro. Não teve descanso. Ouvia os berros do animal, como se ele estivesse ali, no terreiro. Belmira, àquela noite, não dormiu. Jodisão revolvia-se na cama, dava de braços, como se estivesse falando com alguém. Em certo momento, um salto. Caiu de pé, ao lado da cama:

— O que foi, homem! perguntou-lhe Belmira, assustada.

— Nada, não! respondeu, deitando-se.

Em instantes, ressonava e dava pinotes, como se o sono não tivesse sido interrompido. Navegante não lhe dava um segundo de trégua. A palha descia-lhe pela garganta, sem mesmo receber aquele trato que antecede à deglutição. Ma­dru­gada velha, Belmira ouviu gemidos. Não se preocupou. Aquilo já tinha se tornado uma rotina. O dia amanhecera, e Jodisão continuava dormindo. Isso nunca acontecera naqueles trinta anos de casados. Quando abriu a janela, como fazia todos os dias, quase teve um desmaio. Mesmo assim, conseguiu soltar a voz, com uma potência incomum para uma mulher submissa, acostumada a destemperos e desaforos, mal raiava o dia:

— Jodisão, que cara é essa? Nunca vi você assim, com estes olhos de medo! O que aconteceu?

— Você está cega?! Não está enxergando o Navegante?

Jose Fernandes é escritor, crítico literário e doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.