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Um dia de atraso

Paulo Lima Definitivamente, para o Feitosa aquela não foi uma das melhores manhãs. O chefe havia brigado com a a­mante, o faturamento não saiu do lugar e ele chegara no­va­men­te atrasado ― a terceira vez na mesma semana. Um recorde in­ve­jável para uma quarta-feira. Seu único consolo: naquele dia tra­balharia apenas no período matutino. Conseguira uma dispensa programada para ir ao mé­dico à tarde ― um hábito carioca na capital paulista. “Que ninguém desconfie da treta”, pensou. Alguém abre a porta de sua sala e avisa que a direção marcou uma reunião para as 13h00. “Ninguém poderia faltar”, insistiu o mensageiro. A ênfase era proposital, pois era sabido que o Feitosa programava nem retornar após o almoço. Justo naquela tarde a qual, depois de muitos “amanhã, quem sabe”, se rendera aos apelos da esposa para assistir a um filme no cinema, coisa que ele simplesmente odiava. Tinha que ser à tarde, pois de noite as crianças não deixavam e nos fins de semana os avós acampavam em sua casa. Na sua simplicidade, não conseguia entender por que, tendo em casa um videocassete, tinha de enfrentar o trânsito louco da velha Sampa para ver “O Silêncio dos Inocentes”, sucesso absoluto nos anos 1990. E agora, aquele maldita reunião. [caption id="attachment_9638" align="alignleft" width="300"]Cultural_1885.qxd Foto: M. File[/caption] Sabia que o chefe perdoaria a amante, mas nunca um fun­cionário ― especialmente ele ― que faltasse a um compromisso importante. Ligou para a esposa, avisou que iria direto do trabalho, levou uma bronca da patroa indignada com o fato de se aprontar toda para se encontrar com homem sujo e, ainda por cima, ficou sabendo que o sogro e sua digníssima também iriam. Não temia pelo sogro, um psiquiatra aposentado cuja única neurose era uma inexplicável obsessão por pontualidade. Temia, sim, pela jararaca, que insistia em dizer à filha que seu marido era um pervertido, atiçando um ciúme que por si só já ameaçava as sombras. Mas não estava em condições de exigir o que quer que fosse e confirmou para as 16h30. “Três horas me darão uma boa margem de manobra”, concluiu. Não, não era o seu dia. A reunião terminou as 16h00 e o cinema ficava a pelo menos 40 minutos do escritório, em condições normais de trânsito. Como havia garoado, a Marginal Tietê já era o centro das atenções. Saiu apressado, xingando intimamente o patrão pelas indiretas que insistentemente lhe dirigiu durante todo o tempo, esbarrou na secretária que manchou de batom vermelho o ombro de sua camisa branca e alcançou o carro já pensando numa boa explicação para a mais ciumenta das primeiras-damas. Olhou para o relógio, respirou fundo e arrancou, decidido. Não chegaria atrasado mais uma vez. No caminho, perdeu a conta dos sinais vermelhos que atravessou. E, com certeza, um dia pediria mil perdões ao dono do Del Rey (ou teria sido um Monza?) que amassou a lateral do seu Uno Mille, por culpa de sua justificada pressa. Estacionou na porta do cinema às 16h40. O sogrão apenas olhou para o relógio. A mulher e a sogra não tiravam o olhar de sobre o ver­melho comprometedor que lhe decorava a camisa. Cumpri­mentou a todos sem graça, comprou os bilhetes e passou por último pela roleta, explicando ao velho que acabara de assaltar um banco, coisa que normalmente demora mais do que o previsto. Nin­guém sorriu com a piada. As mulheres continuavam sérias, co­mo que prometendo exigir uma ex­plicação no momento oportuno. Sem dúvida, todo homem tem seu dia de cão e aquele fora dedicado ao Feitosa. Na mesma tarde, ao mesmo tempo em que corria para chegar na hora marcada, um casal corria por ruas próximas após assaltar um banco, tendo causado a morte de uma velhinha que estava no local e sofria do coração. Dirigiam um Uno Mille prateado, que também se chocou com vários carros, tendo sua placa anotada às pressas por um guarda de trânsito, com as possíveis inscrições: PQ-1381. A do Feitosa era PQ-1831. Fim do filme, efusivamente elogiado pelo sogro, as senhoras não pareciam tão animadas. Ao sair do cinema, o inusitado: os quatro foram abordados por três policiais que apontavam suas armas para o matador de serviço. Além disso, uma equipe da Rede Globo apontava suas câmaras para o grupo, um batalhão de fotógrafos e repórteres de rua se digladiava por um espaço melhor, curiosos se acotovelavam e uma multidão contida por um cordão de isolamento improvisado pedia por linchamento. Um homem alto e magro, relativamente bem trajado, lhe mostra uma insígnia parecida com aquelas dos filmes americanos. ― O senhor é o proprietário deste veículo? ― falou, apontando para o Mille prateado, estacionado em local proibido. ― S-sim... Sou sim. O velho e bom Feitosa, gaguejando, já procurava se lembrar de algum amigo do Detran para se livrar da multa. ― O senhor foi visto dirigindo perigosamente este veículo com uma mulher loira ao seu lado, após assaltarem uma agência do Banco Itaú, deixando uma senhora morta no local. Sua placa foi anotada por aquele guarda ali e a lateral amassada confirma que o senhor bateu num Monza azul. Se o senhor tem algo a declarar, sugiro que nos acompanhe até a delegacia, antes que não consigamos deter a multidão. Não se sabe ao certo quanto tempo aquele homem que começou mal o seu dia ficou ali paralisado, sem conseguir pronunciar uma única palavra. Era o silêncio de um inocente, que sabia que qualquer coisa que dissesse poderia piorar o impiorável. Afinal, à sua volta, além de centenas de populares enfurecidos, estavam um oficial de justiça, a imprensa trans­mitindo o acontecimento ao vivo e do outro lado da telinha o seu patrão apreciando tudo, policiais prontos para atirar, seu carro novo já não tão novo assim ao lado de uma placa de “proibido estacionar”, um guarda de trânsito com ar convicto, sua esposa em choro convulsivo, a sogra em estado de graça e, de quebra, um psiquiatra doido para tirar o atraso. Paulo Lima é escritor e publicitário.

Artistas e intelectuais franceses sob o domínio nazista

Num país onde os intelectuais e artistas eram reverenciados como “entes superiores”, e no qual a população era educada para reverenciar suas teorias e atitudes, o mundo cultural teve maiores responsabilidades pelo colaboracionismo com o nazismo

A confluência poética de Jennifer Franklin

Poeta ainda pouco conhecida no Brasil, Jennifer Franklin unifica formação clássica e expressividade intimista para dar voz a uma experiência de vida absolutamente pessoal: a experiência de uma maternidade impactada pela realidade do autismo

Belfagor

A única história curta, conhecida, de Nicolau Maquiavel. Um diabo é enviado à terra para verificar porque todos os homens que chegam ao inferno apresentam como causa única de estarem ali o fato de serem casados

[caption id="attachment_9025" align="alignright" width="400"]Santa Croce Opera Firenze Santa Croce Opera Firenze[/caption]

Nicolau Maquiavel

Nas antigas memórias das crônicas de Flo­rença lê-se uma história relacionada a um homem santíssimo que, em meio à devassidão da época, era mui respeitado por todos seus contemporâneos. Certo dia, absorto em suas piedosas meditações, conseguiu ver que as almas dos infelizes mortais que morriam pecadores e que iam para o inferno lamentavam — se não todos, pelo menos a maior parte — que a razão de tal desdita devia-se ao fato de terem-se casado. Minos e Radamanto, juntos com outros juízes do inferno, ficaram deveras admirados e, não podendo dar crédito às calúnias que tais almas lançavam ao sexo feminino, deram ciência disso a Plutão, tanto mais que tais lamentações só faziam crescer. Plutão então deliberou examinar o caso de perto com todos os príncipes do inferno para, só depois, tomar partido do que fosse julgado o mais conveniente para descobrir a falácia e saber a verdade por inteiro.

Convocou-os, pois, ao conselho, e falou nos seguintes termos: — Embora eu, meus diletos amigos, por disposição celeste e vontade do destino, e ainda que me encontre acima do juízo de Deus e dos homens, no entanto, como maior prova de sabedoria e prudência, resolvi consultar-vos hoje sobre a conduta que devo seguir num caso que poderia redundar em infâmia para nosso império. Todas as almas dos homens que entram em nosso reino pretendem ter sido causa disso a própria mulher, o que não nos parece possível. Condenando tal afirmação, talvez os levianos nos acusem de maldade; caso não o fizermos, talvez os injustos nos considerem demasiado indulgentes e pouco afeitos à justiça. Querendo evitar uma e outra acusação, e não encontrando um meio para tal, decidimos convocar-vos a fim de que nos ajudeis com vossos conselhos e façais com que este reino continue a viver sem infâmia, como sempre tem vivido.

Nenhum daqueles príncipes das trevas deixou de considerar o caso importantíssimo e de grande monta. Estavam todos de acordo em que era necessário descobrir a verdade, mas discordavam quanto à maneira de assim proceder. Alguns julgavam que se devia mandar um deles ao mundo, outros que vários, para ali pessoalmente conhecerem, soba forma humana, qual era a verdade. A outros parecia desnecessário tal transtorno: bastaria obrigar algumas almas, por meios de diversos tormentos, a confessá-la. No entanto, como a maioria optasse pela primeira opinião, foi essa a adotada. Mas ninguém se ofereceu voluntariamente para a empreitada; assim, re­correram eles a um sorteio. A sorte recaiu sobre Belfagor, arqui­diabo, que anteriormente — antes de cair do Céu — tinha sido arcanjo.

Foi com relutância que ele aceitou o encargo, mas o poder de Plutão o constrangera a executar o que o conselho deliberara e teve assim que consentir nas condições solenemente aceitas por todos. Fora deliberado que aquele em quem recaísse a sorte receberia imediatamente cem mil ducados, e com eles viria nascer no mundo. A casar-se sob a forma de um homem e a viver com a mulher dez anos; depois, fingindo morrer, voltaria e exporia a seus superiores a própria vivencia, quais eram os encargos e os incômodos do casamento. Deliberou-se também que, durante o tempo em apreço, ele ficaria submetido a todos os achaques e males a que os homens estão sujeitos, inclusive a pobreza, a prisão, as doenças e todas as desgraças que aos mortais ocorrem, salvo se por meio de engano e astúcia conseguisse livrar-se delas.

Aceitas pois as condições e os ducados, foi-se Belfagor ao mundo e, devidamente provido de cavalos e acompanhantes, entrou ele em Florença com o maior aparato. Escolhera esta cidade para domicílio, entre todas as demais, por lhe parecer a mais plausível para quem quisesse viver empregando seu dinheiro em negócios. Fez-se chamar Rodrigo de Castela e alugou uma casa no bairro de Todos os Santos (Ognissanti). Para que não pudessem lhe descobrir os antecedentes, disse ter partido da Espanha ainda criança; dali fora à Síria e a Alepo, onde ganhara tudo o que possuía; de lá viajara para a Itália e a fim de se casar num lugar mais humano e mais conforme à vida civilizada e à sua própria índole.

Era Rodrigo um moço formoso, que aparentava trinta anos. Em poucos dias demonstrara ele quantas riquezas tinha e dera provas de sua liberalidade e humanidade; logo vários cidadãos nobres, providos de muitas filhas e pouco dinheiro, lhe ofereceram seus préstimos. Entre todas, Rodrigo escolheu uma belíssima donzela chamada Honesta. Filha de Américo Donati, que tinha mais três filhas, quase em idade de se casar, e três filhos já adultos. De família muito nobre e tido em bom conceito em Florença, era no entanto muito pobre, levando-se em conta sua numerosa prole e sua condição.

Rodrigo celebrou suas núpcias com esplendor e grandeza, não descuidando de nada que seja necessário em tais circunstâncias, pois entre as obrigações que lhe foram impostas ao sair do inferno, estava a de sujeitar-se a todos os caprichos humanos; assim, logo passou a deleitar-se com as honrarias e pompas do mundo e a gostar de ser louvado entre os ho­mens, coisas que o levaram a grandes gastos. Por outro lado, não tardou muito a apaixonar-se perdidamente por sua D. Honesta e quase não conseguia viver quando a encontrava triste ou aborrecida.

Com sua nobreza e formosura, a senhora Honesta levara consigo para a casa de Rodrigo um orgulho tão desmesurado que mesmo Lúcifer não o tivera igual. Rodrigo, que podia comparar um e outro, considerava o de sua mulher infinitamente superior, e consta que ainda chegou a ser maior quando percebera o amor que seu marido sentia por ela. Imaginando ser por todas as maneiras a dona absoluta, dava suas ordens sem consideração ou piedade, e se ele relutasse a fazer as suas vontades, desatava em recriminações e injúrias, o que era para o pobre Rodrigo motivo de viva pena e aflição. Sem dúvida, por consideração a seu sogro, a seus cunhados e demais parentes, por respeito aos deveres do casamento e pelo amor que dedicava à esposa, sofria seus males com a maior paciência. Quero passar em silêncio sobre os grandes gastos a que era obrigado para contentá-la, vestindo segundo os novos costumes e as modas mais recentes, que nossa cidade varia por hábito natural; nem lembrarei que, para ela o deixar em paz, teve ele de ajudar o sogro a casar as outras filhas, o que lhe fez despender também considerável importância. Depois, querendo manter-se em boa paz com a mulher, consentiu em mandar um dos irmãos dela ao Oriente com casimira e outro para o Ocidente levando sedas, ao passo que para o terceiro irmão abriu em Florença uma oficina de ourives, em que despendeu a maior parte do dinheiro que possuía. Além disso, nas festas de Carnaval e de S. João, celebradas pela cidade inteira segundo tradição antiga, quando grande número de cidadãos nobres e ricos se honravam uns aos outros com magníficos banquetes, D. Honesta, para não ficar atrás de outras damas, queria que seu Rodrigo superasse a todos os demais com suas festas.

Tudo isso, suportava-o Rodrigo pelos motivos supracitados; apesar de gravíssimas, nem graves as teria achado se houvessem introduzido a paz em sua casa, permitindo-lhe aguardar em sossego o momento de sua própria ruína. Mas foi o contrário o que aconteceu, pois a índole insolente da esposa, além das despesas insuportáveis, carreara-lhe inúmeros aborrecimentos. Nenhum criado a aguentava, não digo por muito tempo, mas nem sequer por alguns dias. Para Rodrigo era o mais duro dos incômodos não possuir um criado que tivesse amor a sua casa. Os próprios diabos que trouxera consigo como domésticos preferiram voltar aos fogos do inferno a viver no mundo sob as ordens daquela mulher.

Assim prosseguia a vida tumultuada e inquieta de Rodrigo. Tendo já consumido nos gastos desenfreados o que recebera em espécie, começou a viver à espera das entradas financeiras que aguardava do Ocidente e do Oriente. Como ainda tivesse bom crédito, pediu dinheiro emprestado para não ficar aquém de sua condição; e já certo número de letras sacadas por ele circulavam na praça, o que logo foi percebido pelos que trabalhavam neste ramo de negócios. Já era bem precária a situação de Rodrigo quando, de súbito, chegaram notícias do Oriente e do Ocidente: aqui, um dos irmãos de D. Honesta perdera no jogo todo o dinheiro de Rodrigo; ali, o outro, ao voltar de um navio carregado de suas mercadorias, que não estavam no seguro, naufragou com toda a carga.

Mal estas novas circulavam pela cidade, os credores de Rodrigo reuniram-se. Consideravam-no um homem liquidado, mas ainda não podiam tomar providências por não haver expirado o prazo das cobranças; resolveram, pois, que mandariam quem o observasse habilmente, para que num abrir e fechar de olhos não resolvesse fugir. Por sua parte, Rodrigo, sem ver outro remédio e sabendo das obrigações de seu pacto infernal, decidiu fugir a todo o transe. Certa manhã montou a cavalo e saiu da cidade pela porta do Prato, perto da qual residia. Espalhada a notícia de sua fuga, os credores recorreram alarmados às autoridades e puseram-se no encalço dele, acompanhados não apenas de meirinhos como também de muitos populares.

Mal se distanciara da cidade cerca de uma milha, souberam eles de sua fuga, de sorte que, vendo-se perdido, resolveu Rodrigo, para melhor se esconder, abandonar a estrada principal e tentar a sorte em outras direções; porém o terreno árduo e abrupto dificultava tremendamente a sua marcha. Percebendo que era impossível seguir a cavalo, decidiu-se salvar-se a pé mesmo, deixando o animal no meio do caminho, e depois de ter muito tempo andado por entre vinhas e canaviais que cobriam os campos, aproximou-se de Pretola, detendo-se na casa de Giovanni Matteo de Bricca, um dos colonos de Giovanni dei Bene. Felizmente àquela hora chegava também ao local o próprio Giovanni Matteo para alimentar o gado. A ele se recomendou o fugitivo, prometendo-lhe que, se o salvasse dos inimigos que o perseguiam para fazer com que morresse na prisão, o tornaria rico, coisa que lhe daria prova antes mesmo de sair de sua casa; se não o fizesse, concordaria que o próprio camponês o entregasse a seus adversários.

Embora simples camponês, era Giovanni Matteo homem de coragem. Pensou que nada tinha a perder se tentasse salvá-lo, e prometeu-lhe auxílio. Em frente à casa havia um monte de estrume: foi lá que o escondeu, cobrindo-o de caniços e ramos colhidos para fazer fogo.

Mal acabara Rodrigo de esconder-se, seus perseguidores chegaram. Por mais ameaças que fizessem a Giovanni Matteo, não conseguiram fazê-lo confessar o que tinha visto. Assim, partiram, e depois de procurá-lo todo aquele dia e mais o seguinte, retomaram exaustos para Florença.

Afastada a agitação, Giovanni Matteo tirou Rodrigo do esconderijo e pediu-lhe que cumprisse a promessa, ao que Rodrigo lhe disse: — Irmão meu, tenho uma grande obrigação para contigo e desejo cumpri-la de qualquer maneira; e para que acredites em que eu possa fazer, vou dizer-te quem sou.

Nisso revelou a sua identidade contando em que condições saíra do inferno e como se casara. Em seguida, explicou-lhe como pretendia fazê-lo rico. O seu plano, resumindo, era o seguinte: quando Giovanni Matteo soubesse que alguma mulher estava tomada pelos espíritos, devia saber que era ele, Rodrigo, que se apoderara dela: nem sairia do corpo da vítima sem que Giovanni Matteo viesse a tirá-lo: assim, poderia o camponês pedir aos parentes da endemoninhada o preço que bem entendesse. Giovanni Matteo aceitou a proposta e Rodrigo partiu.

Decorridos alguns dias, propagou-se por toda Florença a notícia de que a filha de mestre Ambrósio Amadei, casada com Bonaiuto Tebalducci, estava tomada pelos maus espíritos. Não descuidaram os parentes de nenhum dos remédios a que se recorria em casos semelhantes; assim, puseram-lhe na cabeça o crânio de S. Zenóbio e o manto de S. João Gualberto. Rodrigo, no entanto, zombava de tudo aquilo. E para dar a entender a todos que o mal da moça era um espírito e não qualquer imaginação fantástica, falava em latim, discutia coisas de filosofia, descobria os pecados de muita gente, desmascarando-os, entre outros, a um frade que guardara em sua cela durante mais de quatro anos uma mulher vestida à maneira de um fradinho, coisas que a todos enchiam de espanto. Estava Mestre Ambrósio irritadíssimo e, havendo experimentado em vão todos os remédios, perdera já a esperança de curar a filha, quando Giovanni Matteo veio ter com ele, prometendo-lhe a saúde da filhinha se lhe dessem quinhentos florins para comprar uma propriedade em Pretola. Mestre Ambrósio aceitou a proposta. Então Giovanni Matteo, depois de mandar dizer certo número de missas e executar certas cerimônias para embelezar a coisa, aproximou-se da moça e segredou-lhe ao pé do ouvido: — Rodrigo, aqui estou eu esperando que me cumpras a promessa.

Ao que Rodrigo respondeu: — Com o maior prazer. Mas isto não chega ainda a te tornar rico. Eis por que, apenas saído daqui, entrarei na filha do rei Carlos de Nápoles, e de lá não sairei sem que me chames. Exigirás então uma recompensa segundo a tua vontade, e depois disso não deverás mais me importunar.

[caption id="attachment_9026" align="alignright" width="620"]M. File M. File[/caption]

Nisso saiu do corpo da moça doente, para a alegria e admiração de toda Florença. Não tardou e espalhava-se por toda Itália a mesma desgraça ocorrida, desta vez com a filha do rei Carlos. Como os remédios dos frades de nada adiantassem, o rei, que ouvira falar em Giovanni Matteo, mandou que ele fosse conduzido até ele. Chegando a Nápoles, o camponês, depois de algumas cerimônias de fachada, curou-a. Mas antes de sair do corpo da princesa, Rodrigo disse-lhe: — Bem vês que hei cumprido a minha promessa de enriquecer-te. Agora que re­compensei o serviço que me fizeste, nada mais te devo; assim, aconselho-te a que não mais apareças à minha frente, pois se te fiz benefícios até aqui, daqui por diante poderia causar-te dissabores.

Giovanni Matteo retornou a Florença muito rico, pois o rei lhe havia dado mais de 50 mil ducados, e não pensava senão em desfrutar de sua riqueza, com muito gosto e sossego, sem cogitar que Rodrigo pudesse, em qualquer época, lhe causar algum dissabor. Bem cedo, no entanto, se desiludiu, ante a notícia de que uma filha de Luís VII, rei da França, estava possuída pelo demônio. Notícia essa que tumultuou de todo a alma de Giovanni Matteo, que não conseguia parar de pensar na autoridade daquele monarca e nas palavras que lhe dissera Rodrigo. De fato, o rei, não encontrando remédio para o mal de sua filha, e tendo ouvido falar da capacidade de Giovanni Matteo, mandou chamá-lo, primeiro através dos correios, simplesmente; mas em vista de que o homem alegava certa indisposição, viu-se o rei forçado a recorrer ao governo de Florença, o qual obrigou Giovanni Matteo a obedecer.

Desesperado, foi Giovanni para Paris, onde foi logo explicando ao rei que efetivamente curara já certas pessoas endemoninhadas, mas que isso de modo algum significava que soubesse ou pudesse curá-las todas, pois algumas havia de natureza tão pérfida que não temiam ameaças nem encantamentos, nem religiões, seja qual for; que, no entanto, estava disposto a fazer o que pudesse, mas pedia desculpa e perdão se não viesse a ser bem-sucedido. Enfastiado, o rei declarou que, se não lhe curasse a filha, mandaria enforcá-lo. Viu-se Giovanni Matteo em péssimos lençóis, mas fez de sua fraqueza sua força: mandou vir a possuída e, aproximando-se-lhe do ouvido, recomendou-se humildemente a Rodrigo, lembrando-lhe o benefício prestado e como seria ingrato se o desamparasse naquele imbróglio. Rodrigo então assim reagiu: — Traidor infame! Como te atreves a aparecer perante mim? Acreditas que podes te vangloriar de ter enriquecido à minha custa? Pois hei de mostrar-te a ti e a todos que sei muito bem dar e tomar qualquer coisa, como melhor me prover; e antes que partas daqui, farei enforcar-te, custe o que custar.

Dando-se por perdido, Gio­van­ni Matteo, não vendo outro remédio, resolveu arriscar a sorte por outro meio. Mandou que levassem dali a possuída e disse ao rei: Senhor, como falei a Vossa Majestade, há espíritos tão malignos que com eles ninguém pode; pois este é um dos tais. Mas quero fazer uma última tentativa: se for bem-sucedido, Vossa Majestade e eu teremos alcançado o nosso objetivo; caso contrário, estarei nas mãos de Vossa Majestade, que saberá ter comigo a compaixão que faz jus a minha inocência. Ordene Vossa Ma­jestade que se erga na Praça de Notre Dame um grande palco onde caibam todos os barões e todo o clero desta cidade; mande orná-lo de panos de seda e de ouro, e mande erguer no meio dele um altar. Preciso que no domingo próximo Vossa Ma­jestade se reúna no estrado do palco com todos os seus príncipes e barões, numa pompa real, vestidos de trajes ricos e esplêndidos. Depois da missa celebrada, Vossa Majestade fará vir a possuída. Preciso, além disso, que num ângulo da praça haja pelo menos vinte pessoas reunidas com trompas, cornetas, tambores, cornamusas, címbalos, timbales e outros instrumentos de toda sorte.

Quando eu erguer o chapéu todos deverão tanger seus instrumentos e encaminhar-se na direção do estrado. Estas coisas, juntas com alguns remédios secretos, poderão fazer, julgo eu, com que o espírito maligno desapareça.

Tudo isso o rei ordenou. Chegou a manhã de domingo. O palco improvisado estava cheio de personalidades, e a praça, cheia do povo. Celebrada a missa, a endemoninhada foi conduzida ao estrado por dois bispos e muitos senhores. Ao ver tamanha multidão e tanto aparato, Rodrigo ficou meio tonto e disse consigo mesmo: “Que será que inventou esse traidor miserável? Será que está pensando me espantar com toda essa pompa? Ignora que estou acostumado a assistir as pompas do Céu e fúrias do Inferno? Haverei de castigá-lo de qualquer maneira”.

Quando, logo depois que Giovanni Matteo se aproximou novamente e lhe pediu que saísse, Rodrigo assim lhe falou: — Bela ideia a tua, para dizer a verdade! Que pensas alcançar com todo esse aparato? Acreditas escapar assim ao meu poder e à ira do rei? Ladrão miserável, farei com que te enforquem haja o que houver!

Como não parasse de dizer tais palavras, acrescentando-lhes outras menos injuriosas, Giovanni Matteo houve por bem não perder mais tempo. Ergueu o chapéu, todas as pessoas encarregadas de fazer barulho tocaram seus instrumentos e com rumor que atingia o Céu foram-se aproximando do estrado. O barulho aguçou os ouvidos de Rodrigo que, sem entender do que se tratasse, pediu assombrado que Giovani Matteo lho explicasse, e Giovanni respondeu-lhe de forma bem perturbada: — Ai, meu Rodrigo, é a tua mulher que vem te buscar! Foi, em verdade, maravilhoso ver até que ponto Rodrigo horrorizou-se ao ouvir o nome de sua mulher. Tamanho lhe foi o espanto que, sem indagar a si mesmo se seria possível que ela ali estivesse, fugiu sem dizer uma palavra e assim deixou a princesa livre; preferiu voltar ao Inferno para dar conta de suas ações a submeter-se outra vez ao jugo matrimonial, suportando tantos desgostos, aborrecimentos e perigos. E eis aqui como Belfagor, de volta ao inferno, pode dar testemunho dos males que uma mulher leva consigo a um lar, e como Giovanni Matteo, que foi mais astuto do que o diabo em pessoa, pôde retornar a sua casa cheio de alegria.

Conto publicado no livro “Os Cem Melhores Contos de Humor da Literatura Universal”, organização de Flávio Moreira da Costa, Editora Ediouro. Tradução de Paulo Rónai e Aurélio Buarque de Holanda.

Não falo nada

[caption id="attachment_9020" align="alignright" width="620"]Foto: Gaspar Nóbrega/VIPCOMM Foto: Gaspar Nóbrega/VIPCOMM[/caption] Maurício Falleiros Especial para o Jornal Opção Do nada, o homem resolveu puxar assunto no elevador, coisa que nunca tinha feito antes. Se arrependeu mortalmente. — E a seleção ontem, hein? — Não tem pra ninguém, né? O Neymar joga demais. — Hum... Não acho ele tudo isso, não. — Como não?! O cara come a bola. — Só firula. — Que firula, o quê?! O cara é gênio. — Gênio é cientista, essas coisas. Ele só joga bola. — Mas quando o assunto é bola, ele é o cara. — Puro marketing. Pararam no andar do homem. O outro morador saiu junto do elevador. — Você mora nesse andar também? Nunca te vi por aqui... — Não, moro no décimo-oitavo. — E desceu aqui por quê? — Pra gente terminar o nosso papo. — Para com isso. Só tava puxando assunto. — Você me fala que o Neymar não joga nada e fica por isso mesmo? — Isso pode continuar outra hora. — Disse isso e entrou de supetão no apartamento. No dia seguinte, ele abriu a porta do apartamento e deu de cara com o neymarzete. — Que você tá fazendo aqui? — Tomando coragem. — Pra? — Tocar sua campainha. — Pra? — Terminar aquela conversa. — Tá nessa ainda? — Você ainda acha que o Neymar é só firula? — Acho. Sem dar chance de resposta para o inconveniente, o homem correu para o elevador. O vizinho impediu a porta com o pé: — Ainda não terminamos. — Terminamos, sim! — Falou, empurrando o pé do vizinho para fora do elevador. Horas mais tarde, ao chegar do trabalho, o homem por pouco não atropelou um ser que estava parado feito um cone na sua vaga. Era o vizinho. — Não é possível! O que você quer de mim, cara? — Que você reconheça que falou besteira! — Eu não vou reconhecer porcaria nenhuma. O Neymar é um firulento. E você, um mala! — Também não concordo com essa sua opinião. — Retrucou, seguindo o homem até a porta do elevador. O homem questionou: — Você vai subir de elevador? — Vou, sim. — Então, eu vou de escada. — Eu te acompanho. — Se você for de escada, eu vou de elevador. — Por que isso, cara? Tá fugindo da conversa? — Não, tô fugindo de você. Com um salto ornamental, o homem voou para dentro do elevador apertou todos os botões e se mandou. Quando entrou no seu apartamento, o interfone tocou. Ele teve a chance de deixar o aparelho tocando, mas atendeu. Se arrependeu novamente: — Pronto. — Arrá! Me driblou igual ao Neymar, hein? Lance de gênio! Mas eu te peguei. Bora trocar aquela ideia? — Você?! Vai arranjar alguma coisa pra fazer, dar um trato na sua esposa, se você tiver uma ainda, sei lá! — Tô descendo aí. — Se aparecer aqui, eu te dou um tiro. Eu juro. E faço parecer suicídio! Desligou o interfone e depois o tirou do gancho. Passou todas as travas na porta, preparou um uísque e pensou alto: — Nunca mais puxo assunto com ninguém. E se alguém puxar comigo, eu me faço de surdo. Deu um gole no uísque e ouviu um barulho na porta da sacada. Virou para lado e viu um vulto. Adivinha quem era. Maurício Falleiros é escritor.

Visões apocalípticas sobre o presente futuro

A inter-relação entre homem e máquina atinge atualmente um nível jamais visto na história, gerando questionamentos e temores acerca do que ainda está por vir

As coisas incríveis de Mário Filho

“As Coisas Incríveis do Futebol” reúne 25 crônicas do jornalista Mário Filho, constituindo um recorte significativo de seu estilo de escrita e modo de ver o futebol. As crônicas são compostas de modo fluente, num tom coloquial, com pitadas de fina erudição, repletas de frases de efeito e construções sonoras

Ademir Luiz Especial para o Jornal Opção

[caption id="attachment_8377" align="alignright" width="260"]Cultural_1885.qxd Mário Filho: um dos maiores nomes do jornalismo esportivo brasileiro na primeira metade do século passado[/caption]

Eu falo muito sobre futebol. Há tempos deixei de torcer, atualmente sou mais um entusiasta do esporte pelo que ele possui de épico e humano. Admiro-me do fato do futebol ser o maior bem simbólico da humanidade. Quase todos os povos do globo, independentemente de crenças religiosas e regimes políticos, o praticam. Fique claro que estou longe de ser um cientista, um pesquisador, um catedrático da bola. Sento na arquibancada quando vou ao estádio, não fico nos camarotes ou nas cadeiras numeradas tomando chá, enrolado num cachecol e tirando fotos para postar na internet. Embora, por motivos de senso estético, evite participar da “hola”, futebol para mim é, sobretudo, diversão, ainda que diversão reflexiva. Tenho lá minhas idiossincrasias. Sou do tipo que analisa estatística, inventa esquemas táticos mirabolantes, escala equipes impossíveis formadas com os melhores de todos os tempos, de diferentes épocas. Coleciono uniformes da seleção da Holanda, tendo atualmente seis deles, incluindo o clássico de 1974. Coisa de doido!

Quem sofre são meus alunos na UEG (Universidade Estadual de Goiás). Eles, diferentemente de meus amigos e familiares, em tese, não podem me mandar calar a boca. Ultimamente, no esquenta do mundial de 2014, tenho observado que entre os estudantes universitários esse é um assunto controverso. Muitos estão influenciados pela ingênua campanha do “não vai ter Copa”, versão pós-moderna da velha ladainha de que o “futebol é ópio do povo”. Outros simplesmente afirmam que é perda de tempo, que não gostam. Outro tanto são apreciadores, mas não apresentam muito senso histórico e de proporções. Pelé, por exemplo, perdeu muito de seu prestígio nacional (não internacional) com as novas gerações, fenômeno esse que atribuo a expansão do politicamente correto que tomou conta do esporte desde a era Senna. Pouco se fala de Garrincha. Romário está se tornando folclore, enquanto Ronaldo está se tornando piada pronta. O mito de Zico tem resistido bem, talvez por se encaixar perfeitamente no arquétipo sennista de atleta.

Diante desse cenário costumo apresentar certa bibliografia para justificar meu entusiasmo, até porque na universidade tudo o que apresenta bibliografia ao final ganha ares de irrefutabilidade. Aconselho a leitura das crônicas de Nelson Rodrigues, reunidas nos volumes “À Sombra das Chuteiras Imortais” e “A Pátria em Chuteiras”, organizadas por Ruy Castro, no qual se tem verdadeiras aulas de História do Brasil, Sociologia e Antropologia via futebol. Recomendo o denso “A Dança dos Deuses”, do medievalista Hilário Franco Jr., para se aprofundar nas estruturas históricas da formação do mundo moderno e suas relações com o desenvolvimento do futebol. Insisto que leiam até o mediano “Futebol ao Sol e à Sombra”, de Eduardo Galeano, para me ancorar no prestígio do exagerado “As Veias Abertas da América Latina”, pois, espero que assim raciocinem, se o autor do segundo escreveu o primeiro, talvez o futebol não seja tão ópio assim.

Finalmente, para dar solidez de diamante aos meus argumentos, não me furto de citar dois clássicos: “O Negro no Futebol Brasileiro”, de 1947, e “Viagem em Torno de Pelé” (1964), ambos do jornalista Mário Filho (1908 – 1966). Gilber­to Freyre escreveu o prefácio de “O Negro no Futebol Bra­si­lei­ro”, reconhecendo-o como um trabalho fundamental para compreender a formação do Brasil. Cer­ta­mente, é digno de figurar na mes­ma estante que os livros de Freyre. Segundo José Tra­ja­no, “ne­nhum de nós, jornalistas es­portivos, somos ca­pazes de engraxar os seus sapatos. Não me venham de Armando Nogueira, João Sal­danha, Thomas Mazzoni ou Nel­son Rodrigues, irmão dele, todos sensacionais e de tirar o chapéu. Perto de Mário Fi­lho eles estão dis­tantes a­nos-luz”. Apesar de ta­ma­nha importância, mes­mo na era do PDF de internet, a obra de Má­rio Filho estava se tornando de di­fícil acesso. Depois da biografia “A Infância de Portinari”, de 1966, a última vez em que foi pu­blicado foi na coletânea de crônicas “Sapo de Arubinha”, de 1994.

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Para suprir essa lacuna a editora Ex Machina, fundada recentemente por Bruno Costa, ex-sócio da Editora Hedra de São Paulo, lançou “As Coisas Incríveis do Futebol — as melhores crônicas de Mário Filho”, com apresentação de José Trajano e organização de Francisco Michielin. Não poderia ser em melhor hora, considerando que Mário Filho foi um dos nomes mais importantes nos bastidores da Copa de 1950, sendo que o estádio Maracanã foi batizado oficialmente com seu nome. Sessenta e quatro anos depois o Brasil sedia novamente o mundial. “As Coisas Incríveis do Futebol” reúne 25 crônicas de Mário Filho, constituindo um recorte significativo de seu estilo de escrita e modo de ver o futebol. As crônicas são compostas de modo fluente, num tom coloquial, com pitadas de fina erudição, repletas de frases de efeito e construções sonoras, boas para serem lidas em voz alta. Parece-me que ali está capturado, e retrabalhado literariamente, o modo de falar das décadas de 1940 e 50, corte cronológico do volume. A crônica mais antiga, intitulada “Sururu”, foi publicada em “O Globo Es­por­tivo” em 5 de outubro de 1945, en­quanto a mais recente, intitulada “O individualismo no futebol brasileiro”, foi publicada na “Man­chete Esportiva” no dia 6 de abril de 1957. O título da coletânea foi extraído de uma série de sete crônicas que Mário Filho publicou entre setembro e outubro de 1947, em “O Globo Esportivo”, sendo que algumas delas, trazendo histórias pitorescas sobre personagens do mundo do futebol, estão presentes no livro.

Mas o livro vai muito além de histórias pitorescas. Entranhadas nas crônicas, quase que como anéis escondidos, estão presentes algumas reflexões profundas e complexas sobre a realidade sociocultural do Brasil. Na citada crônica sobre “O individualismo no futebol brasileiro”, Mário Filho dialoga com a tese de Sérgio Buarque de Holanda sobre o bacharelismo reinante das relações sociais brasileiras ao escrever que a “maneira de ser brasileira, a do brilho pessoal, a do anel de doutor no dedo, mesmo sem diploma, a do título de doutor, mesmo sem anel, a do discurso, a do soneto, pecados que todos cometiam ou se vangloriavam de ter cometido, às vezes em confissões como que envergonhadas mas que no fundo eram sussurros do orgulho humilhado”, motivavam o futebol livre, leve e solto praticado pelos brasileiros, que subvertia a lógica original do esporte frio e calculado dos inventores ingleses.

Em outro momento, na crônica “O torcedor de rádio”, de 10 de fevereiro de 1950, Mário Filho antevê a importância que o futebol teria nas décadas seguintes para a cultura de massa. Pergunta: “Quem não andou torcendo pelo rádio por ocasião do campeonato do mundo? Gente que nunca se preocupara com futebol descobriu, de um momento para outro, uma vocação irresistível de torcedor”.

A seleção de textos realizada por Francisco Michielin enfoca, sobretudo, episódios cotidianos do esporte, usando-os como trampolim para voos maiores de imaginação, como na crônica “O poeta e o passado”, com participação especial de José Lins do Rego, e reflexões sobre o desenvolvimento e as características peculiares do futebol conforme praticado no Brasil. No posfácio, Michielin explica que “Mário Filho foi um pioneiro, um inovador, alargando sua influência. Que ele tenha mudado a abordagem do futebol, através da imprensa, é fato notoriamente reconhecido e celebrado por todos (...) dotado de uma estética de rara singeleza, a nos fazer rodopiar por um carrossel de alegorias e alegrias; existenciais, expositivas, dramáticas, irreverentes e, sobretudo, inteligentes”. Por esse trecho parece-me evidente que os critérios de seleção foram mais estético-literários do que históricos. Certamente, é um critério válido já que o livro se propõe a republicar as “melhores crônicas” do autor. Contudo, não deixa de fazer falta a faceta de Mário Filho enquanto testemunha da história. Seria interessante ler suas perspectivas acerca de episódios como a surpreendente campanha da Seleção Brasileira na Copa de França de 1938, o Maracanaço de 1950, a Batalha de Berna de 1954, a vitória em 1958, o bi em 1962. Quem sabe pode ser o mote para um segundo volume.

[caption id="attachment_8378" align="alignright" width="620"]Mário Filho e o irmão Nelson Rodrigues: enquanto Nelson buscava o épico, Mário cultivava o humano Mário Filho e o irmão Nelson Rodrigues: enquanto Nelson buscava o épico, Mário cultivava o humano[/caption]

Ao mesmo tempo chama atenção a opção por praticamente não enfocar grandes craques da época, como Pelé, Garrincha, Di Stefano ou Puskas. Estrela o livro figuras semiesquecidas, como Belfort Duarte, Haroldo e Mimi Sodré. O célebre zagueiro Domingos da Guia é uma exceção, e mesmo essa exceção surge de modo a reforçar o esquema geral.

Nesse ponto cabe uma comparação, que fiz questão de evitar até o momento, entre Mário Filho e Nelson Rodrigues. Em­bo­ra a escrita do caçula fosse claramente devedora do estilo do primogênito, os objetivos eram diametralmente opostos. En­quanto Nelson Rodrigues bus­cava o épico, Mário Filho cultivava o humano. Não é por acaso que o título da coluna de Nel­son Rodrigues era “à sombra das chuteiras imortais”, ele de fato retratava seus personagens como deuses do futebol, como figuras acima da vida. Afirmava que o meia Didi possuía a dignidade inata de um “Príncipe Etíope”, defendia que do peito de Pelé “parecem pender mantos invisíveis”, para ele “Garrin­cha está acima do bem e do mal”.

Nada disso aparece no irmão mais velho. Mário Filho fala do capitão de time que não tem tostão para pegar o bonde, do jogador honesto demais para fazer falta em um companheiro de trabalho, do perneta que jogava futebol. Tipos muito próximos dos torcedores, dando a sensação que os protagonistas de suas crônicas poderiam ser seus vizinhos, amigos ou até eles mesmos. A crônica “Notas para uma biografia de Domingos da Guia” é sintomática. Nela não aparece o beque genial, lendário, mitológico, o atleta acima de todos os outros. Não, longe disso, aqui Domingos da Guia surge como Domingos Antônio, apenas o mais habilidoso de uma família que trazia o futebol no sangue (Mário Filho não sabia que o melhor estava por vim, na figura do divino mestre Ademir da Guia). Domingos é retratado como um homem humilde, até ingênuo, mas muito correto e trabalhador. Um homem que achava que “meu futuro não está no futebol”, que labutou como mata-mosquitos e serralheiro, só jogando futebol nos finais de semana, que tinha receio de ofender os cartolas ao negociar seus contratos. O Domingos da Guia de Mário Filho não joga com chuteiras imortais, é, sim, humano, demasiadamente humano.

Esse senso de humanidade é justamente o maior legado deixado por Mário Filho, que fez pelo futebol o que Gilberto Freyre fez pela Casa-grande, pela Senzala, pelos sobrados e pelos mucambos. Suas crônicas são obrigatórias, foram coisas incríveis que o futebol permitiu que existissem.

Ademir Luiz é escritor e doutor em História.

Editor da Ex Machina é o goiano Bruno Costa

A Ex Machina, editora nacional, é dirigida pelo goiano Bruno Cos­ta, ex-editor da Hedra (onde fez um trabalho magistral). Ele mora em São Paulo há vários anos.

Bruno Costa, além de editor nato e atilado, é tradutor do primeiro time. Intelectual, conhece literatura como poucos.

“As Coisas Incríveis do Futebol — As Melhores Crônicas de Mário Filho” é o primeiro livro editado pela Ex Machina. As crônicas, em tempo de Copa do Mundo, ganharam resenhas e notas nos principais jornais do país. O livro foi publicado com o habitual capricho do jovem editor.

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Martiniano

J.C. Guimarães Especial para o Jornal Opção cul2Martiniano Almeida Rossi, 61 anos: não inventarei um personagem. É este aí mesmo. Militante político, publicitário e engenheiro (gostaria nessa ordem, provavelmente), foi um dos fundadores do nosso partido. Foi também um líder de caráter, idealista e coerente. Faleceu num sábado, 29 de agosto. Um dia antes me ligara: era o último de sua vida — como poderia saber? —, mas estava interessado numa coisa de somenos importância, diante da enormidade do passo seguinte. Queria saber se eu topava pleitear uma vaga na direção municipal. Com a voz estrangulada pela rouquidão, quase não entendi o que falava. Propora indicar o meu nome para a chapa vencedora; se dispôs a defendê-lo como postulante do grupo. Aceitei sua ilusão e respondi-lhe com firmeza, como se travássemos um despreocupado diálogo entre Esculápio e Ganime­des. Foi a última vez que nos falamos. Antes que morresse nos encontramos algumas vezes, em sequência. A quarta vez foi há duas semanas, em sua casa, nas proximidades da Praça Cívica. O motivo, ordinário, era o partido: o partido era o elo que nos unia e nos separava. Marcus Messner, o egoísta, não tinha mais o gosto religioso das confrarias, como seu amigo de outros tempos, que se tornava, gradativamente, uma relíquia histórica. Messner achava insuportável a ideia de viver e morrer em função do grupo, como se o mundo permanecesse dividido entre comunistas e capitalistas: talvez o quiséssemos; talvez fosse insuportável perder o chão, mas a vida não liga. A história é a maior potência da história. Desenraiza-nos, atropela nossas paixões. É invencível. Entre debiques e fumaradas, Mar­tiniano se divertia com reuniões muito mais do que eu — como aliás se divertiu, naquele dia, no início da tarde. Na roda en­contrávamos eu, ele, uma professora do primário, um casal de funcionários públicos, uma em­pre­gada doméstica e um jornaleiro gordo e bonachão, que descia de Nerópolis: Daniel, a erva daninha. Quase nunca dava certo de nos encontrar: éramos poucos e pouca a motivação. Suspeitei, por isso, que a urgência do seu caso foi mais interessante do que o pretexto original: pela primeira vez havia um acordo mútuo, entre nós. Com muito custo nos encontrávamos durante o ano e, agora, num único mês conseguimos articular duas reuniões em sequência: foram o terceiro e o segundo encontros. Se morresse um de nós a cada mês, em breve passaríamos de uma centena. Tentamos trazer outros elementos e a conversa estendeu-se até a uma importante entidade de trabalhadores rurais. Vislumbramos uma terceira reunião com um número dobrado de participantes. Só que não houve a terceira reunião, nem houve mais planos. As adesões não se confirmaram. Fracas­samos pela enésima vez, admiravelmente quixotescos. Na noite seguinte retornei so­zi­nho à casa de Martiniano, a seu pedido, pois ele queria avaliar o quadro. Recolhemo-nos na área dos fundos, de parelha com a cozinha. A empregada trou­xe à mesa pães de queijo assados na hora e um saquinho de soja torrada. Martiniano a­briu uma Bohemia e tomamos juntos. Bem baixinho, ouvi uma valsa de Strauss vindo de seu escritório (por alguma motivo eu me lembrei das músicas incidentais, nos filmes). Não era na verdade uma valsa de Strauss, mas eu não sabia que música era aquela e acreditei que ele poderia gostar de Strauss. Tinha seus refinamentos burgueses, apesar da filiação comunista. Sua casa era enorme e ele possuía um Fritz Dobbert, jazendo solenemente num dos cômodos espaçosos. Uma litografia de Siron, quadros de Antônio Poteiro e de outros artistas de renome enfeitavam as paredes da sala de visitas. Martiniano vivia bem, da forma que se merece, e eu não poderia censurar aquele amigo dos pobres por ter conquistado alguma dignidade. Na estante destacavam-se, ao primeiro golpe de vista, as grossas lombadas vermelhas das biografias de Che, Stálin e Mao, vidas pelas quais nunca me interessei. Enquanto degustávamos os aperitivos, olhei para ele e sugeri: “Vamos esquecer a formação do grupo. Já há muitos partidos no partido, não acha?” Preparei-me para ser duramente altercado, pois ele envolvera-se na causa a ponto de ainda mandar tomar no cu, como fazia todas as vezes em que se sentia contrariado. Era bom sinal que me mandasse tomar no cu, coisa que eu não tinha coragem de mandá-lo fazer. Era bem mais velho do que eu e, apesar de ser liberal e curtidor, uma espécie de respeito se me impunha e eu não conseguia tratá-lo com tanta intimidade. Apesar da doença Martiniano teimava em viver com certa normalidade seus últimos dias, e por isso portava-se como um imaculado. Tentando enganar-se, acho, ele agia como se tudo estivesse sob controle, embora porcaria nenhuma estivesse mais sobre controle. Ainda me ligava com a frequência habitual, passava e-mails, jogava paciência em seu computador, bebia cerveja e interessava-se pelos destinos do grêmio. E continuava fumando um cigarro atrás do outro, mais ansioso do que nunca. Eram expressões de seu interesse pela vida. Como repreendê-lo pela anestésica carteira diária de Carlton? Se tinha medo, não é o que desejava transparecer, irônico ainda, risonho ainda. Um lapso e a certeza: vai se recuperar, por que não? Com tal interesse pela vida, eu poderia jurar que daria a volta por cima e faríamos muitas outras reuniões — quem sabe ainda viraríamos o mundo de pernas pro ar, como ele sonhava! Erámos sete personagens típicos, que lembravam o germe das revoluções inacabadas. Que me lembravam “A Jangada”, de Gericault... De qualquer modo achei sinceramente que seria possível: a vida não é um amontoado de absurdos? Tudo pode mesmo acontecer, se você acredita, se você se empenha. Para minha surpresa, ante a ideia de abortar nossos movimentos, Martiniano apenas olhou para mim e deu um sorriso de aceitação. Isso não fazia parte do script. Tive a impressão de que o sorriso dele flutuara fora do tem­po. Pensamentos terríveis minavam a atenção de Martinia­no, enquanto ele sorvia a cerveja e tragava um cigarro, que o tragava. A intervalos tossia e pigarreava, massageando a garganta enfermiça. O pijama de seda deixava seu aspecto ainda mais lívido e convalescente: quase morto. Não respondeu nada durante alguns minutos, sentado, quieto. Limitou-se a contemplar o que já não cabia em pensamentos. Dado instante, fe­cha­ra os olhos e roçara a testa, a­fo­gando-se para dentro de si. Eu es­tava vendo derreter uma estátuas de cera, como aquelas dos mu­seus. Novo trago. Olhei de novo; novo e discreto sorriso, eloquente de doer (um amigo por perto pode servir de boia no pânico, eu recordaria nas próximas horas). Deixar tudo de lado já não soava uma perda tão importante assim. Dali a pouco eu me despedi com a trivialidade de sempre, sem saber, ignorante, que nunca mais apertaria a sua mão. O último contato e a última palavra entre amigos podem ser de uma banalidade impressionante. Assim aconteceu entre eu e ele. Na segunda-feira, 31, ao chegar ao trabalho, meu diretor me surpreende ao dizer que Martiniano “morreu”. Incrédulo, fui ao jornal do dia, olhei e lá estava ele, Martiniano, estampado sob a nota ruim e inequívoca, despertando-me para a realidade, mais irreal do que o sonho. Era mesmo ele: o homem de chapéu de feltro e barba destruída pela quimioterapia — um líder perdido para a doença. Mas, alegre, continuava sorrindo para nós, como se fosse imune. A alegria que é a maior recusa, o maior protesto. Vá lá o corpo — mas o que são feitos dos sentimentos de uma pessoa, quando ela morre? Caberá mesmo numa cova o coração de um homem? Leio o conteúdo inacreditável, conheço sua agonia e descubro que tinha sido sepultado no dia anterior. Enquanto morria eu traçava planos de futuro, sem nunca imaginar como foi duro o seu final de semana. Hemorragia, parada cardíaca e óbito. Conhecia Martiniano há três anos. Apesar da diferença de idade que nos separava, quis de mim um amigo, desses de sair para o boteco. Fiquei devendo a ele uma rodada, que para sempre teceu um vínculo de afeto entre nós. Nunca lhe perguntei se acreditava na vida após a morte (não sofria a doença da gravidade, como eu). Se ela existe, saberá agora que não resisti de fazer esse conto, com feitio de crônica, em sua homenagem. As palavras me atormentaram e tive de me livrar delas, para sobreviver sem omissão. Na­quela mesma segunda-feira, à noite, eu conferi no celular as chamadas recebidas e lá estava, pela última vez, o seu nome: “Martiniano 28/08/09 15:22”. Fiquei olhando seu nome, o dia e a hora cravada. Deti-me por um momento, perplexo com esses dados, aparentemente insignificantes. Eu estava agora diante do último criptograma, diante já do mistério insondável e surpreendente que nos assusta feito crianças. J.C. Guimarães é escritor e crítico literário.