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Impulsionado pela eleição presidencial de Donald Trump, nos Estados Unidos, o historiador norte-americano elaborou 20 lições que a história, sobretudo o período da ascensão dos regimes totalitários no século XX, pode nos ensinar, no momento presente

Cláudio Ribeiro

“Se nenhum de nós estiver disposto a morrer pela liberdade, todos morreremos sob a tirania.” Esta frase é o argumento da 20ª e última lição do livro “Sobre a Tirania: Vinte Lições do Século XX Para o Presente” (tradução de Donaldson M. Garschagen), recém-lançado no Brasil pela editora Companhia das Letras. Impresso em formato pocket, “Sobre a Tirania” tem pouco mais de 160 páginas, e foi escrito pelo já consagrado historiador americano Timothy Snyder, autor das obras “Terras de Sangue: a Europa entre Hitler e Stalin” (Record, 616 páginas, tradução de Mauro Pinheiro) e “Terra Negra: o Holocausto como História e Advertência” (Companhia das letras, 488 páginas, tradução de Donaldson M. Garschagen e Renata Guerra).

De modo semelhante ao que já fizera nas páginas de “Terra negra”, Snyder procura destacar a importância de se conhecer bem os fatos históricos e deles depreender advertências necessárias para não repetirmos os erros do passado. As reflexões encerradas nas “vinte lições”, todavia, foram desenvolvidas pelo historiador após a vitória de Donald Trump na campanha presidencial dos Estados Unidos, em novembro de 2016. Para Snyder, à figura de Trump soma-se um grande rol de sinais que apontam para o perigo da tirania: a linguagem virulenta, o uso da força bruta dos seguranças do então candidato contra adversários, as relações escusas com Vladmir Putin – para Snyder, o modelo de tirano do século XXI –, o populismo que abusa da boa-fé daqueles que nele votaram, e por aí vai.

A fim de apresentar os propósitos de um livreto sobre a tirania, no prólogo “História e Tirania”, Snyder aborda a tradição republicano-democrática dos Estados Unidos, sentenciando, desde o início, que “A história não se repete, mas ensina.” E o que os norte-americanos têm de aprender é, necessariamente, não dar vazão a figuras políticas personalistas, populistas, que pretendem se sobrepor às instituições, tomando-as de assalto — como ocorreu em muitos países europeus, nos anos de 1920 e 1930. Se fizerem isso, os EUA afastarão de seu campo de visão o exemplo dos Pais Fundadores da América e deixarão que o legado destes degenere em tirania.

As vinte lições

Os Pais Fundadores tinham como referência histórica os modelos políticos greco-latinos e sabiam bem o que deveriam fazer para evitar a irrupção de um regime tirânico. O fortalecimento da sociedade civil, o cuidado com as instituições, o respeito pelas tradições culturais e pela vida privada estavam entre as garantias para o desenvolvimento de um regime político razoavelmente saudável – que fora observado e analisado por Alexis de Tocqueville, no século XIX. Para que um tal modelo seja preservado — e isto, creio, não serve apenas aos EUA —, as lições que o século XX tem a nos dar, e que são elencadas por Snyder, são as seguintes:

1) “Não obedeça de antemão”, 2) “Defenda as instituições”, 3)“Cuidado com o Estado de partido único”, 4)“Assuma sua responsabilidade para com o mundo”, 5) “Lembre-se da ética profissional”, 6) Cuidado com grupos paramilitares”, 7) “Se você tiver que portar armas, reflita”, 8) “Destaque-se”, 9) “Trate bem a língua”, 10) “Acredite na verdade”, 11) “Investigue”, 12) “Faça contato visual e converse sobre generalidades”, 13) “Pratique a política corpo a corpo”, 14) “Preserve a sua vida privada”, 15) “Contribua para boas causas”, 16) “Aprenda com pessoas de outros países”, 17) “Preste atenção a palavras perigosas”, 18) Mantenha a calma quando o impensável chegar”, 19) “Seja patriota”, 20) “Seja o mais corajoso possível”.

Para quase todas as lições, Snyder oferece exemplos de personagens históricas concretas, que viveram na Europa nas décadas em que vigoraram os regimes totalitários. Das 20, frizo aqui duas: “Lembre-se da ética profissional” e “Destaque-se”.

Na primeira, Snyder dá o exemplo do número surpreendentemente elevado de advogados e médicos alemães que integraram, respectivamente, os Einsatzgruppen (esquadrões de execução de judeus, ciganos, comunistas, deficientes físicos e outros) e as equipes que faziam experimentos com cobaias humanas, nos campos de concentração, nos anos 1930 e 1940. Snyder então adverte: “Se os advogados tivessem seguido a norma que proibia execuções sem julgamento, se os médicos tivessem obedecido à regra que proíbe cirurgias sem consentimento, se os executivos tivessem endossado a proibição da escravidão e se os burocratas tivessem se recusado a processar a documentação que envolvia os assassinatos, o regime nazista teria enfrentado muito mais dificuldades para dar cabo das atrocidades pelas quais é lembrado.”

Desse modo, se as convicções pessoais, pautadas em princípios sólidos se esvaem, seu espaço é preenchido por direcionamentos automáticos de conduta, orientados pelo substrato ideológico da tirania. Por isso, diz Snyder: “Quando os líderes políticos dão um exemplo negativo, os compromissos profissionais com uma prática honesta tornaram-se mais importantes. É difícil subverter um Estado baseado no império da lei sem advogados ou realizar julgamentos de fachada sem juízes. Os governantes autoritários precisam de funcionários públicos obedientes, e os comandantes dos campos de concentração procuram empresários interessados em mão de obra barata.”

Quanto à lição “Destaque-se”, Snyder argumenta que: “Alguém precisa tomar frente. É fácil acompanhar a maioria. Pode parecer estranho fazer ou dizer algo diferente. Mas sem essa inquietação não existe liberdade. No momento em que você dá o exemplo, quebra-se o encanto exercido pelo status quo, e outros o imitarão.” O historiador dá, então, o exemplo do primeiro-ministro britânico Winston Churchill que, após a queda da França sob o regime nazista, recusou-se a aceitar uma composição com Hitler no desenrolar do projeto de expansão nazista, e insuflou na Grã-Bretanha o sopro de dignidade e de patriotismo que eram necessários para resistir à tirania que se avizinhava.

Timothy Snyder nos fornece 20 lições da história contra a tirania

História e Anti-História

Para Timothy Snyder, os perigos contra os quais cada lição histórica adverte podem nascer de duas maneiras anti-históricas de se encarar o passado: a “política da inevitabilidade” e a “política da eternidade”. A primeira consiste na ideia de que a “história só pode se mover numa direção”. Exemplo é o “democracia liberal” que sobreveio com o fim da União Soviética, em 1989. Isto é, o “fim da história” estava posto e realizado. Esse é o tipo de perigo teleológico. Snyder adverte que a teleologia, em sendo “uma narrativa do tempo que leva a uma meta segura e em geral desejável”, também foi algo defendido por regimes tirânicos, como o comunismo e o nazismo. Quando o comunismo soviético ruiu, há um quarto de século, diz Snyder: “tiramos a conclusão errada: em vez de rejeitar as teleologias, imaginamos que a própria narrativa fosse a verdadeira.” O risco está justamente em deixar de tomar a história nas filigranas dos fatos, e encará-la como algo linear e inevitável. Nesse sentido, Snyder entende a política de inevitabilidade como “um coma intelectual autoinduzido.”

A segunda forma anti-histórica de se encarar o passado, a “política da eternidade”, ao contrário da primeira, se interessa pelo passado, segundo Snyder, “de uma forma egocêntrica, livre de qualquer compromisso com os fatos. Seu espírito é o de uma nostalgia de momentos gloriosos que jamais aconteceram em épocas que, na verdade, foram desastrosas. Os políticos da eternidade nos oferecem o passado como um vasto pátio enevoado de incompreensíveis monumentos à vitimização nacional, todos realmente suscetíveis à manipulação. Todas as referências ao passado envolvem um ataque de algum inimigo externo à pureza da nação.”

Se uma é o “coma”, a outra é uma “hipnose”: “fitamos o vórtex giratório do mito cíclico até entrarmos em transe — e aí fazemos alguma coisa chocante, obedecendo às ordens de alguém”. A grande resistência a essas duas formas de encarar o passado, segundo o historiador, de fato, a história, propriamente dita. A história entendida como conjunto de exemplos do passado: “A história nos permite ver padrões e fazer julgamentos. Ela esboça para nós as estruturas dentro das quais podemos procurar a liberdade. Revela momentos, cada um deles diferente, nenhum inteiramente singular. Compreender um momento é ver a possibilidade de participar da criação de outro momento. A história nos permite sermos responsáveis: não por tudo, mas por alguma coisa.”

Timothy Snyder, desse modo, está mais próximo do romano Cícero, e da sentença historia magistra vitae (A história é a mestra da vida), do que de Karl Marx ou de qualquer outro pretensioso teórico (ou, melhor, teleólogo) da história que queira ou construir a “Sociedade sem classes”, ou o “Império de 1000 anos”,  ou ainda “Salvar a Civilização Ocidental”.