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Filme de Marília Rocha é retrato do encontro entre quem está chegando e quem já quer ir embora

Personagens Tereza e Francisca nos mostram que viver não consiste apenas em achar seu lugar no mundo. Consiste em estar bem consigo mesmo, onde quer que se esteja [caption id="attachment_99092" align="alignleft" width="620"] Atrizes Elizabete Francisca Santos e Francisca Manuel, em cena do longa de Marília Rocha[/caption] Teresa (Elizabete Francisca Santos) vem de algum lugar, por algum motivo, e chega em Belo Horizonte com o objetivo de dar um novo rumo para a vida. Francisca (Francisca Manuel) já está na capital mineira há cerca de um ano, mas não parece muito satisfeita com o que sua vida se tornou, e parece procurar novos rumos, ainda que de forma tímida. A motivação do longa de Marília Rocha, "A cidade onde envelheço" (2016) está aí. De onde viemos? Para onde vamos? O que queremos? O que nos leva a querer algo mais, ou achar que não queremos mais nada? E pinçando apenas uma janela de existência, somos convidados a observar esse retrato do encontro entre quem está chegando e quem já quer ir embora.

O filme foi considerado o melhor longa-metragem do 49° Festival de Cinema de Brasília, no ano passado. Lançado na rede de cinemas nacionalmente no início do ano, e apenas recentemente liberado em home vídeo e plataformas de streaming, a produção é uma importante parceria Brasil-Portugal que se passa em Minas Gerais, mas que aborda de forma sensível e universal a discussão sobre o lugar de cada um no mundo.

Como imigrante portuguesa recém-chegada em terras brasileiras, Teresa não sabe bem o que vai encontrar por aqui. Seu único elo é com Francisca, uma amiga de infância que já vive como brasileira há um tempo. A cena inicial de Francisca liberando espaço em sua própria casa é significativa, porque ao mesmo tempo que simboliza o pequeno incômodo trazido pela chegada de Teresa, também é a novidade que traz cor à rotina da dona da casa.

É difícil se adaptar a mudanças. Todo mundo sabe que enfrentar uma nova escola, uma nova faculdade, uma nova família, uma nova cidade ou qualquer outro caminho que destoa da rota traçada inicialmente traz dor de cabeça. A busca por Teresa em estabelecer-se e criar vínculos soa um pouco desesperada no início, em diálogos com estranhos no aeroporto ou enquanto toma um lanche num bar seboso qualquer da cidade. Todos somos assim. Existe certo desespero inicial em fugir do estranho, em ser reconhecido, querido, pertencido. Porque só quando não temos mais preocupação em ser aceitos é que podemos, de forma livre, simplesmente ser. Ou não?

Francisca traz o outro lado da moeda. Não lhe resta muito vigor em inserir-se num país diferente do seu, com costumes exóticos ou um jeito de ser pretensamente preguiçoso. Quando não existe mais nada a ser explorado e a rotina bate forte, resta a saudade de quando não éramos. O desejo de retornar às raízes, ao frescor da busca, a adrenalina da inexperiência. Dos vínculos mais fortes com o passado e com a família.

Narciso acha feio o que não é espelho. E a ausência de reflexo, numa via de mão dupla, pode ocorrer quando não há espelho, ou quando este já está gasto e empoeirado. Assim se enfrentam Teresa e Francisca.

[caption id="attachment_99091" align="alignleft" width="185"] Cartaz do filme "Cidade onde envelheço" (2016)[/caption]

A obra tem um clima leve e sensível, recheado de situações cotidianas engraçadas, expressos em diálogos gostosos. Grandes questões universais são jogadas sobre a mesa como guardanapos e copos de cerveja, quase que convidando-nos a dar opinião também. A atuação de Elizabete Francisca Santos e Francisca Manuel se destaca, e sem dúvida nenhuma é um dos pontos fortes do filme, junto com a trilha sonora que traz Jards Macalé, Dead Combo e Jonnata Doll e os Garotos Solventes (estes últimos com performances divertidíssimas ao vivo. Jonnata chamou a atenção do Brasil recentemente, como um dos convidados na turnê do show de comemoração de 30 anos do lançamento do disco "Legião Urbana", com Dado e Bonfá).

Enfim, Tereza e Francisca nos mostram que viver não consiste apenas em achar seu lugar no mundo. Consiste em estar bem consigo mesmo, onde quer que se esteja. Encontrar seu lugar dentro de si próprio. E tendo isso como norte, o título do filme, carregado de ambiguidade, também explicita a dualidade expressa pelas nossas complexas personagens: Quem não quer ter uma cidade para se envelhecer? Por outro lado, quem é que quer envelhecer?

Os 10 melhores poemas de Bruno Tolentino

Morto há dez anos, Bruno Tolentino deixou uma obra poética incontestavelmente sólida e importante, que pode ser apreciada em poemas como "O Anjo Anunciador",  "O Pavão", "O Morto Habituado", "Noturno" e muitos outros [caption id="attachment_98972" align="aligncenter" width="620"] Poeta Bruno Tolentino (1940-2007)[/caption] Na última terça-feira, 27, a morte de Bruno Tolentino completou uma década. A fim de alimentar um pouco da chama da obra do grande poeta carioca, solicitei ao crítico Jessé de Almeida Primo (que, junto a Juliana P. Perez, fez os comentários e notas à edição especial de "As Horas de Katharina" [Record, 2010]) que fizesse uma lista dos 10 melhores poemas de Bruno. Ou, melhor dizendo: dos 10 poemas mais importantes e emblemáticos, que expusessem, sobretudo àqueles que ainda não são familiarizados com o autor de "O mundo como ideia", a dicção e o universo poético tolentiniano. Jessé, muito gentilmente, me forneceu a lista que reproduzo abaixo. Apreciem!

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O MORTO HABITUADO Não são leves os laços do absurdo exercício: o homem lado a lado com seu laçado ritmo. muito menos cumprido do que dependurado, plataforma do umbigo ao pescoço do hábito. Mas ao engravatado qual o conforto vindo provar que o inimigo não inventou o laço? Por outro lado, fausto do que secreto visgo se o absurdo do ato costuma ser tranquilo? Discreto e convencido, como não dar o laço, rebento do risível com o bem comportado? Conhecer o ridículo quando se chama exato, isento de impossível e impossibilitado? Demasiado antigo, já não é bem um trato: vertical compromisso, enforca-se o enforcado. NOTURNO Não sou o que te quer. Sou o que desce a ti, veia por veia, e se derrama à cata de si mesmo e do que é chama e em cinza se reúne e se arrefece. Anoitece contigo. E me anoitece o lume do que é findo e me reclama. Abro as mãos no obscuro, toco a trama que lacuna a lacuna amor se tece. Repousa em ti o espanto que em mim dói, noturno. E te revolvo. E estás pousada, pomba de pura sombra que me rói. E mordo o teu silêncio corrosivo, chupo o que flui, amor, sei que estou vivo e sou teu salto em mim suspenso em nada. AO DIVINO ASSASSINO
Uma litania ante o Sagrado Coração concebida em Paray-le-Maulnier, tempos depois do acidente fatal de Anecy Rocha Senhor, Senhor, o Teu anjo terrível é sempre assim? Não tens um refratário à hora do massacre – um mais sensível que atrasasse o relógio, o calendário? Ao que parece a todos tanto faz por quem o sino dói no campanário. Começa a amanhecer e uma vez mais rebelo-me, mas sei que a minha vida não tem como ou por que voltar atrás. Aceito que a mais dura despedida é bem mais que metáfora do nada a que se inclina o chão; que uma ferida e a papoula sangrenta da alvorada pertencem ao mundo sobrenatural tanto quanto uma lágrima enxugada à beira de um caixão. Mas afinal, Senhor, amas ou não a humanidade? Não fui ao escandaloso funeral e imaginá-la em Tua eternidade dói demais! Vou passar mais este teste, sim, mas protesto contra a insanidade com que arrancas à muque o que nos deste! Tu sabes que a soberba da família era maior que a dela e eu tinha a peste – pai e mãe apartavam-me da filha e o irmãozão nem falar… E hoje, coitados, como hão de estar? Aqui é a maravilha, as genuflexões… Os potentados e os humildes, a nata da esperança, todos chegam por cá meio esfolados, sangrando como a luz. Não só da França, toda a Europa rasteja até aqui esfolando os joelhos, não se cansa de ensangüentar-se até chegar a Ti e ao menos a um pixote do Além Tejo restituíste a vista; eu quando o vi solucei – mas que o cego e o paraplégico saiam aos pinotes, que o Teu coração se escancare e esparrame um privilégio aqui e outro acolá na multidão, só me faz perguntar: E ela? E ela…? Não consigo entender que a um aleijão concedas tanto enquanto a uma camélia Tu deixas despencar… Por que, Senhor? Olho tudo do vão de uma janela, mas vejo a porta de um elevador escancarar-se sobre um outro vão, um vão sem chão… E a seja lá quem for aqui absurdamente dás a mão! Me pões trêmulo, gago, estupefato, pasmo, Senhor – mas consolado não. A mesma mão que fez gato e sapato da minha doce Musa, cura e guia, cancela as entrelinhas do contrato, Dominus dixit… Mas quem merecia mais do que uma açucena matinal um manso desfolhar-se ao fim do dia, quem mais do que uma flor, Senhor? Igual nunca viram os mais alvos crisantemos, tinha direito a um fim mais natural, à morte numa cama, em casa ao menos… Mas não – tinha que ser total o escândalo! Por que, se nem nos circos mais extremos Teus mártires andaram despencando sobre os leões, se nem o lixo cai de oito andares aos trancos, Santo Vândalo?! Não vim denunciar o Filho ao Pai ou o Pai ao Filho, não vim dar razão aos que recusam e usam cada ai contra a humildade; vim porque a Paixão me chamou pelo nome e a alma obedece e aceita suar sangue – como não? Mas não sei mais unir o rogo à prece do que a elegia ao hino de louvor, não sei amar-Te assim… Caso o soubesse teria que ficar aqui, Senhor, aqui, arrebentando-me os joelhos, esfolando-me todo ante um amor que vai tornando sempre mais vermelhos, mais duros os degraus do Teu altar. Tu, que tudo consertas, dos artelhos que desentortas e repões a andar até às pupilas mortas de um garoto, do cachoupinho que me fez chorar; Tu, que a este lhe dás a flor no broto e àquele o lírio pútrido do pus; Tu, que passas por um de quatro e a um outro pegas no colo e entregas a Jesus; Tu que fazes jorrar da rocha fria; Tu que metaforizas Tua luz ao ponto de fazer de uma agonia um puro horror ou a morna mansuetude – que hás de fazer, Senhor, comigo um dia? Quando eu agonizar, boiar no açude das lágrimas sem fundo… Quando a fonte cessar de soluçar e uma altitude imerecida me enxugar a fronte… Como há de ser, Senhor? Oxalá queiras que a mim me embale a barca de Caronte como o fazia a velha Cantareira, o azul da travessia… A Irrecorrível arrasta a cada um de uma maneira e a quem quer que se abeire ao invisível recordas a promessa: aquele a escuta e este a recusa porque a dor é horrível, mas, se a todos a última permuta terá sempre o sabor da anulação, o travo lacrimoso da cicuta, a ela Tu negaste o próprio chão, deixaste-a abrir a porta sem querer! Nunca falou na morte, e com razão, intuía, quem sabe, o que ia ver… Sentença Tua? Em nome da promessa não há negar Teu duro amanhecer – mas quando arrancas mais uma cabeça como saber que és Tu, que não mentia O que ressuscitou? Talvez na pressa, no pânico de Pedro, eu negue um dia e trate de escapar, mas hoje não; hoje sofro com fé e, sem poesia, metrifico uma dor sem solução, mas não vim negar nada! Faz efeito essa dor: faz sangrar, mas faz questão de defender-me como um parapeito contra a queda e a revolta… Um Botticelli despedaçou-se todo, mas que jeito, se por Lear enforcam uma Cordélia e encarceram a Ariel por Calibã…? Alvorece, a manhã beata velha enfia agulhas no Teu céu de lã, tricoteia Paray-le-Maulnier * e eu penso: ela morreu… Hoje, amanhã, enquanto Te aprouver e até que dê a palma ao prego e o último verso à traça, vai doer – mas Amém! Não há por que amar a morte, mas que venha a Taça, aceito suar sangue até ao final, como não… Tudo dói, menos a graça, mata, Senhor, que a morte não faz mal! Da Festa do Sagrado Coração em Julho de 1979 até aos 26 de Outubro de 1997.  
EM FRONTISPÍCIO "Eu vos compensarei pelos anos que o gafanhoto comeu…" (Joel, 2: 25) O Senhor prometera nos compensar os anos que a legião dos gafanhotos devorara, meu coração, mas a promessa era tão rara que achei mais natural vê-Lo mudar de planos que afinal ocupar-Se de assuntos tão mundanos. Assombra-me, portanto, ver uma luz tão clara fecundar-me as cantigas, coração meu — repara como crescem espigas entre escombros humanos… Naturalmente, quem sou eu para que Deus cumprisse em minha vida promessa tão perfeita, e no entanto hei-Lo arando, limpando os olhos meus, fazendo-os ver que, no trigal em que se deita a luz dourada e musical, se algo perdeu-se foi como o grão — entre a seara e a colheita. O ANJO ANUNCIADOR — Ouve, Maria, a nossa (não, não te assustes!) é uma luminosa tarefa: retecer o pequeno clarão que abandonaram, o lume que anda oculto pela treva! Porque irás conceber! Porque a mão, desejosa e tosca, que O tentara reter, ainda que leve, desfez-se ao toque, assim como uma vez tocado o sopro se desfaz a avara, a dura contração do peito ansiado... Mas a haste, o jasmim despetalado, é tudo o que ainda resta dos canteiros do céu aqui na terra, que um seco vento cresta e uma longa agonia dilacera. No entanto a morte há de morrer se tu quiseres, ó gota concebida bendita entre as mulheres para que houvesse vida outra vez, e nascesse desse fundo obscuro do mundo, o ninho incompreensível do teu ventre. Não, não toques ainda nem a fímbria do manto nem o centro do mistério que anima a tua túnica: aguarda, ó muito séria, a ave mansa e recebe em teu corpo de criança a Verônica única, a enxurrada de pétalas te abrindo. Em tumulto reunidas, as cores da perdida Primavera vão retornar, virão numa enchente de asas, aluvião, púrpura, sempre-viva, nascitura estranheza do amor da criatura, constelação descendo ao rosto teu: é Ele, é O que reúne o coração e o grande anel da esfera, o fogo, a língua ardendo, o incêndio vivo, a coluna de luz, o capitel que se perdeu... Que eu venho anunciar apenas a um esquivo, humílimo veludo, a frágil chama que há de crescer em ti, que hás de ser cama ao parto do Perfeito, e hás de ser cântaro e fonte e ânfora e água, hás de ser lago em que as sombras se afogam, que naufragam no imenso, ó jovem branca como um lenço; hás de conter a lágrima do Infinito, o Seu vulto e os tumultos da luz na travessia entre a dádiva, a perda e a renúncia: quando de um certo dia cheio de luz amarga em que serás enfim a sombra esguia que O deu à luz e que O assistiu morrer... Atravessa, ó Maria, os abismos do ser, ouve este estranho anúncio e deixa-te invadir para colher, mais fundo que a razão e o corpo, o sopro cálido, o prenúncio da mais viva alegria: entreabre-te ao clarão da visita suave, mas terrível, terrível, deixa a ave do imenso sacrifício te ofender. Ó pétala intocada, hás de sofrer intensa madrugada e num lago de luz como afogada hás de durar suspensa entre a graça imortal e a dor imensa. Mas canta, canta agora como a fonte borbulha, como a agulha atravessa o bordado, canta como essa luz pousa ao teu lado e te penetra e tece a nova aurora, a nova Primavera e a tessitura do ramo que obedece e se oferece para o mistério e pela criatura. Canta a alucinação, o toque enfim possível dessa mão que há de colher para perder e ter o infinito que nasce do deserto e a semente que morre se socorre tudo o que no estertor tentava ser. Canta a canção do lírio e do alecrim, essa canção que és e que na treva, na escuridão da carne, andava perto da imensidade que te invade. E assim como o imenso te ampara, ó voz tão clara que consolas e elevas, vem, desperta, matriz da eternidade e d'O sem-fim, ó mãe de Deus, canta e roga por mim. O GAVIÃO Pousava aqui como quem chega pesaroso de alguma lousa, de uma tumba qualquer; já não pousa como certa mulher, a cega que mendigava por aqui quando eu era ainda noviça; as primeiras vezes que o vi lembrei-me dela e da carniça que lhe davam, suas unhas duras e sujas agarrando aquilo! Onde andarás? Se nas alturas, terá modificado o estilo e provavelmente a ração; senão... O gavião é o mesmo, disso estou certa! Mas desde então cresceu muito, já não voa a esmo por aí, hoje arrebata a caça, e quando mata chega de outro jeito, com outro ar: pousa satisfeito, é todo a máscara, a couraça da arrogância! Dá-me raiva vê-lo, prefiro o modelo anterior... Como uma escultura de gelo, esse de agora é ameaçador, frio, irreal, o senhor das caçadas traz o nada no bico e no porte: não vem dos mortos, vem da morte! Tinha antes só duas pegadas, era solene como um cemitério; hoje ele mesmo faz-se um e é o Não que chega aqui com um ar estéril e pousa desprezando o chão. CELEBRAR ESTE MUNDO Celebrar este mundo adivinhando a incurável leveza, a inabalável certeza do esplendor interminável da luz de Deus, aurora ruminando para sempre a quietude do imutável. Somos reflexos dessa luz, um bando de flamingos ardendo, misturando- se ao sol nascente, ao inimaginável incêndio indescritível, todo asas, todo luz... Somos feitos como brasas abrindo o voo, somos como o voo dos flamingos em brasa ao oriente... E nunca há de apagar-se aquele ardente sol perfeito que neles se espelhou. OS OLHOS TROCADOS Solidão, cisne-ganso em voo frio ante as margens extremas: tu conheces o eco do vazio e a sem-razão do tempo, que arrefeces com tua sombra altíssima na alma; ouve bem: no silêncio indiferente, no cume a que baniste a coisa ardente (que em quase pedra calma aos poucos converteste), este parceiro teu, itinerante, guardou a profusão do que lhe deste longe de tudo, e pelo teu diamante trocou os próprios olhos! Que dirias se os pedisse de volta por uns dias? — Para quê? Ensinei-te a ver tudo o que vês... Acabei sendo eu o teu deleite, tua visão, talvez, em todo caso tua ama-de-leite. Daquelas vez, quando inventaste de trocar por um enfeite teus olhos, meu diamante e a lucidez, deixei que te afastasses, mais de ti que de mim, e que viste? Voltaste ainda mais triste. Leva-os, se queres. Estarei aqui quando os vires devolver, não vejo quem mais contentaria o teu desejo...   O PAVÃO Por lá o Outono chega anunciado pelos gritos agudos do pavão dilacerando o ar; é só então que se percebe o dardo vindo da sombra, o arpão da última luz nas folhas de um para o outro lado. O outro lado das sombras que se estiram no chão como mais um bordado de Penélope fria que tece a escuridão. Pobre animal! Começa o baile temporão e ele anuncia aos gritos, seu leque depenado pluma por pluma na penúltima estação... Quando acabar de se fechar a mão que a luz cadente estende ao povoado das sombras que não vão a parte alguma, o último emblema do Verão irá ciscar sozinho, como que envergonhado, nas agulhas caídas do pinheiral gelado. É por isso, por causa da desaparição de um Estio tão breve num bailado tão rápido, é por isso que o pavão trespassa o ar, grito por grito apaixonado, e a reverberação da luz nas folhas se parece tanto a um dardo. E LHE CANTEI ENTÃO ESTE ACALANTO: Dorme, Minotauro, Mouro da mais amarga Veneza, mudo amor na correnteza do balbucio, homem-touro tossindo no labirinto da névoa e da solidão, cala o instinto e o indistinto e dorme, descansa, irmão! Não existes, não existo, nada existe neste mundo aquém ou além do fundo da linguagem. É tudo um misto de silêncio e de ruído no coração de quem sofre preso num malentendido como um inseto num cofre. Perdoa-te... Nada ganhas com dar e redar teus nós na teia da velha aranha retendo e perdendo a voz no pescoço que partiste: a garganta bipartida entre a elegia do triste e o último sopro da vida não te vai dizer mais nada. Tudo o que pôde foi dito. No silêncio, na calada da noite, escuta o infinito para além da grade, tua e dos outros prisioneiros entre a linguagem e a luta. Os últimos e os primeiros tampouco entenderam Aquele que ia morrer e lhes disse que este universo era Dele e o resto tudo crendice. Nem tudo é só desperdício. Tudo e nada nesta vida se confundem, fim e início, chegada como partida trocam-se em pura ruína mas o verme engole a aranha, believe it or not! A sina que escolhestes não se ganha sem um sacrifício imenso, mas que vale mais que a cena em que por causa de um lenço Otelo mata Desdêmona ou o velho rei Lear, louco e só, só pelo e osso, vê e não vê balançar Cordélia pelo pescoço. Se o amor não aprende a língua do ser amado, esse amor é um louco morrendo à míngua do que seja, ou do que for... Deixa-te embalar, amigo, como eu me deixo cantar este acalanto e te digo, te juro que o verbo amar só Deus conjuga contigo.

17 livros que são armas contra a ascensão de regimes políticos tirânicos

[caption id="attachment_98875" align="alignleft" width="278"] Capa do livro "Sobre a Tirania: vinte lições do século XX para o presente" (Companhia das Letras, 2017, 168 páginas)[/caption] No livro Sobre a Tirania: vinte lições do século XX para o presente (Companhia das Letras, 168 páginas, tradução de Donaldson M. Garschagen), recém-publicado no Brasil, o historiador americano Timothy Snyder oferece ao leitor uma lista de dezessete livros que, se lidos com atenção, podem servir como verdadeiras armas contra a irrupção de regimes políticos tirânicos. A lista se encontra na "lição número 9", intitulada "Trate bem a língua", na qual podemos ler, como advertência inicial, o seguinte: "Evite proferir as frases que todo mundo usa. Reflita sobre sua maneira de falar, mesmo que apenas para transmitir aquilo que você acha que todos estão dizendo. Faça um esforço para afastar-se da internet. Leia livros." Pois bem, então, o que ler? É esta a questão que Snyder procura responder. E sua resposta começa pela literatura, indo de um clássico incontestável até um romance infantojuvenil de grande sucesso editorial:

"Qualquer bom romance estimula nossa capacidade de pensar sobre situações ambíguas e de julgar as intenções alheias. Os irmãos Karamázov, de Dostoiévski, e A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera, talvez sejam adequados a nosso momento. O romance Não vai acontecer aqui, de Sinclair Lewis, talvez não seja uma grande obra de arte. Complô contra a América, de Philip Roth, é melhor. Um romance conhecido por milhões de jovens americanos e que oferece um relato de tirania e resistência é Harry Potter e as relíquias da morte, de J. K. Rowling. Se você, seus amigos ou seus filhos não o entenderam assim da primeira vez, vale a pena lê-lo de novo.”
Após a indicação desses cinco romances, Snyder indica onze livros de não ficção, que abordam a política e a história do século XX. E finaliza a lista indicando a leitura das Sagradas Escrituras, da tradição judaico-cristã. Para tanto, argumenta:
“Os cristãos podem retornar ao seu livro fundamental, que sempre é muito oportuno. Jesus ensinou que ‘é mais fácil um camelo passar através do buraco de uma agulha do que um único rico entrar no reino de Deus’. Devemos ser modestos, porque ‘quem se exaltar será humilhado e que se humilhar será exaltado’. E é claro que temos de nos preocupar com o que é verdadeiro e com o que é falso: ‘E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará’.”
Reuni, abaixo, todos os dezessete livros indicados. A maior parte está traduzida e publicada no Brasil. Referencio todas as edições, tanto as disponíveis no mercado editorial nacional quanto aquelas que ainda não estão. É uma ótima oportunidade de leitura, sobretudo para quem está de férias!

Segue a lista:

Os irmãos Karamázov, de Dostoiévski (Editora 34, tradução de Paulo Bezerra).

A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera (Editora Companhia de Bolso, tradução de Tereza Bulhões de Carvalho).

It Can't Happen Here [Não vai acontecer aqui], de Sinclair Lewis (Editora Signet Classics-Penguin Group).

Complô contra a América, de Philip Roth (Editora Companhia das Lestras, tradução de Paulo Henriques Britto).

Harry Potter e as relíquias da morte, de J. K. Rowling (Editora Rocco, tradução de Lia Wyler).

"A política e a língua inglesa”, de George Orwell, presente no volume Como morrem os pobres e outros ensaios (Editora Companhia das Lestras, tradução de Pedro Maia Soares). LTI: A linguagem do Terceiro Reich, de Victor Klemperer (Editora Contraponto, tradução de Miriam Bettina P. Oelsner).

 Origens do totalitarismo, de Hannah Arendt (Editora Companhia de Bolso, tradução de Roberto Raposo).

 O homem revoltado, de Albert Camus (Editora BestBolso, tradução de Valerie Rumjanek). Mente cativa, de Czeslaw Milosz (Editora Novo Século, tradução de Dante Nery).

The Power Of The Powerles [O poder dos sem poder], de Václav Havel (Editora Routledge).

"How to Be a Conservative-Liberal-Socialist" [Como ser um conservador-liberal-socialista],  de Leszek Kolakowski, presente no volume Modernity On Endless Trial (Editora University Of Chicago Press). The Uses of Adversity [Os usos da adversidade], de Timothy Garton Ash (Editora Random House).

O peso da responsabilidade, de Tony Judt (Editora Objetiva, tradução de Otacílio Nunes).

Ordinary Men [Homens comuns], de Christopher Browning (Editora Harper Perennial).

Nothing Is True and Everything Is Possible [Nada é verdadeiro e tudo é possível], de Peter Pomerantsev (Editora Faber & Faber).

Bíblia de Jerusalém (Editora Paulus, vários tradutores).

Sobre o autor:

Timothy Snyder é professor de história em Yale e membro do Instituto de Ciências Humanas em Viena. É autor, entre outros, de Terras de sangue (Record, 2012), livro vencedor de doze prêmios e traduzido para trinta idiomas, Pensando o século XX, em coautoria com Tony Judt (Objetiva, 2014), e Terra Negra (Companhia das Letras, 2016).

Em novo livro, Timothy Snyder alerta para os sinais dos tempos que apontam para a irrupção de regimes tirânicos

Impulsionado pela eleição presidencial de Donald Trump, nos Estados Unidos, o historiador norte-americano elaborou 20 lições que a história, sobretudo o período da ascensão dos regimes totalitários no século XX, pode nos ensinar, no momento presente

Sob um signo sombrio: tradução da balada “Das Nothend”, de Johann Ludwig Uhland

“E um infante o atalha no ato:/ – Pára, homem sanguinolento!/ De nada vale teu pacto:/ É desfeito o encantamento.” Trecho de “A cota de malha” vertido para o português

Abgar Renault e a poética pessimista

O olhar do poeta mineiro, sendo moderno, não faz da tradição literária um acervo ultrapassado, ou um utensílio de manipulação apenas. Reconhece que esse diálogo com o passado é uma via de mão dupla, isto é, um verdadeiro diálogo de troca

Invasão feminina na música sertaneja. Marília Mendonça, Maiara e Maraísa estão na linha de frente

Marília Mendonça, uma das compositoras que mais arrecadam direitos autorais, é talentosa. Maiara e Maraísa mostram que cantar e compor bem não têm a ver com estética

Aleister Crowley, um mago na tradução

O controverso e excêntrico esotérico se tornou mundialmente notório por sua dedicação ao ocultismo, mas suas incursões pelo mundo da tradução são pouco conhecidas

Na era da “pós-verdade”, trama narrada no filme “Todos os Homens do Presidente” nos traz questões indispensáveis

Investigação de dois jornalistas do “Washington Post” sobre o Caso Watergate, que derrubou o então presidente Richard Nixon, foi narrada em um clássico do cinema, e pode ser comparada ao atual momento político vivido nos Estados Unidos

Para o cientista Edward Wilson, a salvação da Terra pode estar no entendimento entre religião e ciência

A proposta do biólogo possui retórica débil, já que se fundamenta em princípios científicos, antagônicos aos dogmas religiosos. É difícil conceber que a elite religiosa queira abrir mão de sua zona de conforto a fim de buscar conciliação em bases evolucionistas e humanistas

Por que o preconceito contra a música sertaneja?

Não se pode ignorar um estilo musical, como o sertanejo, que arrasta multidões e que movimenta bilhões de reais por ano na economia brasileira. Gosto é opcional, respeito é obrigação [caption id="attachment_97794" align="alignleft" width="620"] O sertanejo, gênero musical que move milhões de pessoas, não pode ser deprezado[/caption] Estreamos essa coluna falando de preconceito. Todos já ouviram falar bastante a respeito do preconceito racial, do preconceito de gênero, do preconceito social, do preconceito religioso, etc. Nesta sociedade maluca em que vivemos, o que não falta é preconceito. Uma das definições mais assertivas deste vocábulo é a de “sentimento hostil, assumido em consequência da generalização apressada de uma experiência pessoal ou imposta pelo meio; intolerância”. Mas, como o nosso assunto aqui é música, falemos então sobre o preconceito musical. Não é segredo para ninguém que a música sertaneja foi e ainda é alvo de discriminação. Confesso minha estranheza em relação à tamanha resistência dos chamados formadores de opinião. Ou a tentativa de rotular a música sertaneja como brega. Ou ignorar o “Sertanejo Universitário” que arrasta multidões. Sim, a música sertaneja sofre preconceito. Ao diagnóstico cabem perguntas: por que o preconceito acontece? Quais os critérios? O que motiva alguns a terem repulsa aos músicos que ganham milhões com festas de rodeio e shows que faturam milhões? Lembro-me que na minha adolescência, no final dos anos 90 e início dos anos 2000, ser jovem e gostar de música sertaneja era motivo de chacota no colégio. Isso antes da explosão do chamado “Sertanejo Universitário” em 2006. Aliás, uma das grandes conquistas dessa variação do gênero foi rejuvenescer o público da música sertaneja no Brasil. A música é ruim? Desculpe, é um critério muito subjetivo. O que pode ser bom para um é terrível para outro. Além disso, Nelson Rodrigues já dizia que toda unanimidade é burra. Generalizar também é um erro. Alguém pode contestar: “Ah, mas as letras são pobres”. Isto também é um critério individual. Já que falamos no grande dramaturgo, na literatura, por exemplo, tem gente que considerava Nelson Rodrigues um gênio e outros tachavam de um libertino, um velho que falava dos mesmos assuntos de modo indevido. E se todos levassem apenas uma opinião, uma corrente em consideração? É claro que tem muita coisa sem qualidade no sertanejo. Mas também tem música ruim no pop, no rock, na MPB, no samba, etc. Tem artista bom e ruim em todos os estilos musicais. Tem profissional bom e profissional ruim em todas as carreiras. Não se pode ignorar um estilo musical que arrasta multidões e que movimenta bilhões de reais por ano na economia brasileira. Gosto é opcional, respeito é obrigação!  

O “jeitinho brasileiro”: instituição paralegal, modo de navegação social ou mito narcisista?

Fenômeno, considerado típico do Brasil, pode e deve ser posto em xeque. Mas é necessária uma leitura atenta de intelectuais que já refletiram a respeito

Livro de Bauman recém-lançado no Brasil aborda o tema da exploração da ansiedade e da insegurança

O autor polonês discorre sobre questões candentes da sociedade contemporânea numa linguagem bastante acessível, que dialoga não só com especialistas, mas também com o leitor comum

Contos de ficção científica à brasileira – Parte 3

Terceira e última parte da sequência de contos iniciada em 21 de maio, sob organização de Sérgio Tavares, Anderson Fonseca e Luiz Bras. Nesta edição, os autores clássicos homenageados são Adolfo Bioy Casares e Kim Stanley Robinson

Cinco poemas de Nietzsche traduzidos para o português

O filósofo alemão é conhecido, dentre outras coisas, por seu aprazível estilo de escrita ensaística. Conhecer e estudar a poesia produzida por ele pode nos oferecer mais elementos para a compreensão tanto de sua estilística quanto do seu sistema de pensamento