Em “Fôlego”, Rafael Mendes dá voz a personagens que tentam firmar um pacto com o passado para entender a ruína familiar 

Rafael Mendes encontra na simplicidade procedimentos para compor a narrativa e retratar personagens Foto: Arquivo Pessoal
Rafael Mendes encontra na simplicidade procedimentos para compor a narrativa e retratar personagens Foto: Arquivo Pessoal

Sérgio Tavares
Especial para o Jornal Opção

“Fôlego”, de Rafael Men­des, está na árvore genealógica que brota de “Enquanto Agonizo”, de William Faul­kner. Um ra­mo que desponta no alto, cuja distância a­té a raiz pas­sa ao longo de “A Menina Mor­ta”, de Cornélio Pena; “Crônica da Ca­sa assassinada”, de Lúcio Cardoso; e os mais recentes “Ver­melho A­mar­go”, de Bartolomeu Campos de Quei­rós, e “Na Escuri­dão, Ama­nhã”, de Rogério Pe­reira. Roman­ces que tratam do desmantelamento fa­mi­liar, narrados por uma voz reinante que permite a incidência de outras de maneira sutil ou desbragada.

A diferença, no caso do segundo livro do autor paulista, cabe ao efeito. Ao contrário dos títulos supracitados, a submersão na consciência não visa vasculhar o nível abissal dos sentimentos, a fim de sintonizar uma frequência anímica. Mendes imerge até uma camada onde a narrativa que provém de lembranças corriqueiras possa correr com fluidez, sem sinuosidades. E o faz com um domínio técnico ímpar.

Mateus, o “mano mais velho”, é quem leva o fio principal da trama, revisitando o passado num híbrido de caderno de memórias e depoimento endereçado a um desconhecido. Ele conta a sua parte dos fatos, aquela que pertence à sua margem da família. A história que envolve uma casa humilde, sombreada por uma goiabeira sem trato, e seus residentes: Cecília, a mãe tomada pela cegueira religiosa, Manuela, a irmã rebelde, com apreço por coisas de menino, e Jaime, o pai silencioso, com modos enrudecidos. O eixo temático resgata, da infância em Taboão da Serra, o passar dos dias. A vida simples, na qual “iogurte, biscoitos e queijo” eram considerados luxos, o lazer pertencia às brincadeiras de rua, e os momentos duros cediam espaço para episódios raros de contentamento, tal qual o passeio na velha Variant até o zoológico.

Mateus lembra para contar para si, pois os retratos não mais existem, perderam-se. Mas também lembra para contar para Manuela, para a vó Rute e para o vô Paulo, para o pai do qual deveria sentir raiva, como confessa sentir a irmã, mas não consegue. De fato, o circuito de emoção que mo­biliza o relato parte do pai para entender o efeito da sua presença e da sua ausência. Um ho­mem “xucro” que sobrevive de bi­cos num mau ofício de encanador, retornando falido de desabar na cama com o macacão “fedendo a merda”. Isso quando não sai para pescar longe e some por dias.

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Qual segredo guardam as pescarias em Bragança Paulista? A certa altura do livro, vó Rute se aproxima do genro e ironiza: “Agora os peixes nadam embalados, praquelas bandas de Bragan­ça?”. Claramente suas saídas conservam mentiras. Ocorre que todos têm seus segredos, e são estes que, apesar de cavarem por fugas, irão mantê-los naquele recorte de tempo ou num tempo recortado dentro de si. Quem é o missionário Jonas, que se tranca no quarto com Cecília para rezar? Por que a filha mais nova tem a aparência distinta do irmão? Qual o motivo de Manuela, quando adolescente, esconder revistas masculinas sob o colchão? Por que Mateus não conta para sua mãe o teor dos telefonemas que o pai faz à escondidas?
Demonstrando uma capacidade incrível de narração, Mendes vai revelando pouco a pouco tais mistérios e, com destreza equivalente, deixando outros sem soluções explícitas. Assim como seus personagens, o leitor é convidado a preencher lacunas.

Neste ponto, também fica clara a presença de uma segunda voz, num instante futuro ao do narrador-protagonista. Esta incorre em breves preâmbulos, nos quais há a retomada de uma tentativa de contato, anteriormente malsucedida por Mateus. Fala-se de uma morte, algo que o pai fez. O relato segue sua cronologia até o espaço temporal entre as duas narrativas parecer mínimo.

Mateus é um adulto, agora. Bem-sucedido profissionalmente, tem um filho. Nada, porém, parece libertá-lo da pele surrada do menino que não lhe cabe mais, da procura por respostas que, mesmo trazidas a lume, já não terá mais importância diante dos fatos consumados. “É só um retrato, Mateus, que não vai mudar nada”, aconselha a vó Rute. Contudo este segue remoendo o passado, embora lhe sufoque tal qual as crises de asma que persistem agressivas na maturidade. Esta é, aliás, uma das interpretações para a escolha do título. Outra se refere à dimensão do livro, que pode ser lido num fôlego só.

Mendes reprisa, no texto longo, a prosa enxuta, precisa em ritmo e em qualidade, que marca os contos de “A melhor maneira de comprar sapato”, do mesmo modo que volta a encontrar seus personagens na vida simples daqueles que buscam alívios em desejos, vícios e sonhos. Enquanto grande parte dos novos autores brasileiros forçam a linguagem a contorcionismos estilísticos e fragmentações narrativas, o autor vale-se de procedimentos simples, sem ser piegas ou simplório. Muito pelo contrário. Tal como em Faulkner, a densidade não está na estrutura, mas no retrato que faz de seus personagens, excessivamente humanos e domados por demônios pessoais.

“Assim é a vida: vamos vivendo sem saber o que é relevante, e na medida em que a carga do tempo faz efeito percebemos o que deixamos passar, nos arrependemos das frases ditas ou não ditas, do modo como agimos ou não agimos”, reflete Mateus. Se vida e literatura se confundem no exercício da escrita, Mendes ainda não tem frases pelas quais se arrepender.

Sérgio Tavares é jornalista e escritor, autor de “Queda da Própria Altura” e “Cavala”, vencedor do Prêmio Sesc.