Opção cultural

Doutor em Geografia pela Universidade Federal Fluminense, Tadeu Alencar Arrais fala sobre o polêmico projeto de desafetação de áreas públicas em Goiânia e sobre o seu novo livro, “Morar na Metrópole, Viver na Praia ou no Campo”
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Ademir Luiz e Adriana Ap. Silva Especial para o Jornal Opção
Um dos maiores clássicos da literatura geográfica é o livro “A Geografia: Isso Serve, em Primeiro Lugar, Para Fazer a Guerra”, do francês Yves Lacoste. Em Goiás, um dos geógrafos mais aguerridos é Tadeu Alencar Arrais, Professor Associado do IESA-UFG e Coordenador da Rede Goiana de Pesquisa em Desenvolvimento Regional e Análise da Informação Geográfica. Com graduação e mestrado em Geografia pela UFG e doutorado em Geografia pela UFF (RJ), Tadeu Arrais é conhecido pela personalidade forte e, principalmente, pela seriedade e rigidez com que desenvolve suas pesquisas. Intelectual ativo e antenado, sendo bolsista nível 2 do CNPq, está lançando pela editora da UFG o livro virtual “Morar na Metrópole, Viver na Praia ou no Campo”. Nessa entrevista Tadeu Arrais fala de sua participação na polêmica sobre o projeto de desafetação de áreas públicas em Goiânia (PL-50), a distância entre a universidade e o poder público, o mercado imobiliário, educação geográfica, o fenômeno da difusão dos condomínios fechados e conta os motivos que o levaram a desistir da literatura. O livro que Tadeu Arrais está lançando encontra-se disponível gratuitamente no link: (http://bit.ly/1ogJQvb).
Ademir Luiz — O projeto de desafetação de áreas públicas de Goiânia (PL 50) foi aprovado na câmara de vereadores em votação realizada do dia 13 de maio de 2014. O senhor foi o principal crítico e opositor dessa proposta, encabeçando inclusive um abaixo-assinado contra ela. Agora que a desafetação é uma realidade, embora alguns vereadores de oposição estejam levando o caso à justiça comum, quais seriam as consequências imediatas para a cidade?
Temos que pensar o impacto em duas escalas. O mais imediato é para a escala dos bairros que perderam a possibilidade de construção de equipamentos públicos de lazer, bem como de receber infraestrutura de serviços públicos, como escolas e postos de saúde. Além disso, a verticalização, em todos os bairros, provocará prejuízos irreparáveis ao trânsito e, especialmente, ao meio ambiente. O segundo impacto é na escala da cidade, de forma geral, uma vez que esse tipo de procedimento abre precedentes para novas desafetações em grande escala. Veja. Estamos tratando de mais de 200 mil metros quadrados. Na verdade, o governo municipal quer financiar a política urbana com a venda de ativos públicos. Imagine uma dona de casa que, a cada crise financeira, resolva vender um cômodo de sua residência para complementar o custeio mensal. O que sobrará para o futuro? É muito sério. Dezenas de bairros de Goiânia não têm sequer uma área pública e a população, basta observar o perfil demográfico, necessitará cada vez mais dessas áreas. Veja um exemplo sintomático da falta de compromisso com o futuro: existe uma área no setor Bueno de 4.795,06 m2 que será doada. A SMT (Secretaria Municipal de Trânsito) necessita de uma sede. Pergunta: será que ninguém percebe que aquela área no Setor Bueno, de excelente localização e acessibilidade, é um espaço ideal para sede da SMT, assim como para a Guarda Civil? Não. É melhor gastar com aluguel do que melhorar as condições de trabalho da Guarda Civil e dos agentes de trânsito.
Ademir Luiz — Alguns dos partidários da desafetação afirmam que os argumentos dos opositores são mais emocionais do que técnicos. Como o senhor se posiciona frente a essa acusação?
Concordo em parte. É claro que também são emocionais. Quem não se emociona ao ver um campo de várzea, única opção de lazer da garotada, ser destruído? Quem não se emociona ao ver uma praça construída por um idoso com recursos de sua aposentadoria ser vendida? Também compreendo que alguns vereadores não entendam os argumentos técnicos e isso tem uma explicação simples: não conhecem o Plano Diretor. Não se importam em ler, em estudar as leis que regulam o uso e a ocupação do solo. Leis aprovadas naquela casa. É mais fácil fazer discurso e ceder às cotidianas chantagens do Paço Municipal do que olhar para o futuro e preservar os espaços públicos. O argumento comum foi que precisamos desse recurso para fazer obras nos bairros. Alguns até disseram que a UFG é elitista, que não compreende as demandas da população. Pura chalaça. Um pequeno exemplo. O PL-50 não autoriza apenas a venda, permuta ou doação de áreas, mas também transforma, automaticamente, essas áreas em PDU-I (Projetos Urbanos Diferenciados), o que resulta, em síntese, na autorização para verticalização total dessas áreas. Sem essa transformação, uma afronta ao Plano Diretor, essas áreas não teriam interesse algum para o mercado imobiliário. Bingo. Então quem atende aos interesses da elite? A UFG ou o governo municipal que apoiou integralmente o PL-50? Em nosso relatório apontamos que apoiaríamos a destinação dessas áreas para moradia popular, mas nem isso sensibilizou os vereadores da base, mesmo porque a população pobre, jamais, poderá residir nas regiões nobres da cidade, não é mesmo? Quem poderá adquirir aquela área de 60.632,62 m2, no Portal do Sol? Assim responderam os representantes do governo municipal que estiveram presentes na audiência pública: “Qualquer um!”. Não sei em que cidade eles vivem.
Adriana Ap. Silva — Durante o desenrolar da votação do projeto de desafetação das áreas públicas em Goiânia, ficou evidente o distanciamento de opiniões entre a academia e o pensamento da maior parte dos representantes públicos desta cidade. Como promover o diálogo entre a administração pública e a academia?
Sou cético em relação ao diálogo. Vamos lembrar. O prefeito é egresso da UFG e não é a primeira vez que o IESA se manifesta contra a sua política urbana. Ele até fez visita ao novo reitor. Apenas um protocolo. Um dos vereadores do PT que defendeu o PL-50 foi aluno do IESA. Então não posso dizer que existe alguma ponte entre o governo municipal e o IESA. E por que isso acontece? A chantagem é o macro componente da atual política do governo municipal e o maniqueísmo é a forma discursiva que procura, por exemplo, classificar aqueles que hoje são contra venda de áreas públicas (esse é só um exemplo) como intelectuais conservadores e patrimonialistas. Não podemos ser ingênuos. A arena da pesquisa, da técnica, é distinta da arena da intervenção política.
Ademir Luiz — Qual foi o papel desempenhado pelo Ministério Público na questão da desafetação, considerando que o projeto partiu da assinatura de um termo de ajuste de conduta entre o MP, na pessoa no promotor de justiça Maurício José Nardini, e a prefeitura de Goiânia?
O Ministério Público tem um parecer técnico, muito bem elaborado, que condena a natureza do primeiro projeto de desafetação. Quando digo natureza, refiro-me a concepção de financiamento da política urbana. Agora, diante desse debate, confesso que causa estranheza o silêncio do Ministério Público que tem, historicamente, lutado com afinco pelos interesses da comunidade. É bom citar a parte final do relatório do Ministério Público que foi contundente em relação ao projeto de desafetação: “Configura-se, sem sombras de dúvidas, que o sr. prefeito agiu com dolo, com vontade e consciência, posto que propôs Projeto de Lei que vai de encontro com todo o Regime Democrático de Direito, chocando-se com as normas constitucionais, os direitos e garantias fundamentais da participação, da publicidade. Ao propor um projeto que desobedeceu frontalmente as normas legislativas insculpidas na Lei 10.257/01, agiu livremente, sem qualquer tipo de vício em sua vontade ou mesmo sem previsibilidade: o sr. Paulo Garcia elaborou o projeto com o propósito, único e exclusivo, de dilapidação do patrimônio público, de retirar do domínio do Município 33 (trinta e três) áreas públicas, que, em razão de manobras evasivas, antidemocráticas e de moralidade questionável por parte da Câmara Municipal, resultaram na verdade na perda de 70 (setenta) áreas públicas”. As diferenças entre o PL-224 e o PL-50 são apenas formais, não mudando, em minha opinião, o conteúdo da ação e os prejuízos para a coletividade.
Ademir Luiz — Após a aprovação do PL-50, o senhor liderou uma campanha na qual se pretendia construir alguns equipamentos públicos nos terrenos previstos para venda. Pareceu-me mais uma forma de marcar posição do que necessariamente a invasão desses terrenos, até pela proporção das ações tomadas, mas mesmo assim o movimento foi reprimido pelo poder público. Como foi isso?
Essa ideia surgiu, na realidade, sem pretensões, em um grupo da comunidade, liderado por uma moradora chamada Ludmila. Em cinco dias, em parceria com uma arquiteta chamada Maria Ester, fizemos o projeto urbanístico, coletamos doações, mão-de-obra, equipamentos, máquinas e mobilizamos a comunidade. A logística foi perfeita. Veja que estamos tratando de uma área de 10.000 m2, com cobertura de pastagem, de difícil manejo. Então o que a comunidade fez nesse curto período? Uma pista de caminhada no perímetro da área, de aproximadamente 1.100 metros. Um playground para as crianças, com alguns bancos e brinquedos doados. Um campo de futebol para as crianças da região. A limpeza total do terreno e o plantio de aproximadamente 150 mudas, com orientação de agrônomos da UFG. Para nossa surpresa, por volta das 10 horas da manhã, chegou o secretário de fiscalização do município. Segundo declarou para um jornal local, a comunidade já estava sendo “monitorada”. Achei isso engraçado. Nunca pensei que fosse um subversivo. Como esse governo gasta energia com coisas pequenas. O secretário implicou com um memorial de 1m X 0,80 cm e chamou a polícia militar para tentar intermediar a conversa e derrubar aquela “obra” que feria o Código de Posturas. Ora, o nosso Código de Posturas é rasgado pelo governo municipal todos os dias da semana. Quando percebeu que não recebeu o apoio devido da polícia militar, que não reprimiu de forma alguma o movimento, o secretário chamou os fiscais que passaram a notificar a comunidade. Uma forma pouco inteligente de intimidação. Nada disso era necessário. Repito. O prefeito Paulo Garcia deveria ter orgulho dessa comunidade que demonstrou compromisso com o espaço público. A resposta do governo, para todos os jornais, é que o assunto do PL-50 foi amplamente discutido nas comunidades. Se alguém da prefeitura disse isso, é mentira. Já passei da idade de eufemismos. É mentira. As duas audiências públicas não ocorreram com a presença das comunidades e mesmo assim todos foram contra o PL-50. Então, além de não ter nada de sustentável, essa gestão perde, a cada dia, seu verniz democrático. A comunidade espera que o prefeito reverta a situação e não recorra da decisão judicial que impede a venda. Não sou otimista, mas se isso ocorrer pode ser o início de um novo relacionamento da prefeitura com aquela comunidade. De qualquer forma foi uma excelente experiência.
Adriana Ap. Silva — No Blog “Necrópole”, o senhor reúne textos que tratam do que entende como a “Derrota política de Goiânia”. O que o motivou na criação deste blog? O senhor considera um espaço de informação, denúncia ou desabafo?
Um colega disse que o site “Necrópole Goiânia” era uma provocação. Discordo. Provocação é observar calçadas entupidas de carros, ruas sem sinalização, praças depredadas, lixo na rua, som automotivo que não permite o sono diário, enfim, um repertório interminável de experiências negativas que ferem o Código de Posturas Municipal. Então, “Necrópole” é uma modesta resposta a esse tipo de provocação diária. Sei que esse governo não é o único culpado pela situação deplorável, do ponto de vista do espaço público, de nossa cidade. Enfim, “Necrópole” é hipérbole pura. Uma forma de homenagear o grande historiador Lewis Mumford.
Ademir Luiz — O senhor está lançando pela editora da UFG o livro virtual “Morar na Metrópole, Viver na Praia ou no Campo”, resultado de seu pós-doutorado. O título é significativo e sutil, tendo sido construído de maneira a defender que é possível morar na metrópole, mas só se vive realmente na praia ou no campo. O senhor propõe um estudo comparativo entre as regiões metropolitanas de Fortaleza e Goiânia. Quais foram os resultados principais da pesquisa?
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O livro tem como foco de estudo o que chamamos de segunda residência. O estudo dessa temática, tradicionalmente, foi mais destacado para as áreas litorâneas, processo adjetivado de veraneio. Para se ter uma ideia, no Brasil, segundo dados do IBGE, em 2010, existiam 3.932.990 domicílios de uso ocasional. Só nas regiões metropolitanas existiam, em 2010, 1.402.388 domicílios de uso ocasional. Esses domicílios, geralmente, estão localizados em áreas próximas às grandes metrópoles, já que esses espaços, por assim dizer, exercem o controle fundiário de áreas com amenidades ambientais: espaços litorâneos, áreas serranas, balneários. Então o problema que se coloca é o seguinte: em um país com déficit habitacional, qual o impacto da expansão do mercado de segunda residência para o conjunto da sociedade? Partimos do princípio que, além do controle fundiário exercido por atores localizados nas metrópoles, esse padrão de expansão causa problemas para os municípios periféricos, especialmente na regulação do solo urbano. Nossas pesquisas apontam que na Região Metropolitana de Goiânia, no formato de condomínios de chácaras, foram convertidos mais de 25 milhões de metros quadrados de áreas. E por que esses condomínios estão localizados nos municípios periféricos? São três motivos, em especial. O grande estoque de áreas rurais, a pouca regulação do uso do solo por parte dos municípios periféricos e a proximidade dos eixos rodoviários que garantem acesso aos condomínios. Assim, as áreas rurais estão sendo convertidas, algumas irregularmente, em condomínios que não cobram IPTU, ITU e, consequentemente, poucos contribuem com as receitas tributárias municipais.
Ademir Luiz — O livro apresenta uma apurada reflexão sobre o mercado imobiliário. Em determinado momento, o senhor estabelece que o “Estado é o principal ator na análise”, explicitando as relações entre a administração dos espaços urbanos e os “atores ligados ao mercado imobiliário”, demonstrando o quanto estão amalgamados. Como essa perspectiva pode ser compreendida no cenário goiano?
Acho que esse cenário é uma característica, em menor ou maior grau, da maior parte das cidades nos vários continentes. Veja, por exemplo, o livro Mike Davis, “Cidade de Quartzo”, sobre Los Angeles. O Estado, de forma geral, é o responsável pela regulação do uso do solo urbano. Entretanto, nessa arena política, os atores do mercado imobiliário determinam as decisões sobre o ordenamento do solo urbano, a exemplo da política de zoneamento. Em Goiânia assistimos isso com as sucessivas mudanças no Plano Diretor. Lutar contra essa tendência exige, dos demais grupos de atores sociais, muita organização.
Ademir Luiz — Em seu novo livro o senhor retoma a questão dos condomínios fechados que “estão incrustrados em espaços distantes dos núcleos urbanos, dispersos em áreas rurais e/ou de expansão urbana, protegidos por muros e/ou alambrados”. Em um trabalho anterior, o artigo “Goiânia: as imagens da cidade e a produção do urbano”, o senhor chama atenção para o contrassenso representado pela expansão dos condomínios fechados, que vendem ao mesmo tempo o isolamento e um retorno ao espírito campestre, justamente em uma cidade que se pretende ecologicamente correta, a cidade do verde e das flores. Como explicar esse fenômeno? É um tipo de “espetacularização do lugar”, considerando que usou um trecho de Guy Debord como epígrafe do novo livro?
Debord é um especialista em sínteses. O espaço tornou-se, mais do que nunca, uma mercadoria vendida aos pedaços. Há uma intencionalidade específica em relação às chamadas casas de campo, especialmente nos condomínios fechados. Vendem um “campo” que não existe, um “ambiente” fabricado pelo marketing imobiliário. Visite alguns desses condomínios e verá o seguinte: práticas urbanas, como som automotivo e manejo irregular de resíduos que nem de longe lembram um ambiente sustentável. A política de segurança, associado ao lazer, é outra propaganda. Cada uma dessas “amenidades” também gera despesas de custeio, o que, não raro, torna os condomínios desses “condomínios” mais onerosos que os condomínios localizados na capital. Mas o fundamental é que a maior parte desses condomínios colabora muito pouco ou não colabora para a economia desses municípios.
Ademir Luiz — Para além de sua produção acadêmica, o senhor escreve livros didáticos e paradidáticos, trabalhando, sobretudo, a Geografia de Goiás e do Distrito Federal. Qual o enfoque de seu trabalho nesse campo? Como instigar os jovens ao estudo da Geografia?
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O livro didático e o livro informativo (prefiro esse termo ao paradidático) exigem um tipo específico de atenção em relação aos conteúdos e, especialmente, a estrutura narrativa. Não é fácil fazer um bom livro didático e, digo logo, quem deve dizer se esse livro é bom ou não, certamente, é o professor e o aluno. Existem vários limites para produzir um livro didático. Para o PNLD, por exemplo, não tem como fugir dos padrões determinados nos editais, o que interfere, de algum modo, nos conteúdos. Atualmente, prefiro trabalhar com as editoras regionais, a exemplo da Cânone, que oferece mais liberdade ao autor. Mas o livro, quando consideramos a relação ensino-aprendizagem, é apenas um dos elementos no processo formativo e digo, em minha opinião, não é o mais importante. O mais importante é um professor bem formado e motivado. Não podemos reduzir o ensino de Geografia aos conteúdos do livro didático. O mundo, o cotidiano do aluno, é mais complexo e interessante que qualquer manual. Penso que o desafio não é, apenas, ensinar Geografia, mas, sobretudo, ensinar ciência de uma maneira geral. É incrível como a ciência está em toda parte. A ciência, desde a modernidade, foi concebida pelo signo da interrogação, da verificação, da experimentação, da curiosidade. E como representamos, de maneira geral, a ciência na escola? De uma forma bastante burocrática, com respostas prontas.
Ademir Luiz — Para terminar, em 1999 o senhor publicou dois contos no livro “O Professor Escreve sua História”, organizado pela professora Vera Maria Tietzmann. Um dos contos, “Ensinar geografia”, foi muito elogiado, enquanto o outro “A pimenta”, foi mote de uma polêmica com o jornalista José Maria e Silva. Ou seja, foram trabalhos discutidos, que chamaram a atenção. Posteriormente, em 2003, publicou o livro “Viagens do Brasil — Relatos da Gente”, que saiu pela editora Mercuryo Jovem. Embora a Geografia sempre tenha estado presente, foram, sem dúvida, experiências de narrador, de ficcionista. Pretende voltar a escrever ficção?
Engraçado lembrar-se disso. Um colega na universidade, muito tempo depois, mostrou a crítica do jornalista. Achei engraçada. Sugerir uma associação entre a “transgressão”, ficcional, narrada no texto e outras “transgressões maiores”, como o incêndio do índio pataxó, foi um exagero. Naquele momento notei que não tinha nenhum talento literário e que era melhor direcionar minhas energias ao estudo da Geografia.

André Gomes
Especial para o Jornal Opção
[caption id="attachment_9631" align="aligncenter" width="544"] Shawn van Daele[/caption]
Você que de quando em vez chora à noitinha, na solidão da alcova. Você que se arrebenta no cumprimento das obrigações. Que perde um tempo danado desviando das porradas de todo dia.
Você que tem medo do arrependimento um minuto depois de tomar uma decisão. Você que esconde seu pavor de morrer só, de não ter onde cair morto, de lhe faltar um gato para puxar pelo rabo.
Você que ainda tem avós mas que pouco os vê. Que tem saudade da infância, que sente culpa por não telefonar mais seguido a seus pais. Você que já não tem pais e nem avós e quase só usa o telefone para pedir comida e responder que não, não quer assinar jornal nenhum.
Você que tem uma inveja inofensiva das pessoas que demonstram afeto. Você que queria ter mais irmãos, você que tem irmãos distantes, você que não tem irmão nenhum.
Você que ainda corta a carne no prato do filho ou da filha. Que tem criança pequena e conhece o medo doloroso de lhe faltar.
Você que se deu conta de que nunca será um astronauta, um campeão olímpico, um astro do rock. Que acha superficial e cínico quem defende que não se deve dar esmolas, quando a quem pede esmolas nada se faz para ajudá-lo a seguir outro caminho.
Você que olhou nos olhos de um mendigo e sentiu um calafrio em algum lugar insuspeitado da alma.
Você que sentiu culpa por estar ocupado demais para ouvir um amigo quando ele mais honestamente precisou falar.
Você que já passou horas deitado no sofá de barriga para baixo, cutucando com a unha a sujeira leve que pousa e se instala impertinente nas ranhuras do chão. Você que enxerga rostos nos desenhos dos ladrilhos. Que observou a poeira flutuando contra a luz do sol e lembrou de um amor antigo. Você que não sabe lidar com um amor novo.
Você que, no mais das vezes, das conversas do dia a dia não ouve nada senão relinchos, cacarejos e conversas para boi dormir entupidas de preconceito e burrice.
Você que já se perguntou onde repousam as borboletas, enquanto imaginava sua vida secreta, e esse foi seu único instante de paz no dia confuso. Você que descobriu espantado que as baratas, quando esmagadas pelo chinelo da gente, liberam ovos que se transformarão em novas baratas que sobreviverão à hecatombe nuclear.
Você que já pediu a Deus um tempo para viajar a um lugar distante e ver o sol nascer de outro canto, na tentativa honesta de lavar com sabão e esponja a sua alma cheia de borras e sentimentos esverdeados, envelhecidos. Depois estendê-la no varal de um dia inteiro e deixá-la ali secando ao sol.
Você que já teve a impressão de que, se não fizer alguma coisa, a vida periga se transformar em um eterno domingo à noite. Você…
Seja bem-vindo. Bem-vinda. Dá cá um abraço. Viver dói e se dói é porque você vive. Resista, deixe estar.
E acredite: para cada angústia há uma desforra gloriosa, esperando sua vez de vir ao mundo.
André Gomes é escritor e publicitário.
via Revista Bula

A pesquisadora Lúcia Garcia escolheu a coleção de cardápios do poeta Olavo Bilac como seu objeto de estudo em busca de reflexos da vida cotidiana que se espraiava pelos lugares frequentados pela elite carioca às vésperas do fim do Segundo Reinado e nos anos iniciais da República
Adelto Gonçalves Especial para o Jornal Opção
Atribui-se a Lucien Febvre (1878-1956), fundador da Escola dos Annales, a ideia segundo a qual a História poderia ser contada a partir da escolha de novos objetos de estudos, o que constituiu uma revolução na historiografia, tal foi o número de trabalhos que se seguiram a partir da década de 1950 com recortes específicos. Deixou-se de lado a concepção tradicional que marcaram os livros de História até então, baseados nos feitos dos grandes nomes — reis, presidentes, primeiros-ministros, governadores. Hoje, um livro que siga esse modelo é visto como quinquilharia de museu, a tal ponto que um autor chegou a ser acusado pejorativamente na universidade de candidato a membro de algum instituto histórico.
É claro que a História vista em mínimos detalhes é sempre mais interessante do que aquela que se baseia nos feitos dos “grandes”. O problema é encontrar nos arquivos resquícios do que pensaram ou disseram aqueles que eram iletrados e, portanto, não deixaram registros de suas vivências, queixas, emoções ou anseios. Quer se queira ou não, a História sempre será escrita a partir da visão dos letrados, daqueles que deixaram registro do que viram e viveram, refletindo obrigatoriamente a visão de mundo da classe dominante.
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Mas a que vêm estas reflexões? Vêm a propósito do livro “Para uma História da Belle Époque: A Coleção de Cardápios de Olavo Bilac”, de Lúcia Garcia, com prefácio do poeta e ensaísta Alberto da Costa e Silva, ex-presidente da Academia Brasileira de Letras e ex-embaixador do Brasil em Portugal, Nigéria, Benim, Colômbia e Paraguai.
A partir da ideia de Febvre, Lúcia Garcia escolheu a coleção de cardápios do poeta Olavo Bilac (1865-1918), que faz parte do acervo da Academia Brasileira de Letras, como seu objeto de estudo em busca de reflexos da vida cotidiana que se espraiava pelos lugares frequentados pela elite carioca às vésperas do fim do Segundo Reinado e nos anos iniciais da República. Aliás, como observa Lúcia Garcia, Bilac, certamente, colecionava menus dos almoços, jantares e banquetes festivos de que participava no Brasil e no mundo.
É de assinalar que, como explica a autora, a palavra cardápio é um neologismo criado pelo filólogo Antônio de Castro Lopes (1827-1901) na década de 1890 para substituir a palavra francesa menu que, a rigor, significa miúdo e não tem em português equivalente, pelo menos no sentido de almoço, jantar ou ceia.
Diz a pesquisadora ainda que Bilac “preservava os cardápios para revisitar os momentos vividos, em benefício da memória, como antídoto ao esquecimento”. Entre os cardápios reproduzidos estão alguns de banquetes em homenagem ao próprio poeta, homem célebre ao seu tempo, e outros que celebravam o IV Centenário do Descobrimento do Brasil, a visita ao Rio de Janeiro da famosa atriz italiana Tina Di Lorenzo (1872-1930) e acontecimentos diversos.
Nos menus, acrescenta a pesquisadora, estão presentes as confeitarias Pascoal e Colombo, entre outros estabelecimentos comerciais conhecidos e frequentados pela classe dominante no Rio de Janeiro no início do século 20. Como diz Lúcia Garcia, a extensa coleção doada à ABL por Bilac, ou por seus familiares, revela a rede de sociabilidade do escritor, quer pela indicação do anfitrião, quer pela assinatura dos comensais. A essa época, é de ressaltar que havia uma “febre” entre as pessoas bem-postas na vida de colecionar autógrafos e cartões postais.
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Como diz Alberto da Costa e Silva no prefácio, esta coleção revela como novos padrões se iam popularizando no País e, como pela lista de pratos, afrancesavam-se cada vez mais as elites. A partir daí, Costa e Silva imagina o que se conversava à época os vizinhos de mesa, já que ecos dessas tertúlias não ficaram, a não ser esparsamente em crônicas, como as que Machado de Assis (1839-1908) e mesmo Bilac assinavam nos grandes jornais.
Diz: “É provável que, num almoço, se discutisse a abertura da Avenida Central pelo prefeito Pereira Passos ou a campanha sanitária de Oswaldo Cruz”. E acrescenta mais adiante: “Pois ainda havia quem não tivesse saído do assombro ou se acostumado, de alma rendida, à aspirina, à lâmpada elétrica, ao telégrafo, ao cabo submarino, do rádio, ao telefone, ao navio a vapor com hélice e casco de ferro, ao motor de combustão interna, ao automóvel com pneu de câmara de ar, às máquinas voadoras, aos raios-X, ao cinematógrafo e à partilha da África e de parte da Ásia entre as potências europeias”.
Da coleção constam ainda fotografias de um almoço — do qual não restou o cardápio — na década de 1910 na fazenda em Louveira, no interior do Estado de São Paulo, de Júlio Mesquita (1862-1927), fundador e proprietário do jornal “O Estado de S. Paulo”, do qual Bilac também era colaborador. De notar, como assinala a pesquisadora, é que Bilac nas fotografias sempre fazia questão de aparecer de perfil. É essa também uma rara foto em que aparece alguém das classes menos favorecidas, o cozinheiro da fazenda de Mesquita, sentado meio a contragosto e sem jeito no primeiro degrau de uma escada à frente dos demais.
Lúcia Garcia (1979) é doutora e mestre em História Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Participou de vários projetos de pesquisa histórica documental e iconográfica nos últimos anos, tendo colaborado como consultora na “Comissão para as comemorações do bicentenário da chegada de D. João ao Rio de Janeiro” (Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro). É autora de “Euclides Da Cunha: Escritor por Acidente e Repórter do Sertão” (São Paulo, Companhia das Letras), “A Transferência da Família Real para o Brasil 1808 2008”, com outros autores (Lisboa: Tribuna da História), “Rio e Lisboa: Construções de um Império” (Lisboa: Câmara Municipal) e “Documentos Oitocentistas da Biblioteca Nacional”, coautoria de Lilia Schwarcz (Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional). É coautora de “Impresso no Brasil: Destaques da História Gráfica”, organizado por Rafael Cardoso (Rio de Janeiro: Verso Brasil).
Adelto Gonçalves, mestre em Língua Espanhola e Literatura Espanhola e Hispanoamericana e doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo.

Paulo Lima
Definitivamente, para o Feitosa aquela não foi uma das melhores manhãs. O chefe havia brigado com a amante, o faturamento não saiu do lugar e ele chegara novamente atrasado ― a terceira vez na mesma semana. Um recorde invejável para uma quarta-feira. Seu único consolo: naquele dia trabalharia apenas no período matutino. Conseguira uma dispensa programada para ir ao médico à tarde ― um hábito carioca na capital paulista. “Que ninguém desconfie da treta”, pensou.
Alguém abre a porta de sua sala e avisa que a direção marcou uma reunião para as 13h00. “Ninguém poderia faltar”, insistiu o mensageiro. A ênfase era proposital, pois era sabido que o Feitosa programava nem retornar após o almoço. Justo naquela tarde a qual, depois de muitos “amanhã, quem sabe”, se rendera aos apelos da esposa para assistir a um filme no cinema, coisa que ele simplesmente odiava. Tinha que ser à tarde, pois de noite as crianças não deixavam e nos fins de semana os avós acampavam em sua casa. Na sua simplicidade, não conseguia entender por que, tendo em casa um videocassete, tinha de enfrentar o trânsito louco da velha Sampa para ver “O Silêncio dos Inocentes”, sucesso absoluto nos anos 1990. E agora, aquele maldita reunião.
[caption id="attachment_9638" align="alignleft" width="300"] Foto: M. File[/caption]
Sabia que o chefe perdoaria a amante, mas nunca um funcionário ― especialmente ele ― que faltasse a um compromisso importante. Ligou para a esposa, avisou que iria direto do trabalho, levou uma bronca da patroa indignada com o fato de se aprontar toda para se encontrar com homem sujo e, ainda por cima, ficou sabendo que o sogro e sua digníssima também iriam. Não temia pelo sogro, um psiquiatra aposentado cuja única neurose era uma inexplicável obsessão por pontualidade. Temia, sim, pela jararaca, que insistia em dizer à filha que seu marido era um pervertido, atiçando um ciúme que por si só já ameaçava as sombras. Mas não estava em condições de exigir o que quer que fosse e confirmou para as 16h30. “Três horas me darão uma boa margem de manobra”, concluiu.
Não, não era o seu dia. A reunião terminou as 16h00 e o cinema ficava a pelo menos 40 minutos do escritório, em condições normais de trânsito. Como havia garoado, a Marginal Tietê já era o centro das atenções. Saiu apressado, xingando intimamente o patrão pelas indiretas que insistentemente lhe dirigiu durante todo o tempo, esbarrou na secretária que manchou de batom vermelho o ombro de sua camisa branca e alcançou o carro já pensando numa boa explicação para a mais ciumenta das primeiras-damas. Olhou para o relógio, respirou fundo e arrancou, decidido. Não chegaria atrasado mais uma vez.
No caminho, perdeu a conta dos sinais vermelhos que atravessou. E, com certeza, um dia pediria mil perdões ao dono do Del Rey (ou teria sido um Monza?) que amassou a lateral do seu Uno Mille, por culpa de sua justificada pressa.
Estacionou na porta do cinema às 16h40. O sogrão apenas olhou para o relógio. A mulher e a sogra não tiravam o olhar de sobre o vermelho comprometedor que lhe decorava a camisa. Cumprimentou a todos sem graça, comprou os bilhetes e passou por último pela roleta, explicando ao velho que acabara de assaltar um banco, coisa que normalmente demora mais do que o previsto. Ninguém sorriu com a piada. As mulheres continuavam sérias, como que prometendo exigir uma explicação no momento oportuno.
Sem dúvida, todo homem tem seu dia de cão e aquele fora dedicado ao Feitosa. Na mesma tarde, ao mesmo tempo em que corria para chegar na hora marcada, um casal corria por ruas próximas após assaltar um banco, tendo causado a morte de uma velhinha que estava no local e sofria do coração. Dirigiam um Uno Mille prateado, que também se chocou com vários carros, tendo sua placa anotada às pressas por um guarda de trânsito, com as possíveis inscrições: PQ-1381. A do Feitosa era PQ-1831.
Fim do filme, efusivamente elogiado pelo sogro, as senhoras não pareciam tão animadas. Ao sair do cinema, o inusitado: os quatro foram abordados por três policiais que apontavam suas armas para o matador de serviço. Além disso, uma equipe da Rede Globo apontava suas câmaras para o grupo, um batalhão de fotógrafos e repórteres de rua se digladiava por um espaço melhor, curiosos se acotovelavam e uma multidão contida por um cordão de isolamento improvisado pedia por linchamento. Um homem alto e magro, relativamente bem trajado, lhe mostra uma insígnia parecida com aquelas dos filmes americanos.
― O senhor é o proprietário deste veículo? ― falou, apontando para o Mille prateado, estacionado em local proibido.
― S-sim... Sou sim.
O velho e bom Feitosa, gaguejando, já procurava se lembrar de algum amigo do Detran para se livrar da multa.
― O senhor foi visto dirigindo perigosamente este veículo com uma mulher loira ao seu lado, após assaltarem uma agência do Banco Itaú, deixando uma senhora morta no local. Sua placa foi anotada por aquele guarda ali e a lateral amassada confirma que o senhor bateu num Monza azul. Se o senhor tem algo a declarar, sugiro que nos acompanhe até a delegacia, antes que não consigamos deter a multidão.
Não se sabe ao certo quanto tempo aquele homem que começou mal o seu dia ficou ali paralisado, sem conseguir pronunciar uma única palavra. Era o silêncio de um inocente, que sabia que qualquer coisa que dissesse poderia piorar o impiorável. Afinal, à sua volta, além de centenas de populares enfurecidos, estavam um oficial de justiça, a imprensa transmitindo o acontecimento ao vivo e do outro lado da telinha o seu patrão apreciando tudo, policiais prontos para atirar, seu carro novo já não tão novo assim ao lado de uma placa de “proibido estacionar”, um guarda de trânsito com ar convicto, sua esposa em choro convulsivo, a sogra em estado de graça e, de quebra, um psiquiatra doido para tirar o atraso.
Paulo Lima é escritor e publicitário.

Num país onde os intelectuais e artistas eram reverenciados como “entes superiores”, e no qual a população era educada para reverenciar suas teorias e atitudes, o mundo cultural teve maiores responsabilidades pelo colaboracionismo com o nazismo

Poeta ainda pouco conhecida no Brasil, Jennifer Franklin unifica formação clássica e expressividade intimista para dar voz a uma experiência de vida absolutamente pessoal: a experiência de uma maternidade impactada pela realidade do autismo

A única história curta, conhecida, de Nicolau Maquiavel. Um diabo é enviado à terra para verificar porque todos os homens que chegam ao inferno apresentam como causa única de estarem ali o fato de serem casados
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Nicolau Maquiavel
Nas antigas memórias das crônicas de Florença lê-se uma história relacionada a um homem santíssimo que, em meio à devassidão da época, era mui respeitado por todos seus contemporâneos. Certo dia, absorto em suas piedosas meditações, conseguiu ver que as almas dos infelizes mortais que morriam pecadores e que iam para o inferno lamentavam — se não todos, pelo menos a maior parte — que a razão de tal desdita devia-se ao fato de terem-se casado. Minos e Radamanto, juntos com outros juízes do inferno, ficaram deveras admirados e, não podendo dar crédito às calúnias que tais almas lançavam ao sexo feminino, deram ciência disso a Plutão, tanto mais que tais lamentações só faziam crescer. Plutão então deliberou examinar o caso de perto com todos os príncipes do inferno para, só depois, tomar partido do que fosse julgado o mais conveniente para descobrir a falácia e saber a verdade por inteiro.
Convocou-os, pois, ao conselho, e falou nos seguintes termos: — Embora eu, meus diletos amigos, por disposição celeste e vontade do destino, e ainda que me encontre acima do juízo de Deus e dos homens, no entanto, como maior prova de sabedoria e prudência, resolvi consultar-vos hoje sobre a conduta que devo seguir num caso que poderia redundar em infâmia para nosso império. Todas as almas dos homens que entram em nosso reino pretendem ter sido causa disso a própria mulher, o que não nos parece possível. Condenando tal afirmação, talvez os levianos nos acusem de maldade; caso não o fizermos, talvez os injustos nos considerem demasiado indulgentes e pouco afeitos à justiça. Querendo evitar uma e outra acusação, e não encontrando um meio para tal, decidimos convocar-vos a fim de que nos ajudeis com vossos conselhos e façais com que este reino continue a viver sem infâmia, como sempre tem vivido.
Nenhum daqueles príncipes das trevas deixou de considerar o caso importantíssimo e de grande monta. Estavam todos de acordo em que era necessário descobrir a verdade, mas discordavam quanto à maneira de assim proceder. Alguns julgavam que se devia mandar um deles ao mundo, outros que vários, para ali pessoalmente conhecerem, soba forma humana, qual era a verdade. A outros parecia desnecessário tal transtorno: bastaria obrigar algumas almas, por meios de diversos tormentos, a confessá-la. No entanto, como a maioria optasse pela primeira opinião, foi essa a adotada. Mas ninguém se ofereceu voluntariamente para a empreitada; assim, recorreram eles a um sorteio. A sorte recaiu sobre Belfagor, arquidiabo, que anteriormente — antes de cair do Céu — tinha sido arcanjo.
Foi com relutância que ele aceitou o encargo, mas o poder de Plutão o constrangera a executar o que o conselho deliberara e teve assim que consentir nas condições solenemente aceitas por todos. Fora deliberado que aquele em quem recaísse a sorte receberia imediatamente cem mil ducados, e com eles viria nascer no mundo. A casar-se sob a forma de um homem e a viver com a mulher dez anos; depois, fingindo morrer, voltaria e exporia a seus superiores a própria vivencia, quais eram os encargos e os incômodos do casamento. Deliberou-se também que, durante o tempo em apreço, ele ficaria submetido a todos os achaques e males a que os homens estão sujeitos, inclusive a pobreza, a prisão, as doenças e todas as desgraças que aos mortais ocorrem, salvo se por meio de engano e astúcia conseguisse livrar-se delas.
Aceitas pois as condições e os ducados, foi-se Belfagor ao mundo e, devidamente provido de cavalos e acompanhantes, entrou ele em Florença com o maior aparato. Escolhera esta cidade para domicílio, entre todas as demais, por lhe parecer a mais plausível para quem quisesse viver empregando seu dinheiro em negócios. Fez-se chamar Rodrigo de Castela e alugou uma casa no bairro de Todos os Santos (Ognissanti). Para que não pudessem lhe descobrir os antecedentes, disse ter partido da Espanha ainda criança; dali fora à Síria e a Alepo, onde ganhara tudo o que possuía; de lá viajara para a Itália e a fim de se casar num lugar mais humano e mais conforme à vida civilizada e à sua própria índole.
Era Rodrigo um moço formoso, que aparentava trinta anos. Em poucos dias demonstrara ele quantas riquezas tinha e dera provas de sua liberalidade e humanidade; logo vários cidadãos nobres, providos de muitas filhas e pouco dinheiro, lhe ofereceram seus préstimos. Entre todas, Rodrigo escolheu uma belíssima donzela chamada Honesta. Filha de Américo Donati, que tinha mais três filhas, quase em idade de se casar, e três filhos já adultos. De família muito nobre e tido em bom conceito em Florença, era no entanto muito pobre, levando-se em conta sua numerosa prole e sua condição.
Rodrigo celebrou suas núpcias com esplendor e grandeza, não descuidando de nada que seja necessário em tais circunstâncias, pois entre as obrigações que lhe foram impostas ao sair do inferno, estava a de sujeitar-se a todos os caprichos humanos; assim, logo passou a deleitar-se com as honrarias e pompas do mundo e a gostar de ser louvado entre os homens, coisas que o levaram a grandes gastos. Por outro lado, não tardou muito a apaixonar-se perdidamente por sua D. Honesta e quase não conseguia viver quando a encontrava triste ou aborrecida.
Com sua nobreza e formosura, a senhora Honesta levara consigo para a casa de Rodrigo um orgulho tão desmesurado que mesmo Lúcifer não o tivera igual. Rodrigo, que podia comparar um e outro, considerava o de sua mulher infinitamente superior, e consta que ainda chegou a ser maior quando percebera o amor que seu marido sentia por ela. Imaginando ser por todas as maneiras a dona absoluta, dava suas ordens sem consideração ou piedade, e se ele relutasse a fazer as suas vontades, desatava em recriminações e injúrias, o que era para o pobre Rodrigo motivo de viva pena e aflição. Sem dúvida, por consideração a seu sogro, a seus cunhados e demais parentes, por respeito aos deveres do casamento e pelo amor que dedicava à esposa, sofria seus males com a maior paciência. Quero passar em silêncio sobre os grandes gastos a que era obrigado para contentá-la, vestindo segundo os novos costumes e as modas mais recentes, que nossa cidade varia por hábito natural; nem lembrarei que, para ela o deixar em paz, teve ele de ajudar o sogro a casar as outras filhas, o que lhe fez despender também considerável importância. Depois, querendo manter-se em boa paz com a mulher, consentiu em mandar um dos irmãos dela ao Oriente com casimira e outro para o Ocidente levando sedas, ao passo que para o terceiro irmão abriu em Florença uma oficina de ourives, em que despendeu a maior parte do dinheiro que possuía. Além disso, nas festas de Carnaval e de S. João, celebradas pela cidade inteira segundo tradição antiga, quando grande número de cidadãos nobres e ricos se honravam uns aos outros com magníficos banquetes, D. Honesta, para não ficar atrás de outras damas, queria que seu Rodrigo superasse a todos os demais com suas festas.
Tudo isso, suportava-o Rodrigo pelos motivos supracitados; apesar de gravíssimas, nem graves as teria achado se houvessem introduzido a paz em sua casa, permitindo-lhe aguardar em sossego o momento de sua própria ruína. Mas foi o contrário o que aconteceu, pois a índole insolente da esposa, além das despesas insuportáveis, carreara-lhe inúmeros aborrecimentos. Nenhum criado a aguentava, não digo por muito tempo, mas nem sequer por alguns dias. Para Rodrigo era o mais duro dos incômodos não possuir um criado que tivesse amor a sua casa. Os próprios diabos que trouxera consigo como domésticos preferiram voltar aos fogos do inferno a viver no mundo sob as ordens daquela mulher.
Assim prosseguia a vida tumultuada e inquieta de Rodrigo. Tendo já consumido nos gastos desenfreados o que recebera em espécie, começou a viver à espera das entradas financeiras que aguardava do Ocidente e do Oriente. Como ainda tivesse bom crédito, pediu dinheiro emprestado para não ficar aquém de sua condição; e já certo número de letras sacadas por ele circulavam na praça, o que logo foi percebido pelos que trabalhavam neste ramo de negócios. Já era bem precária a situação de Rodrigo quando, de súbito, chegaram notícias do Oriente e do Ocidente: aqui, um dos irmãos de D. Honesta perdera no jogo todo o dinheiro de Rodrigo; ali, o outro, ao voltar de um navio carregado de suas mercadorias, que não estavam no seguro, naufragou com toda a carga.
Mal estas novas circulavam pela cidade, os credores de Rodrigo reuniram-se. Consideravam-no um homem liquidado, mas ainda não podiam tomar providências por não haver expirado o prazo das cobranças; resolveram, pois, que mandariam quem o observasse habilmente, para que num abrir e fechar de olhos não resolvesse fugir. Por sua parte, Rodrigo, sem ver outro remédio e sabendo das obrigações de seu pacto infernal, decidiu fugir a todo o transe. Certa manhã montou a cavalo e saiu da cidade pela porta do Prato, perto da qual residia. Espalhada a notícia de sua fuga, os credores recorreram alarmados às autoridades e puseram-se no encalço dele, acompanhados não apenas de meirinhos como também de muitos populares.
Mal se distanciara da cidade cerca de uma milha, souberam eles de sua fuga, de sorte que, vendo-se perdido, resolveu Rodrigo, para melhor se esconder, abandonar a estrada principal e tentar a sorte em outras direções; porém o terreno árduo e abrupto dificultava tremendamente a sua marcha. Percebendo que era impossível seguir a cavalo, decidiu-se salvar-se a pé mesmo, deixando o animal no meio do caminho, e depois de ter muito tempo andado por entre vinhas e canaviais que cobriam os campos, aproximou-se de Pretola, detendo-se na casa de Giovanni Matteo de Bricca, um dos colonos de Giovanni dei Bene. Felizmente àquela hora chegava também ao local o próprio Giovanni Matteo para alimentar o gado. A ele se recomendou o fugitivo, prometendo-lhe que, se o salvasse dos inimigos que o perseguiam para fazer com que morresse na prisão, o tornaria rico, coisa que lhe daria prova antes mesmo de sair de sua casa; se não o fizesse, concordaria que o próprio camponês o entregasse a seus adversários.
Embora simples camponês, era Giovanni Matteo homem de coragem. Pensou que nada tinha a perder se tentasse salvá-lo, e prometeu-lhe auxílio. Em frente à casa havia um monte de estrume: foi lá que o escondeu, cobrindo-o de caniços e ramos colhidos para fazer fogo.
Mal acabara Rodrigo de esconder-se, seus perseguidores chegaram. Por mais ameaças que fizessem a Giovanni Matteo, não conseguiram fazê-lo confessar o que tinha visto. Assim, partiram, e depois de procurá-lo todo aquele dia e mais o seguinte, retomaram exaustos para Florença.
Afastada a agitação, Giovanni Matteo tirou Rodrigo do esconderijo e pediu-lhe que cumprisse a promessa, ao que Rodrigo lhe disse: — Irmão meu, tenho uma grande obrigação para contigo e desejo cumpri-la de qualquer maneira; e para que acredites em que eu possa fazer, vou dizer-te quem sou.
Nisso revelou a sua identidade contando em que condições saíra do inferno e como se casara. Em seguida, explicou-lhe como pretendia fazê-lo rico. O seu plano, resumindo, era o seguinte: quando Giovanni Matteo soubesse que alguma mulher estava tomada pelos espíritos, devia saber que era ele, Rodrigo, que se apoderara dela: nem sairia do corpo da vítima sem que Giovanni Matteo viesse a tirá-lo: assim, poderia o camponês pedir aos parentes da endemoninhada o preço que bem entendesse. Giovanni Matteo aceitou a proposta e Rodrigo partiu.
Decorridos alguns dias, propagou-se por toda Florença a notícia de que a filha de mestre Ambrósio Amadei, casada com Bonaiuto Tebalducci, estava tomada pelos maus espíritos. Não descuidaram os parentes de nenhum dos remédios a que se recorria em casos semelhantes; assim, puseram-lhe na cabeça o crânio de S. Zenóbio e o manto de S. João Gualberto. Rodrigo, no entanto, zombava de tudo aquilo. E para dar a entender a todos que o mal da moça era um espírito e não qualquer imaginação fantástica, falava em latim, discutia coisas de filosofia, descobria os pecados de muita gente, desmascarando-os, entre outros, a um frade que guardara em sua cela durante mais de quatro anos uma mulher vestida à maneira de um fradinho, coisas que a todos enchiam de espanto. Estava Mestre Ambrósio irritadíssimo e, havendo experimentado em vão todos os remédios, perdera já a esperança de curar a filha, quando Giovanni Matteo veio ter com ele, prometendo-lhe a saúde da filhinha se lhe dessem quinhentos florins para comprar uma propriedade em Pretola. Mestre Ambrósio aceitou a proposta. Então Giovanni Matteo, depois de mandar dizer certo número de missas e executar certas cerimônias para embelezar a coisa, aproximou-se da moça e segredou-lhe ao pé do ouvido: — Rodrigo, aqui estou eu esperando que me cumpras a promessa.
Ao que Rodrigo respondeu: — Com o maior prazer. Mas isto não chega ainda a te tornar rico. Eis por que, apenas saído daqui, entrarei na filha do rei Carlos de Nápoles, e de lá não sairei sem que me chames. Exigirás então uma recompensa segundo a tua vontade, e depois disso não deverás mais me importunar.
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Nisso saiu do corpo da moça doente, para a alegria e admiração de toda Florença. Não tardou e espalhava-se por toda Itália a mesma desgraça ocorrida, desta vez com a filha do rei Carlos. Como os remédios dos frades de nada adiantassem, o rei, que ouvira falar em Giovanni Matteo, mandou que ele fosse conduzido até ele. Chegando a Nápoles, o camponês, depois de algumas cerimônias de fachada, curou-a. Mas antes de sair do corpo da princesa, Rodrigo disse-lhe: — Bem vês que hei cumprido a minha promessa de enriquecer-te. Agora que recompensei o serviço que me fizeste, nada mais te devo; assim, aconselho-te a que não mais apareças à minha frente, pois se te fiz benefícios até aqui, daqui por diante poderia causar-te dissabores.
Giovanni Matteo retornou a Florença muito rico, pois o rei lhe havia dado mais de 50 mil ducados, e não pensava senão em desfrutar de sua riqueza, com muito gosto e sossego, sem cogitar que Rodrigo pudesse, em qualquer época, lhe causar algum dissabor. Bem cedo, no entanto, se desiludiu, ante a notícia de que uma filha de Luís VII, rei da França, estava possuída pelo demônio. Notícia essa que tumultuou de todo a alma de Giovanni Matteo, que não conseguia parar de pensar na autoridade daquele monarca e nas palavras que lhe dissera Rodrigo. De fato, o rei, não encontrando remédio para o mal de sua filha, e tendo ouvido falar da capacidade de Giovanni Matteo, mandou chamá-lo, primeiro através dos correios, simplesmente; mas em vista de que o homem alegava certa indisposição, viu-se o rei forçado a recorrer ao governo de Florença, o qual obrigou Giovanni Matteo a obedecer.
Desesperado, foi Giovanni para Paris, onde foi logo explicando ao rei que efetivamente curara já certas pessoas endemoninhadas, mas que isso de modo algum significava que soubesse ou pudesse curá-las todas, pois algumas havia de natureza tão pérfida que não temiam ameaças nem encantamentos, nem religiões, seja qual for; que, no entanto, estava disposto a fazer o que pudesse, mas pedia desculpa e perdão se não viesse a ser bem-sucedido. Enfastiado, o rei declarou que, se não lhe curasse a filha, mandaria enforcá-lo. Viu-se Giovanni Matteo em péssimos lençóis, mas fez de sua fraqueza sua força: mandou vir a possuída e, aproximando-se-lhe do ouvido, recomendou-se humildemente a Rodrigo, lembrando-lhe o benefício prestado e como seria ingrato se o desamparasse naquele imbróglio. Rodrigo então assim reagiu: — Traidor infame! Como te atreves a aparecer perante mim? Acreditas que podes te vangloriar de ter enriquecido à minha custa? Pois hei de mostrar-te a ti e a todos que sei muito bem dar e tomar qualquer coisa, como melhor me prover; e antes que partas daqui, farei enforcar-te, custe o que custar.
Dando-se por perdido, Giovanni Matteo, não vendo outro remédio, resolveu arriscar a sorte por outro meio. Mandou que levassem dali a possuída e disse ao rei: Senhor, como falei a Vossa Majestade, há espíritos tão malignos que com eles ninguém pode; pois este é um dos tais. Mas quero fazer uma última tentativa: se for bem-sucedido, Vossa Majestade e eu teremos alcançado o nosso objetivo; caso contrário, estarei nas mãos de Vossa Majestade, que saberá ter comigo a compaixão que faz jus a minha inocência. Ordene Vossa Majestade que se erga na Praça de Notre Dame um grande palco onde caibam todos os barões e todo o clero desta cidade; mande orná-lo de panos de seda e de ouro, e mande erguer no meio dele um altar. Preciso que no domingo próximo Vossa Majestade se reúna no estrado do palco com todos os seus príncipes e barões, numa pompa real, vestidos de trajes ricos e esplêndidos. Depois da missa celebrada, Vossa Majestade fará vir a possuída. Preciso, além disso, que num ângulo da praça haja pelo menos vinte pessoas reunidas com trompas, cornetas, tambores, cornamusas, címbalos, timbales e outros instrumentos de toda sorte.
Quando eu erguer o chapéu todos deverão tanger seus instrumentos e encaminhar-se na direção do estrado. Estas coisas, juntas com alguns remédios secretos, poderão fazer, julgo eu, com que o espírito maligno desapareça.
Tudo isso o rei ordenou. Chegou a manhã de domingo. O palco improvisado estava cheio de personalidades, e a praça, cheia do povo. Celebrada a missa, a endemoninhada foi conduzida ao estrado por dois bispos e muitos senhores. Ao ver tamanha multidão e tanto aparato, Rodrigo ficou meio tonto e disse consigo mesmo: “Que será que inventou esse traidor miserável? Será que está pensando me espantar com toda essa pompa? Ignora que estou acostumado a assistir as pompas do Céu e fúrias do Inferno? Haverei de castigá-lo de qualquer maneira”.
Quando, logo depois que Giovanni Matteo se aproximou novamente e lhe pediu que saísse, Rodrigo assim lhe falou: — Bela ideia a tua, para dizer a verdade! Que pensas alcançar com todo esse aparato? Acreditas escapar assim ao meu poder e à ira do rei? Ladrão miserável, farei com que te enforquem haja o que houver!
Como não parasse de dizer tais palavras, acrescentando-lhes outras menos injuriosas, Giovanni Matteo houve por bem não perder mais tempo. Ergueu o chapéu, todas as pessoas encarregadas de fazer barulho tocaram seus instrumentos e com rumor que atingia o Céu foram-se aproximando do estrado. O barulho aguçou os ouvidos de Rodrigo que, sem entender do que se tratasse, pediu assombrado que Giovani Matteo lho explicasse, e Giovanni respondeu-lhe de forma bem perturbada: — Ai, meu Rodrigo, é a tua mulher que vem te buscar! Foi, em verdade, maravilhoso ver até que ponto Rodrigo horrorizou-se ao ouvir o nome de sua mulher. Tamanho lhe foi o espanto que, sem indagar a si mesmo se seria possível que ela ali estivesse, fugiu sem dizer uma palavra e assim deixou a princesa livre; preferiu voltar ao Inferno para dar conta de suas ações a submeter-se outra vez ao jugo matrimonial, suportando tantos desgostos, aborrecimentos e perigos. E eis aqui como Belfagor, de volta ao inferno, pode dar testemunho dos males que uma mulher leva consigo a um lar, e como Giovanni Matteo, que foi mais astuto do que o diabo em pessoa, pôde retornar a sua casa cheio de alegria.
Conto publicado no livro “Os Cem Melhores Contos de Humor da Literatura Universal”, organização de Flávio Moreira da Costa, Editora Ediouro. Tradução de Paulo Rónai e Aurélio Buarque de Holanda.

[caption id="attachment_9020" align="alignright" width="620"] Foto: Gaspar Nóbrega/VIPCOMM[/caption]
Maurício Falleiros
Especial para o Jornal Opção
Do nada, o homem resolveu puxar assunto no elevador, coisa que nunca tinha feito antes. Se arrependeu mortalmente.
— E a seleção ontem, hein?
— Não tem pra ninguém, né? O Neymar joga demais.
— Hum... Não acho ele tudo isso, não.
— Como não?! O cara come a bola.
— Só firula.
— Que firula, o quê?! O cara é gênio.
— Gênio é cientista, essas coisas. Ele só joga bola.
— Mas quando o assunto é bola, ele é o cara.
— Puro marketing.
Pararam no andar do homem. O outro morador saiu junto do elevador.
— Você mora nesse andar também? Nunca te vi por aqui...
— Não, moro no décimo-oitavo.
— E desceu aqui por quê?
— Pra gente terminar o nosso papo.
— Para com isso. Só tava puxando assunto.
— Você me fala que o Neymar não joga nada e fica por isso mesmo?
— Isso pode continuar outra hora. — Disse isso e entrou de supetão no apartamento.
No dia seguinte, ele abriu a porta do apartamento e deu de cara com o neymarzete.
— Que você tá fazendo aqui?
— Tomando coragem.
— Pra?
— Tocar sua campainha.
— Pra?
— Terminar aquela conversa.
— Tá nessa ainda?
— Você ainda acha que o Neymar é só firula?
— Acho.
Sem dar chance de resposta para o inconveniente, o homem correu para o elevador. O vizinho impediu a porta com o pé:
— Ainda não terminamos.
— Terminamos, sim! — Falou, empurrando o pé do vizinho para fora do elevador.
Horas mais tarde, ao chegar do trabalho, o homem por pouco não atropelou um ser que estava parado feito um cone na sua vaga. Era o vizinho.
— Não é possível! O que você quer de mim, cara?
— Que você reconheça que falou besteira!
— Eu não vou reconhecer porcaria nenhuma. O Neymar é um firulento. E você, um mala!
— Também não concordo com essa sua opinião. — Retrucou, seguindo o homem até a porta do elevador.
O homem questionou:
— Você vai subir de elevador?
— Vou, sim.
— Então, eu vou de escada.
— Eu te acompanho.
— Se você for de escada, eu vou de elevador.
— Por que isso, cara? Tá fugindo da conversa?
— Não, tô fugindo de você.
Com um salto ornamental, o homem voou para dentro do elevador apertou todos os botões e se mandou. Quando entrou no seu apartamento, o interfone tocou. Ele teve a chance de deixar o aparelho tocando, mas atendeu. Se arrependeu novamente: — Pronto.
— Arrá! Me driblou igual ao Neymar, hein? Lance de gênio! Mas eu te peguei. Bora trocar aquela ideia?
— Você?! Vai arranjar alguma coisa pra fazer, dar um trato na sua esposa, se você tiver uma ainda, sei lá!
— Tô descendo aí.
— Se aparecer aqui, eu te dou um tiro. Eu juro. E faço parecer suicídio!
Desligou o interfone e depois o tirou do gancho. Passou todas as travas na porta, preparou um uísque e pensou alto: — Nunca mais puxo assunto com ninguém. E se alguém puxar comigo, eu me faço de surdo.
Deu um gole no uísque e ouviu um barulho na porta da sacada. Virou para lado e viu um vulto. Adivinha quem era.
Maurício Falleiros é escritor.

A inter-relação entre homem e máquina atinge atualmente um nível jamais visto na história, gerando questionamentos e temores acerca do que ainda está por vir

“As Coisas Incríveis do Futebol” reúne 25 crônicas do jornalista Mário Filho, constituindo um recorte significativo de seu estilo de escrita e modo de ver o futebol. As crônicas são compostas de modo fluente, num tom coloquial, com pitadas de fina erudição, repletas de frases de efeito e construções sonoras
Ademir Luiz Especial para o Jornal Opção
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Eu falo muito sobre futebol. Há tempos deixei de torcer, atualmente sou mais um entusiasta do esporte pelo que ele possui de épico e humano. Admiro-me do fato do futebol ser o maior bem simbólico da humanidade. Quase todos os povos do globo, independentemente de crenças religiosas e regimes políticos, o praticam. Fique claro que estou longe de ser um cientista, um pesquisador, um catedrático da bola. Sento na arquibancada quando vou ao estádio, não fico nos camarotes ou nas cadeiras numeradas tomando chá, enrolado num cachecol e tirando fotos para postar na internet. Embora, por motivos de senso estético, evite participar da “hola”, futebol para mim é, sobretudo, diversão, ainda que diversão reflexiva. Tenho lá minhas idiossincrasias. Sou do tipo que analisa estatística, inventa esquemas táticos mirabolantes, escala equipes impossíveis formadas com os melhores de todos os tempos, de diferentes épocas. Coleciono uniformes da seleção da Holanda, tendo atualmente seis deles, incluindo o clássico de 1974. Coisa de doido!
Quem sofre são meus alunos na UEG (Universidade Estadual de Goiás). Eles, diferentemente de meus amigos e familiares, em tese, não podem me mandar calar a boca. Ultimamente, no esquenta do mundial de 2014, tenho observado que entre os estudantes universitários esse é um assunto controverso. Muitos estão influenciados pela ingênua campanha do “não vai ter Copa”, versão pós-moderna da velha ladainha de que o “futebol é ópio do povo”. Outros simplesmente afirmam que é perda de tempo, que não gostam. Outro tanto são apreciadores, mas não apresentam muito senso histórico e de proporções. Pelé, por exemplo, perdeu muito de seu prestígio nacional (não internacional) com as novas gerações, fenômeno esse que atribuo a expansão do politicamente correto que tomou conta do esporte desde a era Senna. Pouco se fala de Garrincha. Romário está se tornando folclore, enquanto Ronaldo está se tornando piada pronta. O mito de Zico tem resistido bem, talvez por se encaixar perfeitamente no arquétipo sennista de atleta.
Diante desse cenário costumo apresentar certa bibliografia para justificar meu entusiasmo, até porque na universidade tudo o que apresenta bibliografia ao final ganha ares de irrefutabilidade. Aconselho a leitura das crônicas de Nelson Rodrigues, reunidas nos volumes “À Sombra das Chuteiras Imortais” e “A Pátria em Chuteiras”, organizadas por Ruy Castro, no qual se tem verdadeiras aulas de História do Brasil, Sociologia e Antropologia via futebol. Recomendo o denso “A Dança dos Deuses”, do medievalista Hilário Franco Jr., para se aprofundar nas estruturas históricas da formação do mundo moderno e suas relações com o desenvolvimento do futebol. Insisto que leiam até o mediano “Futebol ao Sol e à Sombra”, de Eduardo Galeano, para me ancorar no prestígio do exagerado “As Veias Abertas da América Latina”, pois, espero que assim raciocinem, se o autor do segundo escreveu o primeiro, talvez o futebol não seja tão ópio assim.
Finalmente, para dar solidez de diamante aos meus argumentos, não me furto de citar dois clássicos: “O Negro no Futebol Brasileiro”, de 1947, e “Viagem em Torno de Pelé” (1964), ambos do jornalista Mário Filho (1908 – 1966). Gilberto Freyre escreveu o prefácio de “O Negro no Futebol Brasileiro”, reconhecendo-o como um trabalho fundamental para compreender a formação do Brasil. Certamente, é digno de figurar na mesma estante que os livros de Freyre. Segundo José Trajano, “nenhum de nós, jornalistas esportivos, somos capazes de engraxar os seus sapatos. Não me venham de Armando Nogueira, João Saldanha, Thomas Mazzoni ou Nelson Rodrigues, irmão dele, todos sensacionais e de tirar o chapéu. Perto de Mário Filho eles estão distantes anos-luz”. Apesar de tamanha importância, mesmo na era do PDF de internet, a obra de Mário Filho estava se tornando de difícil acesso. Depois da biografia “A Infância de Portinari”, de 1966, a última vez em que foi publicado foi na coletânea de crônicas “Sapo de Arubinha”, de 1994.
Para suprir essa lacuna a editora Ex Machina, fundada recentemente por Bruno Costa, ex-sócio da Editora Hedra de São Paulo, lançou “As Coisas Incríveis do Futebol — as melhores crônicas de Mário Filho”, com apresentação de José Trajano e organização de Francisco Michielin. Não poderia ser em melhor hora, considerando que Mário Filho foi um dos nomes mais importantes nos bastidores da Copa de 1950, sendo que o estádio Maracanã foi batizado oficialmente com seu nome. Sessenta e quatro anos depois o Brasil sedia novamente o mundial. “As Coisas Incríveis do Futebol” reúne 25 crônicas de Mário Filho, constituindo um recorte significativo de seu estilo de escrita e modo de ver o futebol. As crônicas são compostas de modo fluente, num tom coloquial, com pitadas de fina erudição, repletas de frases de efeito e construções sonoras, boas para serem lidas em voz alta. Parece-me que ali está capturado, e retrabalhado literariamente, o modo de falar das décadas de 1940 e 50, corte cronológico do volume. A crônica mais antiga, intitulada “Sururu”, foi publicada em “O Globo Esportivo” em 5 de outubro de 1945, enquanto a mais recente, intitulada “O individualismo no futebol brasileiro”, foi publicada na “Manchete Esportiva” no dia 6 de abril de 1957. O título da coletânea foi extraído de uma série de sete crônicas que Mário Filho publicou entre setembro e outubro de 1947, em “O Globo Esportivo”, sendo que algumas delas, trazendo histórias pitorescas sobre personagens do mundo do futebol, estão presentes no livro.
Mas o livro vai muito além de histórias pitorescas. Entranhadas nas crônicas, quase que como anéis escondidos, estão presentes algumas reflexões profundas e complexas sobre a realidade sociocultural do Brasil. Na citada crônica sobre “O individualismo no futebol brasileiro”, Mário Filho dialoga com a tese de Sérgio Buarque de Holanda sobre o bacharelismo reinante das relações sociais brasileiras ao escrever que a “maneira de ser brasileira, a do brilho pessoal, a do anel de doutor no dedo, mesmo sem diploma, a do título de doutor, mesmo sem anel, a do discurso, a do soneto, pecados que todos cometiam ou se vangloriavam de ter cometido, às vezes em confissões como que envergonhadas mas que no fundo eram sussurros do orgulho humilhado”, motivavam o futebol livre, leve e solto praticado pelos brasileiros, que subvertia a lógica original do esporte frio e calculado dos inventores ingleses.
Em outro momento, na crônica “O torcedor de rádio”, de 10 de fevereiro de 1950, Mário Filho antevê a importância que o futebol teria nas décadas seguintes para a cultura de massa. Pergunta: “Quem não andou torcendo pelo rádio por ocasião do campeonato do mundo? Gente que nunca se preocupara com futebol descobriu, de um momento para outro, uma vocação irresistível de torcedor”.
A seleção de textos realizada por Francisco Michielin enfoca, sobretudo, episódios cotidianos do esporte, usando-os como trampolim para voos maiores de imaginação, como na crônica “O poeta e o passado”, com participação especial de José Lins do Rego, e reflexões sobre o desenvolvimento e as características peculiares do futebol conforme praticado no Brasil. No posfácio, Michielin explica que “Mário Filho foi um pioneiro, um inovador, alargando sua influência. Que ele tenha mudado a abordagem do futebol, através da imprensa, é fato notoriamente reconhecido e celebrado por todos (...) dotado de uma estética de rara singeleza, a nos fazer rodopiar por um carrossel de alegorias e alegrias; existenciais, expositivas, dramáticas, irreverentes e, sobretudo, inteligentes”. Por esse trecho parece-me evidente que os critérios de seleção foram mais estético-literários do que históricos. Certamente, é um critério válido já que o livro se propõe a republicar as “melhores crônicas” do autor. Contudo, não deixa de fazer falta a faceta de Mário Filho enquanto testemunha da história. Seria interessante ler suas perspectivas acerca de episódios como a surpreendente campanha da Seleção Brasileira na Copa de França de 1938, o Maracanaço de 1950, a Batalha de Berna de 1954, a vitória em 1958, o bi em 1962. Quem sabe pode ser o mote para um segundo volume.
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Ao mesmo tempo chama atenção a opção por praticamente não enfocar grandes craques da época, como Pelé, Garrincha, Di Stefano ou Puskas. Estrela o livro figuras semiesquecidas, como Belfort Duarte, Haroldo e Mimi Sodré. O célebre zagueiro Domingos da Guia é uma exceção, e mesmo essa exceção surge de modo a reforçar o esquema geral.
Nesse ponto cabe uma comparação, que fiz questão de evitar até o momento, entre Mário Filho e Nelson Rodrigues. Embora a escrita do caçula fosse claramente devedora do estilo do primogênito, os objetivos eram diametralmente opostos. Enquanto Nelson Rodrigues buscava o épico, Mário Filho cultivava o humano. Não é por acaso que o título da coluna de Nelson Rodrigues era “à sombra das chuteiras imortais”, ele de fato retratava seus personagens como deuses do futebol, como figuras acima da vida. Afirmava que o meia Didi possuía a dignidade inata de um “Príncipe Etíope”, defendia que do peito de Pelé “parecem pender mantos invisíveis”, para ele “Garrincha está acima do bem e do mal”.
Nada disso aparece no irmão mais velho. Mário Filho fala do capitão de time que não tem tostão para pegar o bonde, do jogador honesto demais para fazer falta em um companheiro de trabalho, do perneta que jogava futebol. Tipos muito próximos dos torcedores, dando a sensação que os protagonistas de suas crônicas poderiam ser seus vizinhos, amigos ou até eles mesmos. A crônica “Notas para uma biografia de Domingos da Guia” é sintomática. Nela não aparece o beque genial, lendário, mitológico, o atleta acima de todos os outros. Não, longe disso, aqui Domingos da Guia surge como Domingos Antônio, apenas o mais habilidoso de uma família que trazia o futebol no sangue (Mário Filho não sabia que o melhor estava por vim, na figura do divino mestre Ademir da Guia). Domingos é retratado como um homem humilde, até ingênuo, mas muito correto e trabalhador. Um homem que achava que “meu futuro não está no futebol”, que labutou como mata-mosquitos e serralheiro, só jogando futebol nos finais de semana, que tinha receio de ofender os cartolas ao negociar seus contratos. O Domingos da Guia de Mário Filho não joga com chuteiras imortais, é, sim, humano, demasiadamente humano.
Esse senso de humanidade é justamente o maior legado deixado por Mário Filho, que fez pelo futebol o que Gilberto Freyre fez pela Casa-grande, pela Senzala, pelos sobrados e pelos mucambos. Suas crônicas são obrigatórias, foram coisas incríveis que o futebol permitiu que existissem.
Ademir Luiz é escritor e doutor em História.
Editor da Ex Machina é o goiano Bruno Costa
A Ex Machina, editora nacional, é dirigida pelo goiano Bruno Costa, ex-editor da Hedra (onde fez um trabalho magistral). Ele mora em São Paulo há vários anos.
Bruno Costa, além de editor nato e atilado, é tradutor do primeiro time. Intelectual, conhece literatura como poucos.
“As Coisas Incríveis do Futebol — As Melhores Crônicas de Mário Filho” é o primeiro livro editado pela Ex Machina. As crônicas, em tempo de Copa do Mundo, ganharam resenhas e notas nos principais jornais do país. O livro foi publicado com o habitual capricho do jovem editor.

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