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“Do Olavo de Carvalho não se fala”, ou A importância do documentário “O Jardim das Aflições”

Para a indignação de todos os que tecem inúmeras ofensas ao filósofo, esse momento não conseguiu passar em vão. Aquele que deveria ser relegado ao esquecimento, hoje está em um documentário tendo o seu pensamento exposto para todo o Brasil [caption id="attachment_97126" align="aligncenter" width="620"] Filósofo Olavo de Carvalho e Josias Teófilo, diretor do documentário "O Jardim das Aflições"[/caption] Tobias Goulão Especial para o Jornal Opção “Do Olavo de Carvalho não se fala”, disse certa vez o líder comunista Milton Temer, e essa frase resumiu durante alguns anos a posição que se tomava sobre o autor. O homem de 70 anos, atualmente morando no estado da Virgínia, nos Estados Unidos, autor de livros de sucesso como "O imbecil coletivo" e "Aristóteles e nova perspectiva", entre outros, e que durante um bom tempo constava entre os colaboradores dos veículos de mídia como revista Época, O Globo, Jornal da Tarde, Folha de São Paulo, Diário do Comércio, passou por uma tentativa de ser relegado ao esquecimento. Motivo: atitude de denúncia do establishment brasileiro. O que a casta dos intelectuais e políticos tupiniquins esqueceu foi que não havia mais uma hegemonia na forma de exposição de ideias, no fornecimento de aulas, na difusão de conhecimento. A internet e a iniciativa particular conseguiram suprir o ostracismo que tentaram impor a Olavo de Carvalho, que ainda continuou a escrever, a lecionar e a semear em uma terra desolada. O resultado é que hoje, em 2017, não há mais como ignorar Olavo de Carvalho. Até mesmo o cinema é prova disso. O documentário O Jardim das Aflições, lançado recentemente, em 30 de maio, e que está percorrendo as principais cidades do país, é prova da importância que Olavo de Carvalho exerce no meio intelectual, mesmo ainda sendo ignorado por muitas pessoas que compõem a intelligentsia no país. O filme dirigido por Josias Teófilo foi rodado sem nenhuma verba governamental e conseguiu, por financiamento coletivo, uma soma de 315 mil reais - um baixo orçamento se comparado às grandes cifras de filmes que são rodados via Lei Rouanet. Em uma combinação de diálogos, leituras de trechos de obras filosóficas do próprio Olavo e de outros autores, as três partes do documentário caminham, como uma escrita sinfônica à maneira que o poeta Bruno Tolentino classificava a escrita de Olavo, a um arremate belo após a grande execução. As três partes, I Contra a tirania do coletivo, II Como tornar-se o que se é, III e As ideias dos náufragos, são uma forma de dar espaços à observação que o autor faz sobre as forças que tem ação sobre nós. Assim ele destaca o poder que o Estado exerce sobre os indivíduos, coisa que outrora não encontramos paralelo e como a esfera da ação política em busca desse controle tomou conta de todas as atividades, inclusive da religião. Após expor o avanço do controle via Estado, há uma longa exibição de como buscar a consciência de si, de como moldar a própria personalidade tentando caminhar em meio às inúmeras forças que exercem sobre nós algum poder e, mesmo assim, saber utilizar todas como meio de auxílio na nossa formação. Por fim, após o encontro com o poder, com a noção de construção daquilo que somos, Olavo fala a nós sobre aquelas ideias que levam os homens à ação, as ideias que movimentam e que acabam por construir um caminho na história humana. Como um bom estudioso das ideias clássicas, ao dialogar fica claro o ponto em que, citando Platão, nos lembra que a filosofia nos ensina a morrer; mais ainda, a filosofia acaba mostrando ao fim que peso possuem nossas ações, pois a distinção final é a que mesmo não mais presentes corporalmente nossas ações, nosso ser que, em tempos passados, surgiu e agiu não perde nada dessa condição. Aquilo que é ser, não pode ser não-ser; aqueles que realizaram alguma ação, não podem desfazê-las. Nas escolhas de filmagem de Josias Teófilo, tudo é caminho para encontrar a figura do filósofo distante da torre de marfim que muitos intelectuais cultivam. As panorâmicas na cidade onde ele habita, o passeio na pequena livraria, as cenas em família, a reunião na sala, o tempo na biblioteca e até mesmo os relatos sobre o Olavo feitos pela esposa Roxane caminham para mostrar a integridade do que o filósofo fala e daquilo que ele vive. A montagem faz relação com toda a narrativa do documentário, sendo elemento que representa, ora de forma clara e outras simbolicamente, aquilo que Olavo está explicando. As cenas retiradas de entrevistas conferidas pelo autor, trechos retirados de filmes somados às cenas que se passam em Brasília, seja na visão aérea da catedral, seja no plano-sequência que traz a explanada dividida em tempos de impeachment, são excelentes ilustrações dos temas discutidos: poder, consciência e transcendência. Ainda é importante citar na construção do filme o peso da fotografia do premiado Daniel Aragão. Ele soube passar muito bem a atmosfera da proposta inicial de Josias: partir do livro e expandir o tema de O Jardim das Aflições. Ou seja, da tirania imposta pelo Estado, da importância de saber quem se é e do elemento transcendental no homem. Um detalhe à parte é a trilha sonora: 1ª Sinfonia de Sibelius, além de ser uma obra magistral que completa a composição do cenário o qual ambienta a vida do filósofo, é uma referência à forma da escrita do Olavo. [caption id="attachment_97127" align="alignleft" width="300"] Cartaz de "O Jardim das Aflições"[/caption] Mas aquilo que o documentário melhor retrata é um simples fato: o filósofo no seu exercício de filosofar. A definição que Olavo de Carvalho oferece de filosofia, “a busca metódica pela unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-versa”, é justamente o que está exposto em O Jardim das Aflições. No filme, principalmente na exposição da consciência de si que compõe a segunda parte do documentário, vemos esse exercício. As reflexões feitas por Olavo nada mais são que esse ato de fazer uma filosofia que esteja diretamente ligada à realidade e aos elementos circunstanciais que dão ao indivíduo a matéria-prima para ser aquilo que é. É justamente a composição de uma sinfonia que transmite a busca da unidade entre as ideias que estão em ação no indivíduo, a procura por entender a realidade que está em constante relação com essas ideias e como elas não devem ser apenas uma obra de gabinete, mas uma composição que busca justamente determinar a unidade do real. As circunstâncias, referência direta ao filósofo espanhol José Ortega y Gasset, que já foi comentado pelo próprio protagonista do documentário como um dos responsáveis por abri-lhe os olhos para fora do mundo marxista, são as condições que estão ligadas diretamente à formação de nossa realidade como pessoa. Considerar o efeito dos elementos internos e externos a nós é um dos temas que serão expostos e que dão um tom importante ao desenrolar da explicação de Olavo sobre a nossa busca para nos tornarmos aquilo que somos. Outra referência não feita no documentário, mas que pode ser percebida mesmo que levemente, é vinda do francês Louis Lavelle, que em outras situações é mencionado pelo filósofo brasileiro e que tem em seus escritos justamente uma busca por essa consciência de si, ligada a um aprofundar-se no próprio ser e um expandir-se ao encontro do outro. O que é feito nesse exercício filosófico que vemos no documentário é aquilo que certa vez Olavo de Carvalho explicou ter visto de um filósofo de fato, não de um professor de história da filosofia. Em seu tempo como aluno do Pe. Stanislavs Ladusãns, sacerdote católico vindo da Letônia, disse que este fazia em suas aulas o exame dos problemas propostos seguindo uma linha que passava pelas respostas de vários autores até chegar a uma solução. Esse método do exame, da narrativa do problema e da observação de suas causas, efeito e solução é o que temos nas lições dadas durante o documentário. Como lembra Eric Voegelin, autor a quem Olavo faz referência durante o documentário, filosofar é algo que deve ser feito para resgatar a realidade. Justamente essa é a obra de resgate a qual Olavo dedica boa parte de seu trabalho. É intenção dele o resgate das inteligências no Brasil, uma ação de esquecimento das ideologias e procurar, na realidade, ligar-se ao que ela é e assim buscar a compreensão da vida humana. Apelo à realidade esse que também pode ser encontrado em outro grande filósofo por vezes mencionado por Olavo em outras ocasiões, o espanhol Xavier Zubiri, que traz na sua filosofia a mesma noção de se ligar ao real e, a partir de nossa relação com ele, buscar a compreensão apartada das vias ideológicas que têm como intuito apenas nublar a verdade das ações da realidade. Além de Voegelin, Aristóteles e Platão são outras referências citadas várias vezes durante o documentário, o que mostra a conexão entre a filosofia não como uma sucessão de ideias nas quais a cada moda se esquece os antecessores, mas como um conjunto concreto no qual se utiliza de toda a verdade que há em seu trajeto histórico até hoje, talvez uma mostra do que Mario Ferreira dos Santos fez em sua Filosofia Concreta, este que também é um autor muito estudado por Olavo. Para a indignação de todos os que tecem inúmeras ofensas a Olavo de Carvalho, esse momento não conseguiu passar em vão. Aquele que deveria ser relegado ao esquecimento, ser tratado como pária, hoje está em um documentário tendo o seu pensamento exposto para todo o Brasil. A figura que deixou toda uma casta intelectual com muita indignação está novamente nos holofotes, o que reflete a influência que ele exerce, cada vez mais, em uma população que começa a se levantar do lamaçal ideológico em que estamos mergulhando (vide as referências diretas a ele nas várias manifestações públicas que tivemos no país). Para “um filme que não deveria existir”, O Jardim das Aflições veio dar novos ares ao cinema e uma nova visibilidade para a filosofia no Brasil. Tobias Goulão é mestre em História pela Universidade Federal de Goiás. Assista ao trailer do filme: https://www.youtube.com/watch?v=ErvhYt_EUzE&t=48s

Uma crítica feminista do filme “Mulher-Maravilha”

O filme estreou dia 2 de junho e trouxe para as telonas tudo o que a personagem representa: coragem, força, justiça e amor. O primeiro longa da princesa das Amazonas, Diana de Themyscira, chegou as salas de cinema 75 anos após sua criação [caption id="attachment_97123" align="aligncenter" width="620"] Gal Gadot interpreta a "Mulher Maravilha" no cinema[/caption] Ana Amélia Ribeiro Especial para o Jornal Opção Antes de chegarmos à crítica do filme de fato, vamos fazer uma parada sobre conceitos de representatividade e feminismo dentro da cultura pop. Sim, é necessário. E, se você tem repulsa a esses temas sugiro que vá direto para a parte: “Coragem, força, justiça e amor”. Em tempos de “intolerância ideológica” é necessário deixar claro que este não é um texto doutrinário, é apenas esclarecimentos de pontos importantes de discussão que o filme da “Mulher-Maravilha” traz.

Representatividade feminina nas histórias em quadrinhos

A primeira edição da história da Mulher-Maravilha saiu em dezembro de 1941, foi um sucesso de público, alcançando cerca de 10 milhões de leitores em apenas três anos de publicação. Criada pelo o psicólogo norte-americano William Marston, a origem da personagem é subversiva e empolgante. Marston, era polígamo e se inspirou na personalidade e aparência de suas duas esposas, Elizabeth Holloway Marston e Olive Byrne, para criar a Mulher-Maravilha. Existe várias evidencias de que Marston acrescentou elementos da sua vida pessoal na construção da personagem, por exemplo, ele é o inventor do teste de pressão sanguínea sistólica, elemento fundamental no funcionamento do polígrafo ou mais conhecido como: “detector de mentiras”, então a partir de sua invenção ele deu a princesa das Amazonas o “Laço da Verdade”, como uma de suas armas. Além da inspiração vinda do poligrafo, o laço também representa outro interesse do autor, o bondage. Outro fetiche de Marston são os braceletes utilizado pela personagem, como ele era polígamo e não podia usar aliança, já que a poligamia não é permitida nos Estados Unidos, o autor deu a suas esposas braceletes para representar a união deles. Marston decidiu criar um super-herói, logo após publicar um artigo sobre o potencial educacional das histórias em quadrinhos, o autor ressaltou que sua prioridade na hora de criar essa personagem seria que ela utilizasse o amor para resolver os problemas, não só o punho e força bruta. Então sua esposa Elizabeth o aconselhou a criar uma personagem que fosse mulher. Logo Marston decidiu que a sua personagem teria a aparência e beleza da sua esposa Olive, e a personalidade e ideologia feminista da sua esposa Elizabeth. De acordo com uma publicação do autor em 1943, as garotas da época não se sentiam representadas na literatura de um modo geral, segundo Marston “nem as garotas querem ser garotas, uma vez que o arquétipo de representação feminina é de ausência de força e poder”. Portanto com base nessa afirmação, o autor decidiu criar a Mulher-Maravilha como uma personagem forte, feminina e feminista. Mas, é claro, que nem sempre a princesa das Amazonas foi representada dessa forma, como uma personagem feminina e forte como foi concebida, a história da Mulher-Maravilha passou por altos e baixos, após a morte de seu criador William Marston em 1947. Ela passou por diversos autores e teve diferentes abordagens ela foi desde secretária da primeira formação da Liga da Justiça, até uma espiã fashionista dona de boutique. Até os anos 80 a história da personagem era inconstante, foi quando o desenhista e roteirista George Perez assumiu o comando das publicações da Mulher-Maravilha e além de voltar a essência da personagem, ele aprofundou o arco da mitologia grega nas HQs da personagem. Bruce Timm no início dos anos 2000 reforçou o discurso feminista da personagem na animação da Liga da Justiça Sem Limites. E recentemente em Rebirth, Greg Rucka criou o Ano 1 da personagem adicionando novos elementos na mitologia da personagem. Mulher-Maravilha, apesar de ter todo esse histórico só foi ganhar um filme solo de origem agora em 2017, setenta e cinco anos depois da sua criação. Enquanto personagens como o Batman têm 9 filmes, e Superman têm 7 – contando com Batman vs Superman, esse filme apesar de ter a aparição da Mulher-Maravilha não conta como um filme dela, porque se somar todas as vezes que ela surge na tela não dá nem 20 minutos de cena, em um longa que têm mais de duas horas de duração. Existiam rumores de projetos sobre filmes da personagem desde 1996, mas que nunca saíram do papel. Pois havia uma “crença” em Hollywood que ninguém queria e/ou se interessava em assistir filmes de heroínas nos cinemas, e os grandes responsáveis pela perpetuação dessa ideia foram os filmes da Elektra (Marvel) e Mulher-Gato (DC) ambos grandes fracassos de público e crítica. O grande problema desses longas é a má construção das personagens femininas somadas a péssima elaboração roteiro, além de grandes problemas de direção. Além de serem hipersexualizadas, nonsenses, sem pé e nem cabeça. É obvio que esses filmes seriam grandes fracassos, nenhuma garota se sentiu representada neles, e esse é um grande problema na indústria de longas de histórias em quadrinhos e que vem desde suas criações editoriais. Falta representatividade, e isso tem mudado aos poucos. Os arquétipos de construção de personagens femininas - e masculinas também - sempre foram de figuras idealizadas de: corpo, situação financeira e orientação sexual. Os corpos - A maioria são hirpersexualizados com um padrão de “corpo ideal”; as personagens femininas são cheias de curvas, cintura fina, pernas bem torneadas, bumbum e peito avantajados, usando uniformes que não cobrem todo o corpo, com decotes, tomara que caia, salto alto e meia arrastão. No geral são uniformes bem fetichistas. Os personagens masculinos são halterofilistas, e usam uniformes de lycra que marcam todos os seus músculos, e cobrem todo o seu corpo. A grande maioria desses personagens são brancos. Situação financeira – boa parte são de classe média, também há os milionários, quanto as questões ideológicas existem de todas as vertentes há personagens liberais, esquerdistas, capitalistas. Mas quando se trata de vilões grande parte são nazistas, e recentemente tem colocado seguidores de religiões muçulmanas como antagonistas também. Orientação sexual – a grande maioria dos personagens são héteros, e quando são retratados como LGBTTQ são secundários, ou são de Terras diferentes, que não envolve o arco principal da personagem. Recentemente foi confirmado que a Mulher-Maravilha é bissexual, mas não era necessário confirmar, o que era obvio. Gente, as amazonas estão há mais de 100 anos em Themyscira, uma ilha escondida e isolada do mundo dos homens, é mais do que evidente que em determinado momento elas iriam se relacionar. Mas, é claro que essa história deu a maior polêmica, e começou as acusações da DC ter “comprado a ideia da agenda gay”. Mas, deixa eu contar uma novidade para vocês: mulheres também sente desejos sexuais, eu sei que parece difícil de acreditar nisso, mas não há nada de profano em mulheres sentir tesão, aliás parem de nos colocar em um altar santificado. Sabe aquele papo que vocês homens soltam de vez em quando: “nós homens temos as nossas necessidades”... Pois é, nós mulheres também temos, e isso não nos faz nem mais, nem menos santa, nem mais, nem menos “vadias”, isso só nos faz uma única coisa: mulher. E se mesmo com essa explicação, você ainda faz parte do coro dos que gritam que isso não é natural, deixe-me lembrar a vocês que nós estamos falando da história de uma mulher que foi moldada com um monte de lama, que ganhou a vida depois que os deuses do panteão do Olimpo deram a ela características especificas, e Zeus soltou um raio no monte de barro. Se é para debater sobre naturalidade, vamos falar da falta de coerência anatômica que algumas personagens femininas são retratadas nas histórias. Às vezes, parece que elas nem têm coluna vertebral, só para ter um close das partes íntimas durante as cenas de brigas. As formas exageradas e os enquadramentos absurdos nos quais as personagens femininas são apresentadas nas HQs geraram ações de contestação como a “Iniciativa Gavião Arqueiro”, na qual artistas desenham o personagem masculinos reproduzindo as poses das personagens femininas. A “Iniciativa” tem, entre outros, o objetivo de deixar claro a desigualdade na representação de gênero e a exploração comercial da hipersexualidade feminina. [caption id="attachment_97122" align="aligncenter" width="620"] Exemplo de cena de luta com personagens masculinas[/caption] [caption id="attachment_97120" align="aligncenter" width="620"] Exemplo de cena de luta com personagens femininas[/caption] [caption id="attachment_97121" align="aligncenter" width="620"] "Iniciativa Gavião Arqueiro"[/caption] Existe um grande problema nessa representação de mulheres puras e femininas, assim como nos homens corajosos e viris. Grande parte da nossa personalidade é moldada a partir do que consumimos na literatura de forma geral, então quando reforçamos essa ideia de mulheres têm que ser gentis, doces, fofas, magras, sexy e ao mesmo tempo inocente para serem “desejadas”, ou “para casar”, nós colocamos essas meninas em uma busca sem limites de ser um “padrão ideal”. E isso algumas vezes gera meninas com baixa autoestima, depressivas, com problemas de bulimia, dependência química, levando as vezes até ao suicídio. E não se engane, isso também acontece com os meninos quando reforçamos a ideia de que homens não choram, ser sensível é demonstrar fraqueza ou “coisa de mulherzinha”, além dos estereótipos de virilidade exacerbada, protetores e corajosos. E quando o garoto não se encaixa nesses padrões o caminho é quase o mesmo que os das meninas. Ou seja, essa idealização não faz bem para ninguém nem homem e nem mulher. Estão preparados para ler sobre feminismo agora?! Sim, feminismo, palavra que causa repulsa em algumas pessoas, e é empoderadora para outras. E antes de você falar que não precisa do feminismo, ou que o feminismo é “um movimento de mulheres histéricas que não se depilam” eu gostaria de comunicar a você que esse conceito foi vendido para você pela mídia, e você comprou e aceitou como realidade sem questionar. Neste exato momento deixe de lado essa sua “percepção” sobre o que é feminismo, e veja ele como realmente ele é: mulheres buscando condições de igualdade. Isso mesmo que você leu: I G U A L D A D E. Não queremos ser consideradas “superiores” aos homens, queremos ser iguais em direitos. Se você nesse momento estiver pensando que nós temos as mesmas condições que os homens, tenho uma péssima notícia para você: não temos. E são em vários quesitos, mas vou focar somente no nosso objeto de discussão neste texto: a cultura pop. Durante anos as mulheres têm sido representadas como “escadas” de personagens masculinos, na maioria das vezes é necessário que aconteça algo extremamente ruim para personagem feminina, para que o personagem do homem possa crescer e amadurecer como herói. Grandes exemplos desses casos são: a morte da Gwen Stacy, o esquartejamento da Alex DeWitt, estupro da Bárbara Gordon. Não é necessário fazer isso com as personagens femininas, só para o “herói” se sentir culpado por não conseguir proteger quem ele ama, e usar essa dor e violência para se reerguer. Então chegou o momento de parar com essa perpetuação de mito de donzelas indefesas, e de mostrar que as mulheres são capazes de se protegerem, e protegerem aos homens também. E se você não acredita nessa possibilidade, problema é seu. Mas tenha em mente que mulheres são tão capazes quanto os homens, por mais que sejam menosprezadas, por exemplo, quando usam o termo “que nem mulherzinha” para quando um garoto é ruim em alguma coisa você “qualifica” ele como sendo “tão ruim quanto uma mulher”, ou quando você tenta elogiar a mulher e a compara com um homem... Em ambos os casos você coloca a mulher como um ser inferior ao homem. Porém, hoje nós temos personagens femininas que provam exatamente o contrário, quando você diz que “luta como uma menina”, “corre feito uma menina” isso é tomado como elogio já que temos personagens fortes nos representado como: Mulher-Maravilha, Kamala Khan, Rey, Jyn Erso, Hermione Granger, Katniss Everdeen e Gina Weasley dos livros, e por aí vai. E as meninas se sentem representadas, porque elas se veem nessas personagens e isso é incrível. Você se sentiria ofendido se alguém te falasse: “nossa você pula tão bem, quanto a Mulher-Maravilha”? Não, né? Então isso representa uma mudança na sua percepção, e isso é ótimo para todo mundo. Desde 2010 as mulheres vêm se tornando maioria, em diferentes nichos dentro da cultura pop. Então é obvio que esse aumento do consumo, faz com que a indústria crie mais produtos voltados para o público feminino. E nós somos tão exigentes quanto vocês, nós queremos mais representatividade e menos estereótipos. E o mercado de filmes de quadrinhos carece de personagens femininas fortes bem construídas. A maioria das personagens femininas nos filmes de quadrinhos são interesses românticos descartáveis, e closes de bunda. Vamos aos exemplos: Lois Lane é reduzida a apenas um interesse amoroso que está sempre associada ao Superman, sempre na situação de donzela em perigo. Christine em Doutor Estranho, é interesse romântico que existe só para garantir que o personagem principal é hétero. A Pepper Potts foi reduzida a um objeto de cena com qualidades, nos filmes do Homem de Ferro. A personagem Jane em Thor que é interesse romântico que tenta muito ser relevante, mas que acaba sempre no papel de donzela em perigo. Arlequina que é hipersexualizada, com vários closes de bunda, assim como a Viúva Negra e a Mulher-Gato e outro ponto em comum de ambas as personagens é a romantização dos abusos que sofreram. Feiticeira Escarlate é retratada como uma ninfeta, que só um homem experiente como o Visão – apesar de ter “nascido ontem” – é capaz de guia-la para encontrar a paz interior, e o controle dos seus poderes. Jean Grey reduzida a mero interesse romântico, centro de disputa entre Wolverine e Ciclope. Tempestade, mero objeto de cena. Mary Jane, apenas a obsessão amorosa do Peter, onde só ele é capaz de fazer com que ela se sinta feliz, e só ele é o cara certo para ela. Preciso desenhar mais? Por isso o filme da Mulher-Maravilha é tão necessário, e foi tão desejado, ela foge de todos esses arquétipos forçados e estereotipados. Ela é poderosa, corajosa, amorosa, empática, gentil e forte. Sem dúvidas um dos melhores filmes de quadrinhos já produzidos, e a melhor representação feminina nas telonas. Acredito que eu tenha deixado bem claro a forma como as mulheres são retratadas no universo das HQs, e acredito que nesse ponto você consiga perceber a importância da construção de personagens femininas fortes. Mas, se você acredita que tudo que eu acabei de dizer é bobeira, vulgo mimimimi, não tem problema o objetivo era apenas gerar uma reflexão, mesmo que momentânea, jamais a intenção foi mudar sua opinião.  E se você quiser trocar ideias, e debater de forma civilizada, estou sempre disponível para o diálogo. Agora vamos a crítica do filme da Mulher-Maravilha.

Coragem, força, justiça e amor

Vou começar essa crítica reforçando o coro que diz: o melhor filme de histórias em quadrinhos de todos os tempos. É claro que o longa apresenta alguns erros, mas a mensagem é objetiva, bem trabalhada e o filme entrega absolutamente tudo o que promete: diversão, ação, romance e claro fanservice. O enredo do longa tem como base Diana Prince relembrando suas origens depois que recebeu de presente a foto dela junto com o grupo que ela lutou durante a Primeira Guerra Mundial. Então o roteiro é basicamente ela revivendo desde seu   nascimento, na mitológica ilha de Themyscira, passando por seu amadurecimento como guerreira e, posteriormente como mulher e heroína. E todos esses momentos foram retratados com delicadeza, e profundidade que só a Patty Jenkins como diretora poderia levar às telonas. O filme, além de contar a origem da personagem, também aborda a toda a origem da mitologia das Amazonas e porque elas foram parar em Themyscira. Diana desde criança demonstra o grande desejo de treinar como as fortes guerreiras mesmo contra a vontade da mãe, Rainha Hipólita interpretada sabiamente por Connie Nielsen. Com determinação a grande determinação e curiosidade ela tem, ela acaba driblando as barreiras impostas pela Rainha e aprende tudo com a tia, Antíope, vivida pela atriz Robin Wright que, como todo mundo já disse, está magnifica, estupenda, esplêndida, maravilhosa, TOP, não existe adjetivos suficientes para descrever a Robin neste papel. Hipólita acaba descobrindo que a filha treina em segredo com a sua General, então ela ordena que Antíope a treine mais forte do que qualquer outra guerreira que ela já tenha treinado, e que consequentemente isso faça com que Diana se torne a melhor lutadora da ilha, tendo que aprender a ser melhor que a própria tia. Diana não sabe exatamente quem  ela é, existe muito mistério envolvendo sua origem, sua mãe Hipólita quer protege-la a todo custo, enquanto sua tia Antíope quer prepara-la para o futuro. E no final das contas Diana não tem nem ideia de qual é o seu destino no mundo, então ela segue seu coração, tenta fazer tudo aquilo que lhe parece certo e justo dentro dos preceitos e da moral que aprendeu com as guerreiras Amazonas. Então em um desses momentos de conflitos de querer saber quem ela realmente é, e saber até onde vai seus potenciais ela acaba salvando o piloto Steve Trevor (Chris Pine), que fugia dos inimigos alemães e foi parar por acidente em Themyscira, então acontece a primeira cena de batalha do filme, que te empolga, deixa arrepiado, e faz com que você chore. Após a batalha e do interrogatório do Steve, Diana decide acompanhá-lo ao mundo dos homens para lutar na Primeira Guerra Mundial – uma das únicas mudanças na origem das HQs, que se passa na Segunda Guerra – e salvar o mundo da ameaça do deus da guerra Ares. Nesse momento Diana demonstra que tem muito coração, tanto quanto tem garra e coragem. Ela enfrenta a própria mãe, e parte em busca de superar os desafios e conhecer sua verdadeira essência, mesmo quando duvida de si e da humanidade ao longo do filme, ela sempre encontra na coragem a força para conquistar a justiça através do amor. Gal Gadot consegue caminhar muito bem nas nuances de conflitos existenciais da personagem, e também no timing de comédia, nos momentos em que são exigidos. Uma das melhores piadas do filme acontece enquanto Diana e Steve estão em Themyscira, e enquanto viajam em direção a Londres. Chegando ao seu destino a Mulher-Maravilha se depara com uma cidade cinza, triste, castigada pela guerra. O filme se passa em 1918, e coma a chegada de Diana no velho mundo, nos deparamos com situações históricas que aconteceram na época. Durante a conversa da princesa das Amazonas, com a personagem a Etta James (Lucy Davis) ela questiona como as mulheres são capazes de lutar usando aquelas roupas, então Etta explica que as mulheres não se envolvem muito em brigas, a menos que seja para conquistar seus direitos ao voto, ficou subentendido, mas ela estava falando do movimento sufragista que nesse ano conquistou o direito ao voto feminino em Londres. Outro momento em que falam do papel da mulher no contexto da época é quando Diana entra na sala durante o conselho de guerra e os generais questiona o que ela faz lá, e que naquele espaço ela não tem “local de fala”. Outra cena importante é quando antes dela começar a traduzir os manuscritos da Doutora Veneno, um dos generais a menospreza por ser mulher. Logo depois de fazer a leitura dos escritos, os “senhores da guerra” decidem não fazer nada, então Diana basicamente diz a eles que se fossem tão corajosos quanto as mulheres de Themyscira eles estariam no fronte defendendo os indefesos, e não acovardados atrás de suas mesas e burocracias. Outro momento importante do filme é a cena de “Lugar Nenhum”, é um momento muito importante para trama, pois se trata do despertar da Mulher-Maravilha. É crucial para o desenvolvimento da Diana, enquanto super-heroína, além de passar a mensagem do feminismo com maior sutileza que é durante a cena da batalha, onde todos trabalham em equipe em mesma condição de igualdade para vencer o inimigo, e no ápice da cena quando chega a batalha na igreja quando seus companheiros de batalha se juntam, para impulsionar a Mulher-Maravilha a chegar até o topo para derrubar o inimigo é aí que está o discurso feminista do filme: quando se luta com determinação, companheirismo e todos se unem em prol de um único objetivo sem se julgar melhor ou superior aos demais você consegue vencer distancias. É nessa cena que eu encerro esta crítica, pois nada que eu diga a partir daqui fará justiça a grandiosidade do filme. Sobre as falhas no roteiro duas coisas que incomodam um pouco, primeiro é o fato de deixarem subentendido o romance entre Menalipe, a amazona vivida por Lisa Loven Kongsli, com Antíope, eles deveriam ter abordado as personagens como um casal de maneira mais aberta, traria mais representatividade ao filme. E o segundo é a cena do diálogo com o vilão do filme é um pouco parada, e tem um corte de cena bem forçado para que ela vá até telhado buscar sua espada antes de continuar dando segmento a sequência. Quanto aos fanservices tudo foi feito dentro da medida certa, a forma como a origem da personagem foi retratada, a cena de alivio cômico sobre “o que é uma secretária”, fazendo uma alusão a época que nos quadrinhos ela foi secretária da Liga da Justiça. O fato do amor está sempre presente no discurso da Mulher-Maravilha, reforçando a essência em que William Marston concebeu a personagem. Além é claro da cena do sorvete, que aconteceu nas HQs e na animação da Liga da Justiça – Guerra. O filme se desenvolve tão bem, que você consegue perceber quando são as referências da diretora Patty Jenkis e quando são as intervenções do Zack Snyder e do Geoff Johns, e isso faz o filme mais incrível ainda. Se o Batman é o herói que Gotham precisa, Mulher-Maravilha é a heroína que o mundo precisa, e demorou para que o “mundo” reconhecesse isso, porém como dizia o velho ditado: antes tarde, do que nunca. Que venha a Liga da Justiça! Ana Amélia Ribeiro é jornalista e fã incondicional de quadrinhos. DCnauta, Marvete e muito apaixonada pela Turma da Mônica.

“É hora de mais Montoros”: Paulo Mercadante e a nossa tradição conciliatória – Parte 2

Dois artigos de Fernando Henrique Cardoso, um de 2016 e outro de 2017, “As responsabilidades históricas” e “A história ensina”, respectivamente, se contrastados um com o outro, podem fornecer chaves interpretativas sobre o futuro da atual situação crítica do país

O rap e a polarização política no Brasil

Confundir precipitadamente a resistência cultural da periferia com um campo que poucas vezes atende ou atenta para suas demandas seria não só um erro analítico, mas também político considerável

Entrevista com Ana Caroline Campagnolo

“Meu processo contra minha ex-orientadora abre a perspectiva de uma jurisprudência. Espero que a partir dele outros estudantes que são prejudicados por abusos semelhantes possam romper o silêncio, para que a partir daí comece a se formar um cenário mais livre, onde a pluralidade de ideias seja de fato uma realidade”

Tradução de poemas de Miguel D’Ors

O leitor perceberá que cometi algumas liberdades. Adaptei, suprimi, refiz a métrica. As poesias traduzidas pertencem aos seguintes livros: “Hacia outra luz más pura”, e “El misterio de la felicidad”

No dia em que começa turnê na América do Norte, Boogarins lança disco surpresa

Banda goiana divulgou na tarde desta quarta-feira (7/6) o álbum Lá Vem a Morte, com oito músicas, sete delas inéditas, em 27 minutos e 11 segundos

A arqueologia da memória em “Natal de Herodes”

Livro de Wladimir Saldanha sustenta-se sobre uma interessante combinação de gêneros: além do lírico, que é a essência da obra, temos, ainda, procedimentos narrativos, elementos propriamente épicos e uma estruturação dramática do conjunto [caption id="attachment_96640" align="aligncenter" width="620"] Wladimir Saldanha. Ilustração: Felipe Stefani[/caption] Emmanuel Santiago Especial para o Jornal Opção Natal de Herodes (Mondrongo, 2017) é o quarto livro de poesia de Wladimir Saldanha. Nele, referências históricas e intertextuais se misturam ao drama pessoal/familiar de um eu lírico marcado pela ausência paterna, o que constitui o eixo em torno do qual se integram rememoração e reminiscência (as duas dimensões da memória). Temos, então, um eu lírico que procura no metafísico, na Comunhão com a figura de Cristo, uma via de redenção para seu dilaceramento interior. Contudo, engana-se quem pense tratar-se de uma obra apologética, de viés proselitista, pois os poemas, além de ser a elaboração estética de uma experiência ao mesmo tempo pessoal e com aspirações ao universal, não se negam às contradições de uma fé sincera e, por isso mesmo, às vezes vacilante e algo irreverente. Não só por conta disso, mas também pelo manejo habilidoso de diversas formas poéticas (o que inclui tanto o verso metrificado quanto o livre), Natal de Herodes pode ser colocado em linha de sucessão com Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima, um dos momentos mais altos da poesia brasileira. O livro possui duas partes, “Tempo do Advento” e “Tempo do Natal”, cada uma dividida em três seções. Na primeira delas, há um movimento centrífugo da vivência particular em direção à tradição, em que as lembranças pessoais evocam imagens do passado histórico e do campo artístico. A primeira seção, “Registro dos enjeitados”, pode ser descrita como uma empreitada do eu lírico em reconstituir a própria história, costurando fragmentos de sua infância, marcada pela falta da figura paterna. No último poema da seção, “Os bens do ausente”, entra em cena um recurso amplamente utilizado ao longo do livro, o da dramatização do conflito interior, em que o eu lírico assume uma personagem, máscara dramática, para representar suas vivências, conforme os já manjados versos daquele autor português que definia a si mesmo como “poeta dramático”: “O poeta é um fingidor./ Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente”. Em vez de destacar o caráter fictício da fabulação poética, chamo atenção ao “A dor que deveras sente”, à vivência pessoal que serve de referente ao trabalho ficcional. Em “Os bens do ausente”, o conflito com o pai se exprime num paralelo com a história do parricida Édipo: Porque andas tempo inteiro, tenho, pai, os pés inchados. Salvou-me que pegureiro, a mim seu filho, ou de Laios? Salvou-me; após me daria a outro, este a um Políbio, de quem, chamando-me filho, fujo eu sem profecia, mas já por medo da palavra pai, que me pilhastes: tua ausência me escalavra os signos, torna-os trastes. Aqui, a máscara é vivida como símile, como paralelo. Porém, ao longo da obra, ela vai adquirindo uma natureza metafórica, fundindo-se à identidade do “eu lírico vivencial”, digamos assim, que encena seu drama particular diante do leitor. Na segunda seção da primeira parte, “As paternidades”, procura-se reinventar a história pessoal, lançando mão de referências históricas, artísticas e, sobretudo, literárias (ou, num outro sentido, busca-se ressignificar aquela por meio destas) num diálogo cerrado com a tradição. Trata-se de um mosaico intertextual por meio do qual se pretende recompor a imagem do pai ausente, um esforço de, no âmbito da ficção — revisitando a vida e a obra de escritores como Rilke, Borges, João Cabral, Verlaine, entre outros —, recriar o enredo do drama pessoal/familiar que é o fio condutor do livro. Um ponto interessante é a tentativa de suprir a carência da figura paterna, substituindo-a por artistas, como se vê em “Sufrágio por três pais”, série de poemas dedicados a Jorge Amado, Lêdo Ivo e Tom Jobim. Já na terceira seção, “Palimpsesto de Cesareia”, assiste-se a um verdadeiro zigue-zague entre fragmentos da história antiga, ligados ao contexto do surgimento do cristianismo, e eventos biográficos. Assistimos a uma arqueologia da memória, em que acontecimentos, paisagens e objetos do passado ganham nova significação à luz das vivências de uma perspectiva contemporânea que, aliás, identifica ressonâncias épicas e míticas em elementos do cotidiano. De acordo com as categorias do pensamento de Walter Benjamin no ensaio “O narrador”, estaríamos diante de uma convergência entre a dimensão individual da memória, que se constitui por meio das vivências do sujeito — a rememoração — e a dimensão coletiva, matéria da tradição e construída com base na experiência social — a reminiscência. Trata-se de procurar, na reminiscência, o significado existencial que escapa às vivências que o eu lírico recompõe com o trabalho da rememoração. É nesta parte que a dramatização do conflito interior começa a ser encenado por sua máscara preferencial: Herodes, suposto autor de três poemas que se passam por fragmentos textuais. Neles, o fantasma do idumeu que governou Israel como rei cliente sob domínio romano depara com as ruínas atuais da cidade de Cesareia, por ele construída. O que lhe chama atenção é a ausência da água que, no passado, era transportada pelos aquedutos. A água ausente, como fica claro na abertura do terceiro fragmento, é um símbolo da ausência paterna: Tive pai, mas o meu envenenaram e porque fui idumeu, o meu, negaram-se sempre alguma coisa, por isso o apreço pela falta. Começamos a vislumbrar, então, a importância da máscara de Herodes. Ela representa, de diferentes maneiras, a condição do “filho prólogo” (que é o título do poema que abre o volume). O filho prólogo é aquele preterido pelo pai em nome de um segundo filho, de outra mãe, devidamente reconhecido. Já o órfão Herodes, por ser idumeu e, portanto, de linhagem ilegítima, vive assombrado com a possibilidade de que sua coroa lhe seja usurpada por algum pretendente de maior legitimidade, como seu cunhado Aristóbulo (mote do poema “O afogamento de Aristóbulo”). A correspondência entre o filho prólogo e Herodes é explicitada nos seguintes versos de tal poema, em que se verifica o já citado zigue-zague entre vivência contemporânea e história antiga: [caption id="attachment_96641" align="alignleft" width="300"] "Natal de Herodes", Mondrongo, 2017[/caption] (...) Como de brincadeira, insuportavelmente, nos jardins, piscinas infláveis ou de armação, brincam Aristóbulos com seus pais e Herodes sem linhagem têm de assistir à ablução risonha, sem exprobar! (...) O título “Natal de Herodes”, portanto, sugere a ideia de um monarca encolhido à sombra do futuro “rei dos judeus” que está para nascer (ideia presente no poema “Pelo Rei Herodes”, da segunda parte do livro), o que corresponderia à situação do primogênito bastardo preterido pelo rebento mais novo de uma relação legítima do pai. Esse jogo de máscaras por meio do qual se representa o drama pessoal/familiar é metalinguisticamente desvelado em “Hipólito, Teramenos”, em que o eu lírico se traveste ora de Hipólito (personagem de uma tragédia euripidiana, retomada por Racine em Fedra), ora de Ícaro: (...) meu Teramenos amigo! Perdoa se oscilo eu entre  Hipólito e Ícaro: ambos morrem pelo Egeu e os deuses pelo que digo. Neste ponto, já é possível perceber que as diversas máscaras que o eu lírico assume são alegorias que visam a representar o drama da ausência paterna. T. S. Eliot, no ensaio “Talento individual e tradição”, destaca que a poesia “não é a expressão da personalidade, mas uma fuga da personalidade”, pois se trata de uma combinação de referências literárias e extraliterárias — por vezes estranhas à vivência particular do autor — que, à força do processo compositivo, integram-se na objetividade do poema, artefato linguístico. Na criação poética, em suma, há um processo de alienação da vivência, que se transforma em algo qualitativamente distinto. Para tanto, é preciso que o poeta abandone a própria personalidade, tornando-se uma caixa de ressonância das palavras dos autores mortos que constituem a tradição literária. Saldanha, contudo, obtém uma sutil alquimia: apropria-se das referências da tradição e lhes empresta um significado novo, que, mesmo não sendo o da vivência real do autor, é sua reinvenção, sua elaboração estética; ele faz, da tradição, matéria íntima. É isso o que se pode chamar de intimismo universal: a intimidade do autor se infiltra na universalidade dos arquétipos literários, atualizando-os e os atraindo à realidade contemporânea. Se “Tempo do Advento” se caracteriza por um movimento centrífugo da vivência particular para a tradição, em “Tempo de Natal”, a segunda parte do livro, temos o movimento inverso, centrípeto. Em sua primeira seção, “Natal de Herodes”, seguido de um “Calvário de Herodes”, as máscaras dramáticas do eu lírico, interpretando personagens bíblicas, fazem-se presentes de poema a poema: Reis Magos, Herodes, Maria, José e Zacarias. Ao final da seção, em “Calvário de Herodes”, vemos o rei consumido pela culpa de ter condenado à morte Mariana, sua amada esposa, por desconfiar que ela tramava contra ele. O mesmo movimento centrípeto, em que as referências bíblicas e históricas se remetem à vivência particular, constata-se na terceira seção, “Responsório do silêncio”. Na segunda seção, entretanto — “Desdobramentos do Natal”—, novamente o vetor da fabulação poética parte da vivência contemporânea do eu lírico, envolvendo, por vezes, acontecimentos triviais relacionados ao feriado natalino. Atravessa-a por inteiro a esperança de, por meio da Comunhão com uma criança divina prestes a nascer, alcançar a redenção do sentimento de incompletude gerado pela ausência paterna, como se percebe nitidamente nos dois poemas de “Se não tenho pai, se ela usa túnica”. Em “Responsório do silêncio”, mais uma vez, referências históricas e mitológicas são convidadas a participar do drama do pai ausente: o Caim ciumento, assassino do irmão preferido por Deus; o Isaac que tem “o cutelo do pai ausente contra a garganta”; mais Herodes, Judas, Pedro, Zaqueu etc. Um dos poemas mais interessantes (na verdade, uma coroa aberta de 10 sonetilhos em redondilha maior) é “Dois reis” em que, num procedimento dialético ao gosto de João Cabral, são comparadas as figuras de Jesus e Édipo. Já em “A pergunta”, o eu lírico entoa o Salmo 22, repetido por Jesus à cruz, impregnando-o de reverberações pessoais: Eu não salmodio, não entoo Davi. Eu pergunto ao pai ausente em meus botões, por que me abandonaste? POR QUE ME ABANDONASTE? (...) Na segunda parte de “Natal de Herodes”, é perceptível a iminência do nascimento de Jesus como uma promessa de redenção do eu lírico, existencialmente mutilado pela falta do pai. Por meio da Comunhão com Cristo — e, num certo sentido, também com a tradição —, espera-se atingir um estado de plenitude que a vivência, destituída de um significado intrínseco, não possibilita, fazendo com que seja necessário buscar algum significado no âmbito da cultura e no metafísico. Entretanto, o enredo desse drama é mais complexo e ambíguo que isso. Cristo não é apenas esperança, promessa de redenção. Para Herodes, por exemplo, espécie de alter ego do autor (como fica claro na nota de agradecimento ao final do livro, assinado por um “Eu, El-Rei Herodes”), Jesus significa a ameaça de um potencial usurpador. Figura polissêmica, o Filho assume diversos significados, inclusive o de substituto ao pai ausente (faceta semântica que predomina ao longo do livro). É preciso reconhecer, porém, que, mesmo em sua função redentora, esse Cristo costuma se fazer presente sobretudo como ausência, ou melhor dizendo, como latência. Assim, a identidade do Filho com o pai ausente estende-se também à imagem daquele que não está, de lacuna na personalidade do eu lírico. Em “Por José (I)”: Então ser pai é esta ausência ao lado. Imensa ausência, maior até do que a primeira que lhe impusera: Pai daquele de quem é quem ele era. Em “Por Maria (II)”, por sua vez: O primeiro aniversário sem Ele é este vazio de rotunda sem edícula este frio de Eternidade esta verdade na canícula Natal de Herodes não apresenta uma história de redenção, como no caso de A divina comédia de Dante, monumental alegoria do reencontro da alma perdida (por metonímia, a humanidade) com o Criador; trata-se, na verdade, do drama de uma procura e — por que não? — também de uma dramatização de uma neurose obsedante. O Natal segue-se ao Advento, nasce o Messias, mas o vazio, que tem o peso de todas as possibilidades, não se dissipa. Estamos diante de uma trajetória que vai da mágoa à esperança, verdadeira sublimação de profundas questões psicológicas. O livro de Wladimir Saldanha sustenta-se sobre uma interessante combinação de gêneros: além do lírico, que é a essência da obra, temos, ainda, procedimentos narrativos, elementos propriamente épicos e uma estruturação dramática do conjunto, como se vê pelas diversas máscaras que o eu lírico assume. Como se não bastasse a grande qualidade poética de Natal de Herodes e o virtuosismo de seu autor, é preciso dizer que o livro em si é uma atração à parte graças às ilustrações de Felipe Stefani, com seu vertiginoso traço que, ao mesmo tempo em que empresta diafaneidade às figuras, destaca o aspecto material do traço, rabisco que se concentra numa forma inteligível; ambiguidade entre o material e seu conteúdo ideal, que dialoga muito bem com a tortuosa busca metafísica que os poemas expressam. Emmanuel Santiago é poeta, tradutor e professor de literatura. __________________ Referências bibliográficas BENJAMIN, Walter. “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. 7ª ed. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1994, pp. 197-221. ELIOT, T. S. “Talento individual e tradição”. In: Ensaios. Tradução Ivan Junqueira. São Paulo: Art, 1989, pp. 37-48. SALDANHA, Wladimir. Natal de Herodes. Itabuna: Mondrongo, 2016.  

Breaking Bad e A Poética de Aristóteles

A sofisticação dos programas de TV é um fenômeno relativamente novo; série tomando qualidade de cinema. Breaking Bad é a primeira grande peça desse novo caminho da indústria do entretenimento Já estudei muito tragédia grega. Dois livros são essenciais neste tema: "A Origem da Tragédia", do Nietzsche, onde há uma análise sob o ponto de vista filosófico e religioso; e "Poética", do Aristóteles, onde se analisa os caracteres técnicos da construção do drama, principalmente na obra de Sófocles. Os poetas trágicos não criavam argumento, que é o mote sobre o qual se desenvolve a ação. Faziam seus textos sempre a partir dos mesmos mitos tradicionais, e as competições eram sobre quem desenvolvia com mais habilidade as variações de ação sobre os argumentos já conhecidos do público. Criar argumento é perigoso, pois há grande chance de ser artificial e, portanto, irrelevante. As boas narrativas em geral trabalham motes clássicos, como o amor, o ciúme, dilemas morais, as guerras, a vingança. Pra pegar um exemplo pop, Tarantino fez dois grandes filmes a partir de argumentos muito básicos: Kill Bill (vingança) e Bastardos Inglórios (II Guerra). Breaking Bad conseguiu a façanha de um argumento modernoso e inovador na aparência, além de curioso (um professor de química que, ao se descobrir com câncer de pulmão, começa a fabricar metanfetamina), e, no fundo, clássico: um homem encarando a própria mortalidade. Aqui entra também um dilema "dostoievskiano" sobre se, perante a mortalidade e a perspectiva de desaparecimento, vale a pena jogar pelas regras. Essa pergunta atormenta Walter White e os consequentes dramas de consciência, justificações e tentativas de redenção são muito bem trabalhados. Quanto à estrutura narrativa, Aristóteles dizia que dois recursos são essenciais pra provocar a "catarse" no público: o reconhecimento e um desenlace inesperado. O "reconhecimento" se dá quando um personagem conhecido da trama revela sua verdadeira identidade, para a surpresa de todos. A identidade verdadeira deve ser relevante. Um exemplo famoso na cultura pop é o "Luke, i`m your father", do Star Wars. Em Breaking Bad há dois reconhecimentos. O primeiro no episódio "Mandala", quando Walt senta na mesinha dos Pollos Hermanos com Gus Fring, que, até então fingindo não conhecê-lo e ser um mero dono de fast food, de repente muda a expressão e solta o "I don't think we`re alike at all, Mr. White. Your partner was late. And he was high". O segundo é quando Hank acha o "Leaves of Grass" no banheiro de Walt e percebe que ele é, na verdade, Heinsenberg. Neste ponto há também o que Aristóteles chama de "desenlace", o fato que desata o nó da trama, no caso, como Heinsenberg seria descoberto e pego pela DEA. E Gilligan acha uma solução perfeita, verossímil, a partir de um elemento casual presente na trama, sem recorrer ao que chamamos de "Deus ex machina", uma solução mirabolante vinda de fora dos fatos já fornecidos. Solução "ex machina" seria, por exemplo, se Hank sonhasse que Walt era Heisenberg e isso desencadeasse sua investigação e perseguição. Enfim, isso é o básico, eu poderia escrever um livro sobre cada ponto do Breaking Bad. Não existe nenhuma série à altura ainda, apesar de eu nunca ter visto Família Soprano, que dizem ser do mesmo patamar. A sofisticação dos programas de TV é um fenômeno relativamente novo; série tomando qualidade de cinema. E, pra mim, Breaking Bad é a primeira grande peça desse novo caminho da indústria do entretenimento.

Contos de ficção científica à brasileira – Parte 2

Sequência da série iniciada em 21 de maio, sob organização de Luiz Bras, Sérgio Tavares e Anderson Fonseca, traz mais dois contos dedicados a dois escritores. Desta vez, os homenageados são André Carneiro e William Gibson   [caption id="attachment_96507" align="alignleft" width="300"] Ilustração: Bianca Lana[/caption]

Revolução do zíper

Homenagem a André Carneiro Luiz Bras Especial para o Jornal Opção   No sermão dominical, repetiu nosso abençoado presidente: {No princípio era o caos opaco e o Plástico Transparente. E o plastrans, desafiando o caos opaco, gerou as galáxias, o sistema solar, a Terra, o homem e todos os animais. E o homem, soberano na Terra, criou o Estado Único, o triunfo espiritual, social e político do plastrans. } {No mundo ideal tudo é transparente: cidades de plastrans acolhem amorosamente cidadãos de plastrans. Na sociedade perfeita a liberdade e a felicidade são sempre obedientes, e a obediência é sempre transparente. } {Mas o caos opaco, avesso à beleza e à obediência, não descansa… Sombras insidiosas esperam pacientemente o melhor momento pra turvar a transparência do cosmo e do homem. A sagrada missão do Estado Único é proteger a qualquer preço o radiante facho de Plástico Transparente que habita cada um de nós.} Fechar as bocas, todas as bocas, o poder central e a felicidade geral da nação exigem bocas fechadas, interromper também os olhos e os ouvidos, que cidadão algum fale, veja e ouça o que não deve ser falado-visto-ouvido. {Que estropício espalhou que neste mundo haveria pão e circo, bem-estar e dignidade pra todos?} “Quando falta material hospitalar, quando faltam leitos e médicos, o cidadão reclama demais, pára o trânsito, queima pneus, um horror.” “A repressão policial já não está dando conta da situação, muito menos a repressão religiosa, a censura artística, científica.” {Que estafermo propagou a noção estapafúrdia de liberdade-igualdade-solidariedade?} “Quando falta material escolar, quando faltam salas de aula e professores, o cidadão também reclama demais, volta a parar o trânsito, queimar pneus, um horror.” “A repressão do jornalismo também não está dando conta da situação, muito menos a repressão dos costumes, a pressão da tradição, da moral.” “Basta de blablabá. O presidente já avisou que não tolerará outro fracasso. Chega desse chove não molha. Sua excelência quer detalhes da solução final. Tragam o inventor.” {Que palerma avisou aos enxadristas que peões e cavalos merecem os mesmos privilégios da nobreza e da realeza?} Entra o inventor, escoltado-arrastado por dois agentes do serviço secreto. “Senhor Gideão, após muito deliberar, decidimos patrocinar seu projeto.” “Mas eu não pedi nada…” “Esta sagrada comissão e nosso abençoado presidente entendemos que sua invenção encerra um alto potencial civilizatório.” “Mas eu não pedi…” “Trata-se, como o senhor sabe, de uma questão de segurança nacional.” “Mas eu não…” “É verdade que dinheiro não há, vivemos tempos difíceis, a balança comercial, a previdência social, o déficit no orçamento, o senhor compreende.” “Mas eu…” “Tudo o que podemos oferecer ao senhor é a honra de prestar um grande serviço ao país e a perpétua satisfação do dever cumprido.” “Mas…” “Muito melhor que a prisão perpétua, o senhor não concorda?” {Gostar de poesia é fácil, quero ver gostar dos poetas.} O inventor é convidado a assinar o contrato de cessão total do direito de produção e difusão de sua admirável invenção, sem ônus para o Estado. {Gostar de ciência é fácil, quero ver gostar dos cientistas.} O inventor recusa-se a assinar. Os dois agentes do serviço secreto socam seu rosto, seu abdome. O inventor recusa-se a assinar. Os dois agentes do serviço secreto arrancam seus dentes, suas unhas. {Gostar de religião é fácil, quero ver gostar dos religiosos.} O inventor recusa-se a assinar. Os dois agentes do serviço secreto enfiam sua cabeça numa tina de água. O inventor recusa-se a assinar. Os dois agentes do serviço secreto introduzem um cabo de vassoura em seu ânus, dão choque em seus testículos. {Gostar de política é fácil, quero ver gostar dos políticos.} [relacionadas artigos=" 95058 "] O inventor recusa-se a assinar. O chefe da comissão ameaça prender a mulher e as filhas do inventor, que finalmente assina o contrato. Acima das manchas de sangue surge uma garrafa de champanha e muitas taças. Brindam à saúde do abençoado presidente de nossa gloriosa social-sensacional-democracia. {Riem a bandeiras despregadas.} Os dois agentes do serviço secreto escoltam-arrastam o inventor pra fora do salão. {O fio de Ariadne esta noite é vermelho.} Resolvidos os detalhes contratuais, a invenção de Gideão logo se torna o mais precioso presente de nosso abençoado presidente a seu amado eleitorado. Cirurgiões de jaleco corporativo vão de casa em casa suturando a solução final primeiro em crianças e jovens bastante cooperativos, depois em adultos agora nada conspirativos. Fechar as bocas, todas as bocas, o poder central e a felicidade geral da nação exigem bocas fechadas, interromper também os olhos e os ouvidos, que cidadão algum fale, veja e ouça o que não deve ser falado-visto-ouvido. É claro que o cidadão pode escolher a cor e a textura das fitas de tecido, é claro que o cidadão pode escolher o design e o metal do cursor e do puxador, dos dentes e da parada. Afinal vivemos numa gloriosa social-sensacional-democracia, esqueceram que nosso lema é ordem, liberdade e progresso? {Ah, que lindo de admirar, mais ainda de fotografar e filmar, boca-olhos-ouvidos fechadinhos, ah, que lindo, Arlindo, a população sem voz-visão-audição zanzando por avenidas-escolas-estádios sem ódios, por labirintos enfim pacificados.} F I M Fim o caralho, a cabaça, ó meus irmãos, que a revolução está só começando, ride ridentes, sorride sorridentes, quem manda nesta História sou eu, se a realidade política contradiz a fantasia poética, pior pra realidade política, neste espaço eu faço e desfaço, fim a cabaça, o caralho, ó minhas irmãs, contra o mal-mau eu convoco o bem-bom, estão percebendo o tremor de terra, a dança da pajelança-criança, ride ridentes, sorride sorridentes, do fundo do mato-virgem vem Macunaíma, herói de nossa gente, trazendo a pandemia-utopia, rejeitando o voto e o serviço militar obrigatórios, levando ao colapso o Estado centralizado, do fundo do mato-virgem chegam o curupira e o mapinguari, vêm abrir as bocas, todas as bocas, também os olhos e os ouvidos, pra que todos falem, vejam e ouçam o que deve ser falado-visto-ouvido, ride ridentes, sorride sorridentes, a liberdade levanta voo, o vento espalha nosso delírio, acaricia nossa lucidez, que reluz, tremeluz, feliz, chega de ladrões, chega de usurpadores, não existem homens nobres por isso livres, existem homens livres por isso nobres, quem manda nesta História sou eu, então fecho, encerro, reverbero, com alegria, alegria, carnavalizando o mal-mau europeu, convocando o bem-bom tropical, a propriedade particular é pornográfica, a propriedade pública é erótica, o curupira e o mapinguari querem menos Pornos e mais Eros, trazendo a pandemia-anarquia vem Macunaíma, vem no centro do rodamoinho, transferindo a solução final pra botas e calças e jaquetas e quinquilharias outras, fim o caralho, a cabaça, ó meus irmãos, vejam só: o herói de nossa gente liberta o inventor e prende o presidente, os ministros, os assessores e os agentes do serviço secreto, enfia todas as autoridades neste cárcere bidimensional chamado papel, nesta máquina chamada livro, que é pra jamais voltarem a azucrinar a nossa paciência, que é pra jamais voltarem a nos pentelhar sem fiscalização, que a revolução está só começando e quem manda nesta História sou eu. Luiz Bras é crítico literário e escritor. *** [caption id="attachment_96508" align="alignleft" width="300"] Ilustração: Bianca Lana[/caption]

De códigos genéticos e pães franceses

Homenagem a William Gibson Santiago Santos Especial para o Jornal Opção A lembrança da turbulência do voo ainda irritava o estômago sensível de Nilesh enquanto seguia Manu pelas vielas do Coophamil. Fome, a mãe sagrada de todas as necessidades. Fome de vida, no caso, uma vida de rei em Singapura desperdiçada pelo equilíbrio mal calculado entre blackjack, puteiros e uísque. A Louva-Deus Sagrado o colocou pra correr sem muito mais que a roupa do corpo e os dentes na boca. Antes da fuga, uma parada no laboratório da Myrage, onde gastou a maior parte dos últimos 12 anos, para uma série de injeções no próprio corpo e uma maleta com os últimos protótipos da pesquisa. A reescrita CRISPR teve como efeito colateral apenas a sensibilização aguda do seu estômago, o que explicava por que nos últimos quatro dias nada parava dentro dele. Por outro lado, seu código genético já não era mais o mesmo, nem seu suor, nem suas digitais, nem suas pupilas, o que lhe permitia usar a lente de realidade aumentada sobre elas, conectando à rede sem se preocupar com os escaneamentos que a Myrage exigiria dos governos e agências de inteligência quando descobrisse que seu bioquímico mais cobiçado havia desaparecido com uma maleta de propriedade roubada. − Oi, sou a Manu. Me pediram pra te buscar − ela disse, em inglês. Aguardava sua chegada no trevo da entrada do Coophamil, onde o táxi do aeroporto o deixou. Logo adentraram a configuração de ruas com tendas e barracas onipresentes sobre o asfalto quebrado, carcaças de carros transformados em estufas, gambiarras elétricas nos postes irrigando casas e prédios pequenos com fios esticados, uma multidão colorida e acalorada de um lado pro outro. Seu prometido refúgio. A Djorúbo, uma organização ainda desconhecida, recrutava especialistas dos mais diversos campos. Não a escolheria como porto seguro contra a caçada da Myrage não fosse por Harini, uma antiga amiga cientista da própria Myrage. Estava instalada em Cuiabá há alguns meses e fez a ponte entre Nilesh e a Djorúbo, interessada na tecnologia CRISPR. Manu seguiu até topar com uma escadaria de degraus lascados que dava em um corredor que parecia escavado na terra, com várias portas. Nilesh apertou o indicador com força no polegar, acessando o menu de realidade aumentada em seu campo de visão, sobreposto ao que enxergava, e o localizador de GPS: pensão Pequi Roído, dizia a legenda ao lado do seu ponto no mapa translúcido. Entraram em uma das portas. Harini estava sentada na cama. Ela o abraçou e conversou com ele em malaio, o que o deixou mais confortável. Manu aguardou até que terminassem a conversa e os guiou pelo corredor até outra porta. Dentro, um homem de rastafári o cumprimentou em um inglês de dicção perfeita, com sotaque jamaicano. Estendeu-lhe a mão. − Seja bem-vindo a Cuiabá, doutor Suryavanshi. Sou Alek e falo em nome de Butau-Curi-Répa, que não pôde estar presente. Temos um apartamento pronto pro senhor, próximo à residência de Harini. Sei que deve estar exausto da viagem. Manu vai levá-lo até lá. Eu queria cumprimentá-lo pessoalmente. Amanhã conversaremos sobre os pormenores da sua colaboração. Nilesh agradeceu e voltou a seguir Manu pelo bairro, com Harini ao lado. O Coophamil seria uma casa bastante diferente da sua querida Singapura, expoente tecnológica do mundo pós-névoa; Cuiabá era capital da maior região exportadora de commodities das Américas e seguia a cartilha urbana do novo capitalismo extrativista: periferias de condomínios ricos ultrafechados e um centro pobre. Estava no centro. Chegaram a um prédio de dois andares e subiram a escadaria. Manu abriu um dos apartamentos. Do lado interno da porta, reforços na madeira e vários trincos de combinação. As janelas tinham o mesmo tipo de tranca. Nilesh largou a maleta em uma cama de solteiro arrumada. O lugar estava todo mobiliado, pronto para morar. Manu abriu um armário cheio de roupas. − Compramos com base nas suas preferências. Espero que sirvam. A geladeira também está cheia. Pode liberar o meu acesso? Manuela 7043V − ela tocou em algo no ar e empurrou na sua direção. No campo de visão de Nilesh apareceu um mapa de imagem de satélite cheio de pontos de referência com legendas ocultas. Eram os arredores do prédio. − A vizinhança, com recomendações de lugares para comer ou beber algo, se quiser. Enquanto estiver no bairro, não há problema em circular. É claro que recomendamos cautela. Mas sei que o senhor está ciente disso. Ela disse que alguém entraria em contato no dia seguinte e saiu. Nilesh ficou à sós com Harini. Ela o abraçou novamente. Ele se deixou abraçar, depois se deixou largar no piso do banheiro sob o chuveiro gelado enquanto ela fazia café na cozinha. Esfregou o corpo todo três vezes. Fez a barba com uma gilette nova na pia. Quando saiu, ela o esperava na mesa, um saco de padaria aberto. − Pão francês − ela disse −, que é o pão brasileiro, na verdade. Acho que você vai gostar. Comendo um sanduíche, falou com ela sobre seus últimos dias em Singapura e sobre os avanços na pesquisa. Os nanocomponentes que trazia na maleta eram um estoque experimental de CRISPR, nucleotídeos capazes de editar linhas do genoma humano, como os que injetou no próprio corpo. Por enquanto as alterações eram singelas, mas já podiam curar certas doenças e alterar assinaturas corporais. Faltava expandir suas possibilidades. As apostas em Singapura eram de que a tecnologia se tornaria comerciável em até dez anos. E ali estavam os caríssimos protótipos de pesquisa da Myrage. Harini foi embora depois do lanche para deixá-lo descansar. Nilesh sentou de frente pra janela do apartamento, observando a nova vista, o calor empapando as axilas. Vasculhou o armário da cozinha até achar o Old Parr 18 anos. Fizeram um bom trabalho de pesquisa. Encheu o copo, voltou a sentar. Do uísque não largaria. Dos puteiros, com muito esforço, talvez. O blackjack era um proibitivo. Um proibitivo contundente. Não queria ter que contar com a sorte pra achar outro refúgio e adicionar outro inimigo poderoso à lista. Bebeu, levantou e vomitou tudo. Deitou-se enfim para desfrutar do sono revigorante dos sobreviventes. Santiago Santos é escritor, tradutor e jornalista. Estreou em livro com a coletânea de contos Na eternidade sempre é domingo, lançada em 2016.  

Nova música do Foo Fighters traz muitas possíveis referências a filmes e outras bandas

Desde a manhã de quinta-feira (1º/6), fãs do grupo formado em Seattle se dividem na internet entre os que gostaram e os que acharam chata a canção Run

“Em política, até a raiva é combinada”: Paulo Mercadante e nossa tradição conciliatória – Parte 1

Teses do historiador, presentes em livros como “A Consciência Conservadora no Brasil”, são fundamentais para se entender a razão de nomes como o de Nelson Jobim e o de FHC serem aventados neste momento de crise institucional

Leitura de autores como o queniano Thiong’o ajudam a descolonizar nossa visão eurocêntrica

Resta em nossa educação um misto de preconceito e prepotência acerca do que é “cultura de qualidade” ou “cultura superior”. A resistência às literaturas africanas é reflexo dessa educação colonizada

Um ano após pausa, Caffeine Lullabies volta à ativa em shows ao lado da banda Chuva Negra

Quase 15 meses depois do show que parecia uma despedida, quinteto goiano anuncia volta, músicas novas, shows e a entrada de um novo guitarrista

O diretor de teatro Marcos Fayad está de volta ao rádio

[caption id="attachment_96205" align="alignleft" width="156"] Marcos Fayad[/caption] O diretor de teatro Marcos Fayad, que montou recentemente o espetáculo “Cerimônia Para Personagens Estranhos: Miniaturas Grostescas”, baseado em historietas do escritor russo Daniil Kharms, estreará na rádio Executiva FM, de Goiânia, com o programa “Indicador Cultural”.  Marcos produzia e apresentava este formato de programa, com o mesmo nome, na rádio CBN. Agora, na Executiva, o formato ganhará três inserções diárias. Em breve, o Opção Cultural divulgará os horários das pautas diárias do programa.