A confluência poética de Jennifer Franklin
05 julho 2014 às 09h54
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Poeta ainda pouco conhecida no Brasil, Jennifer Franklin unifica formação clássica e expressividade intimista para dar voz a uma experiência de vida absolutamente pessoal: a experiência de uma maternidade impactada pela realidade do autismo
Lucio Carvalho
Especial para o Jornal Opção
Estou entre as pessoas que acredita que, acima de qualquer outra coisa, a literatura é uma forma de conhecimento. Penso que isso pode ser especialmente verdadeiro quando se trata de poesia. Em minha experiência, a leitura da poesia funciona como tomar-se emprestados os olhos de outra pessoa, apropriar-se de seus sentimentos, sua capacidade perceptiva e sensibilidade. Dessa forma, a interpretação da poesia pode extrapolar em muito a análise de seus próprios aspectos formais, ainda que deles seja dependente em seu processo criativo.
Assumo a revivificação da ideia de Werner Jaeger de que a poesia é “psicagogia”, matriz de conversão espiritual imbuída de universalidade e vitalidade. Talvez seja por isso que custe tanto a entender como podemos prescindir, no Brasil, do conhecimento de poetas fundamentais até mesmo para a literatura do século 20 e possamos permanecer aparentemente à margem não do universal, mas do universo propriamente dito. No caso da poesia norte-americana, estou falando de poetas premiados como Robert Lowell, Adrienne Rich, Anne Sexton, Robert Frost, entre muitos outros. Assim, é só por fatalidade que podemos antever a presença de uma nova geração de poetas e escritores, já que grande parte das editoras está atualmente empenhada em outra espécie de publicações.
Marcada desde meados do século 20 pela dicotomia impessoal/confessional (principalmente na obra de T. S. Eliot e Wallace Stevens de um lado e Robert Lowell e Sylvia Plath, de outro) a poesia norte-americana contemporânea, assim como grande parte da poesia ocidental, chega ao século 21 de forma multiversa e simultânea. Os movimentos culturais posteriores ao modernismo não apenas multiplicam-se, mas ramificam-se e derivam para matizes muitas vezes indistinguíveis. Ao passo que a geração beat consolidou a libertação formal, nas universidades o estudo da poesia mantém vivo tanto o interesse nos clássicos como se relaciona mais abertamente com novas formas expressivas, como não poderia deixar de ser. Poeta ainda pouco conhecida no Brasil, Jennifer Franklin unifica formação clássica e expressividade intimista para dar voz a uma experiência de vida absolutamente pessoal: a experiência de uma maternidade impactada pela realidade do autismo.
Três poemas de
Jennifer Franklin
My Herculaneum
When I arrived, I thought I knew how to live.
I saw my future as clearly as new frescoes
On stone. What I didn’t have, I made do without —
Or invented: the trompe l’oeil mosaic in the summer
Triclinium for a real garden. The songs of birds
From the nymphaeum’s painted trees. Long expert
At knowing the world through the words of others,
I thought there would be time to live. Before her
Diagnosis, my feeling of fortune was as ostentatious
As patrician villas, tempting disaster.
(…)
Wounded amazon
With her serene, slanted face that will
Not betray pain, I can look at her again.
You always loved her—the first work
Of art you knew by name. Each week
You brought me to her. Distracted
By joy at seeing her tall marble form,
I didn’t realize you were showing me
Whom I needed to become to protect
You from all you did not understand
(…)
I would like my love to die
after Beckett
I would like my love to die
Or at least that I didn’t love you
So much. If I could turn my heart
To winter, I wouldn’t need to do this
To the earth. If you didn’t smile
In your sleep or touch my face
With tenderness, I could walk away
From you when you left through
The trap door of my hosta-lined heart
Without looking back.
(…)
Conheci a poesia e um pouco da biografia de Jennifer por meio do livro do jornalista norte-americano Andrew Solomon, “Longe da Árvore: Pais, filhos e a Busca da Identidade”, publicado em 2013 no Brasil pela Companhia das Letras. A partir de um pequeno trecho de sua poesia, transcrito por Solomon em seu livro, busquei encontrá-la em outras fontes, até chegar ao seu “Persephone’s Ransom”, disponível — em inglês — na Amazon e na Finishing Line Press. O livro integra uma obra maior, ele seria a segunda parte de um conjunto mais amplo de poemas, ainda inédito, “Daughter”.
“Persephone’s Ransom” é um momento especial em que a autora faz confluir sua poética anterior, marcada pela influência de uma poesia mais estudada e da “ekphrasis”, com os momentos cruciais da descoberta e convivência com o autismo de sua filha. No livro, os arquétipos da mitologia grega criam uma espécie de relevo tátil por meio do qual Jennifer expressa seus sentimentos mais profundos e atravessa uma experiência de perda e recomposição, que ela compara ao mito do rapto de Perséfone e dos ciclos que ele impõe ao mundo.
Correspondi-me com Jennifer muitas vezes na tentativa de traduzi-la para o português e também a fim de compreender melhor sua dicção e biografia. Apesar de ela ter iniciado a carreira literária antes mesmo de ser mãe (ela diz que ainda na adolescência, aos 15 anos), a realidade do autismo, diagnosticada aos dois anos de idade de sua única filha, impôs-se como temática visceral em sua produção. A maternidade e a relação com a filha não são seus únicos motivos, mas mola propulsora da poética que vem construindo em uma carreira que começou em 1996, na “The Paris Review”. Depois disso, passou por diversas revistas literárias como a “Antioch Review”, “Gettysburg Review”, “Pequod”, “Southwest Review”, “Western Humanities Review”, “New England Review”, “The Nation”, “Salmagundi”, “Boston Review” e “Guernica”; ela também chegou a ser finalista de diversos premiações nos Estados Unidos, tais como o Gerald Cable Book Award, o Autumn House Press Prize in Poetry e o ABZ Prize in Poetry.
Após alguns meses nos quais trocamos muitas impressões, não chegamos a um ponto de mútua satisfação para dar por encerradas as tentativas de tradução. Em dado momento, por uma leitura casual de Jorge Luis Borges, chegamos ambos à conclusão de que os poemas seriam melhor apresentados se mantidos no idioma original. No prólogo de “Para Las Seis Cuerdas”, Borges diz que “toda lectura implica una colaboración y casi una cumplicidad” e no de “El Oro de Los Tigres” que “para un verdadero poeta, cada momento de la vida, cada hecho, debería ser poético, ya que profundamente lo es”. Para ele, a poesia só é traduzível como recriação, jamais por dizer respeito a um sistema de códigos linguísticos. Trata-se de uma expressão enraizada na pessoa e realizada em sua língua materna. A um determinado ponto, ficou claro que traduzir os poemas de Jennifer implicaria em revivificar momentos cruciais e absolutamente pessoais de sua vida, coisa que é definitivamente impossível porque na experiência íntima não existe nunca um “como se”. De outra forma, seria inevitável esbarrar nos próprios limites da expressão quando fosse mais proveitoso ao leitor descobrir sua poesia conforme originalmente expressa.
Os trechos de poemas que se seguem representam dois dos três momentos presentes em “Daughter”. Os dois primeiros, “My Herculaneum” e “Wounded amazon”, correspondem aos poemas de sua segunda fase, posterior à época de sua formação acadêmica, nas Universidades de Brown e de Columbia, nas quais cursou Inglês e Escrita Criativa. São poemas marcados pela confluência do estilo descritivo no qual teve formação com alguns de seus principais interesses estéticos e culturais: a mitologia e história greco-romanas e a representação artística, unificados por meio da temática da maternidade e do conhecimento travado com o autismo da filha. “Wounded amazon”, segundo Jennifer, foi criado a partir da reação intensa que a filha, por volta dos 2 anos de idade, manifestava em relação a “Statue of a Wounded amazon” , localizada na galeria de escultura greco-romana do Metropolitan Museum of Art, que mãe e filha frequentavam desde sua época de bebê, para as sessões de leitura e narração de histórias. O último deles, talvez o mais impactante entre todos, sobretudo pela delicadeza e profundidade emocional, “I would Like my love to die”, integra a última parte de “Daughter” e representa um momento de purificação formal no trabalho de Jennifer, no qual ela se expressa em relação ao envolvimento com a filha de forma mais direta, sem motivos adjacentes e dando maior vazão aos próprio aspectos emocionais. O poema tem como base um verso de Samuel Beckett, “je voudrais que mon amour meure”.
Seria absurdo pretender que, em uma apresentação rápida como esta, pudesse demonstrar muito mais do que está aqui. A ideia fundamental reside tão somente em desvendar a trajetória de uma poeta ao mesmo tempo delicada e vigorosa que, confrontada com uma realidade inesperada, exacerbou-a como significação poética de grande intensidade expressiva. Sua obra obteve um facho de luz por meio da monumental obra de Andrew Solomon sobre o amor e a condição humana. Talvez, por isso, seja possível compartilhar de sua aventura como quem pode prestar atenção na riqueza de sua experiência individual, como se através de seus próprios olhos, projetando-se com a potência dos mitos aos quais se remete para amplificar ainda mais nossa compreensão universal e atemporal do humano, tão embotada pela aridez a que, enquanto leitores, temos sido frequentemente expostos e/ou mantidos.
Lucio Carvalho é coordenador-geral e editor da revista “Inclusive: Inclusão e Cidadania” autor de “Morphopolis”.