As coisas incríveis de Mário Filho

28 junho 2014 às 13h00

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“As Coisas Incríveis do Futebol” reúne 25 crônicas do jornalista Mário Filho, constituindo um recorte significativo de seu estilo de escrita e modo de ver o futebol. As crônicas são compostas de modo fluente, num tom coloquial, com pitadas de fina erudição, repletas de frases de efeito e construções sonoras
Ademir Luiz
Especial para o Jornal Opção

Eu falo muito sobre futebol. Há tempos deixei de torcer, atualmente sou mais um entusiasta do esporte pelo que ele possui de épico e humano. Admiro-me do fato do futebol ser o maior bem simbólico da humanidade. Quase todos os povos do globo, independentemente de crenças religiosas e regimes políticos, o praticam. Fique claro que estou longe de ser um cientista, um pesquisador, um catedrático da bola. Sento na arquibancada quando vou ao estádio, não fico nos camarotes ou nas cadeiras numeradas tomando chá, enrolado num cachecol e tirando fotos para postar na internet. Embora, por motivos de senso estético, evite participar da “hola”, futebol para mim é, sobretudo, diversão, ainda que diversão reflexiva. Tenho lá minhas idiossincrasias. Sou do tipo que analisa estatística, inventa esquemas táticos mirabolantes, escala equipes impossíveis formadas com os melhores de todos os tempos, de diferentes épocas. Coleciono uniformes da seleção da Holanda, tendo atualmente seis deles, incluindo o clássico de 1974. Coisa de doido!
Quem sofre são meus alunos na UEG (Universidade Estadual de Goiás). Eles, diferentemente de meus amigos e familiares, em tese, não podem me mandar calar a boca. Ultimamente, no esquenta do mundial de 2014, tenho observado que entre os estudantes universitários esse é um assunto controverso. Muitos estão influenciados pela ingênua campanha do “não vai ter Copa”, versão pós-moderna da velha ladainha de que o “futebol é ópio do povo”. Outros simplesmente afirmam que é perda de tempo, que não gostam. Outro tanto são apreciadores, mas não apresentam muito senso histórico e de proporções. Pelé, por exemplo, perdeu muito de seu prestígio nacional (não internacional) com as novas gerações, fenômeno esse que atribuo a expansão do politicamente correto que tomou conta do esporte desde a era Senna. Pouco se fala de Garrincha. Romário está se tornando folclore, enquanto Ronaldo está se tornando piada pronta. O mito de Zico tem resistido bem, talvez por se encaixar perfeitamente no arquétipo sennista de atleta.
Diante desse cenário costumo apresentar certa bibliografia para justificar meu entusiasmo, até porque na universidade tudo o que apresenta bibliografia ao final ganha ares de irrefutabilidade. Aconselho a leitura das crônicas de Nelson Rodrigues, reunidas nos volumes “À Sombra das Chuteiras Imortais” e “A Pátria em Chuteiras”, organizadas por Ruy Castro, no qual se tem verdadeiras aulas de História do Brasil, Sociologia e Antropologia via futebol. Recomendo o denso “A Dança dos Deuses”, do medievalista Hilário Franco Jr., para se aprofundar nas estruturas históricas da formação do mundo moderno e suas relações com o desenvolvimento do futebol. Insisto que leiam até o mediano “Futebol ao Sol e à Sombra”, de Eduardo Galeano, para me ancorar no prestígio do exagerado “As Veias Abertas da América Latina”, pois, espero que assim raciocinem, se o autor do segundo escreveu o primeiro, talvez o futebol não seja tão ópio assim.
Finalmente, para dar solidez de diamante aos meus argumentos, não me furto de citar dois clássicos: “O Negro no Futebol Brasileiro”, de 1947, e “Viagem em Torno de Pelé” (1964), ambos do jornalista Mário Filho (1908 – 1966). Gilberto Freyre escreveu o prefácio de “O Negro no Futebol Brasileiro”, reconhecendo-o como um trabalho fundamental para compreender a formação do Brasil. Certamente, é digno de figurar na mesma estante que os livros de Freyre.
Segundo José Trajano, “nenhum de nós, jornalistas esportivos, somos capazes de engraxar os seus sapatos. Não me venham de Armando Nogueira, João Saldanha, Thomas Mazzoni ou Nelson Rodrigues, irmão dele, todos sensacionais e de tirar o chapéu. Perto de Mário Filho eles estão distantes anos-luz”. Apesar de tamanha importância, mesmo na era do PDF de internet, a obra de Mário Filho estava se tornando de difícil acesso. Depois da biografia “A Infância de Portinari”, de 1966, a última vez em que foi publicado foi na coletânea de crônicas “Sapo de Arubinha”, de 1994.
Para suprir essa lacuna a editora Ex Machina, fundada recentemente por Bruno Costa, ex-sócio da Editora Hedra de São Paulo, lançou “As Coisas Incríveis do Futebol — as melhores crônicas de Mário Filho”, com apresentação de José Trajano e organização de Francisco Michielin. Não poderia ser em melhor hora, considerando que Mário Filho foi um dos nomes mais importantes nos bastidores da Copa de 1950, sendo que o estádio Maracanã foi batizado oficialmente com seu nome. Sessenta e quatro anos depois o Brasil sedia novamente o mundial.
“As Coisas Incríveis do Futebol” reúne 25 crônicas de Mário Filho, constituindo um recorte significativo de seu estilo de escrita e modo de ver o futebol. As crônicas são compostas de modo fluente, num tom coloquial, com pitadas de fina erudição, repletas de frases de efeito e construções sonoras, boas para serem lidas em voz alta. Parece-me que ali está capturado, e retrabalhado literariamente, o modo de falar das décadas de 1940 e 50, corte cronológico do volume. A crônica mais antiga, intitulada “Sururu”, foi publicada em “O Globo Esportivo” em 5 de outubro de 1945, enquanto a mais recente, intitulada “O individualismo no futebol brasileiro”, foi publicada na “Manchete Esportiva” no dia 6 de abril de 1957. O título da coletânea foi extraído de uma série de sete crônicas que Mário Filho publicou entre setembro e outubro de 1947, em “O Globo Esportivo”, sendo que algumas delas, trazendo histórias pitorescas sobre personagens do mundo do futebol, estão presentes no livro.
Mas o livro vai muito além de histórias pitorescas. Entranhadas nas crônicas, quase que como anéis escondidos, estão presentes algumas reflexões profundas e complexas sobre a realidade sociocultural do Brasil. Na citada crônica sobre “O individualismo no futebol brasileiro”, Mário Filho dialoga com a tese de Sérgio Buarque de Holanda sobre o bacharelismo reinante das relações sociais brasileiras ao escrever que a “maneira de ser brasileira, a do brilho pessoal, a do anel de doutor no dedo, mesmo sem diploma, a do título de doutor, mesmo sem anel, a do discurso, a do soneto, pecados que todos cometiam ou se vangloriavam de ter cometido, às vezes em confissões como que envergonhadas mas que no fundo eram sussurros do orgulho humilhado”, motivavam o futebol livre, leve e solto praticado pelos brasileiros, que subvertia a lógica original do esporte frio e calculado dos inventores ingleses.
Em outro momento, na crônica “O torcedor de rádio”, de 10 de fevereiro de 1950, Mário Filho antevê a importância que o futebol teria nas décadas seguintes para a cultura de massa. Pergunta: “Quem não andou torcendo pelo rádio por ocasião do campeonato do mundo? Gente que nunca se preocupara com futebol descobriu, de um momento para outro, uma vocação irresistível de torcedor”.
A seleção de textos realizada por Francisco Michielin enfoca, sobretudo, episódios cotidianos do esporte, usando-os como trampolim para voos maiores de imaginação, como na crônica “O poeta e o passado”, com participação especial de José Lins do Rego, e reflexões sobre o desenvolvimento e as características peculiares do futebol conforme praticado no Brasil. No posfácio, Michielin explica que “Mário Filho foi um pioneiro, um inovador, alargando sua influência. Que ele tenha mudado a abordagem do futebol, através da imprensa, é fato notoriamente reconhecido e celebrado por todos (…) dotado de uma estética de rara singeleza, a nos fazer rodopiar por um carrossel de alegorias e alegrias; existenciais, expositivas, dramáticas, irreverentes e, sobretudo, inteligentes”. Por esse trecho parece-me evidente que os critérios de seleção foram mais estético-literários do que históricos. Certamente, é um critério válido já que o livro se propõe a republicar as “melhores crônicas” do autor. Contudo, não deixa de fazer falta a faceta de Mário Filho enquanto testemunha da história. Seria interessante ler suas perspectivas acerca de episódios como a surpreendente campanha da Seleção Brasileira na Copa de França de 1938, o Maracanaço de 1950, a Batalha de Berna de 1954, a vitória em 1958, o bi em 1962. Quem sabe pode ser o mote para um segundo volume.

Ao mesmo tempo chama atenção a opção por praticamente não enfocar grandes craques da época, como Pelé, Garrincha, Di Stefano ou Puskas. Estrela o livro figuras semiesquecidas, como Belfort Duarte, Haroldo e Mimi Sodré. O célebre zagueiro Domingos da Guia é uma exceção, e mesmo essa exceção surge de modo a reforçar o esquema geral.
Nesse ponto cabe uma comparação, que fiz questão de evitar até o momento, entre Mário Filho e Nelson Rodrigues. Embora a escrita do caçula fosse claramente devedora do estilo do primogênito, os objetivos eram diametralmente opostos. Enquanto Nelson Rodrigues buscava o épico, Mário Filho cultivava o humano. Não é por acaso que o título da coluna de Nelson Rodrigues era “à sombra das chuteiras imortais”, ele de fato retratava seus personagens como deuses do futebol, como figuras acima da vida. Afirmava que o meia Didi possuía a dignidade inata de um “Príncipe Etíope”, defendia que do peito de Pelé “parecem pender mantos invisíveis”, para ele “Garrincha está acima do bem e do mal”.
Nada disso aparece no irmão mais velho. Mário Filho fala do capitão de time que não tem tostão para pegar o bonde, do jogador honesto demais para fazer falta em um companheiro de trabalho, do perneta que jogava futebol. Tipos muito próximos dos torcedores, dando a sensação que os protagonistas de suas crônicas poderiam ser seus vizinhos, amigos ou até eles mesmos. A crônica “Notas para uma biografia de Domingos da Guia” é sintomática. Nela não aparece o beque genial, lendário, mitológico, o atleta acima de todos os outros. Não, longe disso, aqui Domingos da Guia surge como Domingos Antônio, apenas o mais habilidoso de uma família que trazia o futebol no sangue (Mário Filho não sabia que o melhor estava por vim, na figura do divino mestre Ademir da Guia). Domingos é retratado como um homem humilde, até ingênuo, mas muito correto e trabalhador. Um homem que achava que “meu futuro não está no futebol”, que labutou como mata-mosquitos e serralheiro, só jogando futebol nos finais de semana, que tinha receio de ofender os cartolas ao negociar seus contratos. O Domingos da Guia de Mário Filho não joga com chuteiras imortais, é, sim, humano, demasiadamente humano.
Esse senso de humanidade é justamente o maior legado deixado por Mário Filho, que fez pelo futebol o que Gilberto Freyre fez pela Casa-grande, pela Senzala, pelos sobrados e pelos mucambos. Suas crônicas são obrigatórias, foram coisas incríveis que o futebol permitiu que existissem.
Ademir Luiz é escritor e doutor em História.
Editor da Ex Machina é o goiano Bruno Costa
A Ex Machina, editora nacional, é dirigida pelo goiano Bruno Costa, ex-editor da Hedra (onde fez um trabalho magistral). Ele mora em São Paulo há vários anos.
Bruno Costa, além de editor nato e atilado, é tradutor do primeiro time. Intelectual, conhece literatura como poucos.
“As Coisas Incríveis do Futebol — As Melhores Crônicas de Mário Filho” é o primeiro livro editado pela Ex Machina. As crônicas, em tempo de Copa do Mundo, ganharam resenhas e notas nos principais jornais do país. O livro foi publicado com o habitual capricho do jovem editor.