Contos de ficção científica à brasileira – Parte 2
04 junho 2017 às 09h20

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Sequência da série iniciada em 21 de maio, sob organização de Luiz Bras, Sérgio Tavares e Anderson Fonseca, traz mais dois contos dedicados a dois escritores. Desta vez, os homenageados são André Carneiro e William Gibson

Revolução do zíper
Homenagem a André Carneiro
Luiz Bras
Especial para o Jornal Opção
No sermão dominical, repetiu nosso abençoado presidente:
{No princípio era o caos opaco e o Plástico Transparente.
E o plastrans, desafiando o caos opaco, gerou as galáxias, o sistema solar, a Terra, o homem e todos os animais.
E o homem, soberano na Terra, criou o Estado Único, o triunfo espiritual, social e político do plastrans. }
{No mundo ideal tudo é transparente: cidades de plastrans acolhem amorosamente cidadãos de plastrans.
Na sociedade perfeita a liberdade e a felicidade são sempre obedientes, e a obediência é sempre transparente. }
{Mas o caos opaco, avesso à beleza e à obediência, não descansa…
Sombras insidiosas esperam pacientemente o melhor momento pra turvar a transparência do cosmo e do homem.
A sagrada missão do Estado Único é proteger a qualquer preço o radiante facho de Plástico Transparente que habita cada um de nós.}
Fechar as bocas, todas as bocas, o poder central e a felicidade geral da nação exigem bocas fechadas, interromper também os olhos e os ouvidos, que cidadão algum fale, veja e ouça o que não deve ser falado-visto-ouvido.
{Que estropício espalhou que neste mundo haveria pão e circo, bem-estar e dignidade pra todos?}
“Quando falta material hospitalar, quando faltam leitos e médicos, o cidadão reclama demais, pára o trânsito, queima pneus, um horror.”
“A repressão policial já não está dando conta da situação, muito menos a repressão religiosa, a censura artística, científica.”
{Que estafermo propagou a noção estapafúrdia de liberdade-igualdade-solidariedade?}
“Quando falta material escolar, quando faltam salas de aula e professores, o cidadão também reclama demais, volta a parar o trânsito, queimar pneus, um horror.”
“A repressão do jornalismo também não está dando conta da situação, muito menos a repressão dos costumes, a pressão da tradição, da moral.”
“Basta de blablabá. O presidente já avisou que não tolerará outro fracasso. Chega desse chove não molha. Sua excelência quer detalhes da solução final. Tragam o inventor.”
{Que palerma avisou aos enxadristas que peões e cavalos merecem os mesmos privilégios da nobreza e da realeza?}
Entra o inventor, escoltado-arrastado por dois agentes do serviço secreto.
“Senhor Gideão, após muito deliberar, decidimos patrocinar seu projeto.”
“Mas eu não pedi nada…”
“Esta sagrada comissão e nosso abençoado presidente entendemos que sua invenção encerra um alto potencial civilizatório.”
“Mas eu não pedi…”
“Trata-se, como o senhor sabe, de uma questão de segurança nacional.”
“Mas eu não…”
“É verdade que dinheiro não há, vivemos tempos difíceis, a balança comercial, a previdência social, o déficit no orçamento, o senhor compreende.”
“Mas eu…”
“Tudo o que podemos oferecer ao senhor é a honra de prestar um grande serviço ao país e a perpétua satisfação do dever cumprido.”
“Mas…”
“Muito melhor que a prisão perpétua, o senhor não concorda?”
{Gostar de poesia é fácil, quero ver gostar dos poetas.}
O inventor é convidado a assinar o contrato de cessão total do direito de produção e difusão de sua admirável invenção, sem ônus para o Estado.
{Gostar de ciência é fácil, quero ver gostar dos cientistas.}
O inventor recusa-se a assinar. Os dois agentes do serviço secreto socam seu rosto, seu abdome. O inventor recusa-se a assinar. Os dois agentes do serviço secreto arrancam seus dentes, suas unhas.
{Gostar de religião é fácil, quero ver gostar dos religiosos.}
O inventor recusa-se a assinar. Os dois agentes do serviço secreto enfiam sua cabeça numa tina de água. O inventor recusa-se a assinar. Os dois agentes do serviço secreto introduzem um cabo de vassoura em seu ânus, dão choque em seus testículos.
{Gostar de política é fácil, quero ver gostar dos políticos.}
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O inventor recusa-se a assinar. O chefe da comissão ameaça prender a mulher e as filhas do inventor, que finalmente assina o contrato. Acima das manchas de sangue surge uma garrafa de champanha e muitas taças. Brindam à saúde do abençoado presidente de nossa gloriosa social-sensacional-democracia.
{Riem a bandeiras despregadas.}
Os dois agentes do serviço secreto escoltam-arrastam o inventor pra fora do salão.
{O fio de Ariadne esta noite é vermelho.}
Resolvidos os detalhes contratuais, a invenção de Gideão logo se torna o mais precioso presente de nosso abençoado presidente a seu amado eleitorado.
Cirurgiões de jaleco corporativo vão de casa em casa suturando a solução final primeiro em crianças e jovens bastante cooperativos, depois em adultos agora nada conspirativos.
Fechar as bocas, todas as bocas, o poder central e a felicidade geral da nação exigem bocas fechadas, interromper também os olhos e os ouvidos, que cidadão algum fale, veja e ouça o que não deve ser falado-visto-ouvido.
É claro que o cidadão pode escolher a cor e a textura das fitas de tecido, é claro que o cidadão pode escolher o design e o metal do cursor e do puxador, dos dentes e da parada. Afinal vivemos numa gloriosa social-sensacional-democracia, esqueceram que nosso lema é ordem, liberdade e progresso?
{Ah, que lindo de admirar, mais ainda de fotografar e filmar, boca-olhos-ouvidos fechadinhos, ah, que lindo, Arlindo, a população sem voz-visão-audição zanzando por avenidas-escolas-estádios sem ódios, por labirintos enfim pacificados.}
F I M
Fim o caralho, a cabaça, ó meus irmãos, que a revolução está só começando, ride ridentes, sorride sorridentes, quem manda nesta História sou eu, se a realidade política contradiz a fantasia poética, pior pra realidade política, neste espaço eu faço e desfaço, fim a cabaça, o caralho, ó minhas irmãs, contra o mal-mau eu convoco o bem-bom, estão percebendo o tremor de terra, a dança da pajelança-criança, ride ridentes, sorride sorridentes, do fundo do mato-virgem vem Macunaíma, herói de nossa gente, trazendo a pandemia-utopia, rejeitando o voto e o serviço militar obrigatórios, levando ao colapso o Estado centralizado, do fundo do mato-virgem chegam o curupira e o mapinguari, vêm abrir as bocas, todas as bocas, também os olhos e os ouvidos, pra que todos falem, vejam e ouçam o que deve ser falado-visto-ouvido, ride ridentes, sorride sorridentes, a liberdade levanta voo, o vento espalha nosso delírio, acaricia nossa lucidez, que reluz, tremeluz, feliz, chega de ladrões, chega de usurpadores, não existem homens nobres por isso livres, existem homens livres por isso nobres, quem manda nesta História sou eu, então fecho, encerro, reverbero, com alegria, alegria, carnavalizando o mal-mau europeu, convocando o bem-bom tropical, a propriedade particular é pornográfica, a propriedade pública é erótica, o curupira e o mapinguari querem menos Pornos e mais Eros, trazendo a pandemia-anarquia vem Macunaíma, vem no centro do rodamoinho, transferindo a solução final pra botas e calças e jaquetas e quinquilharias outras, fim o caralho, a cabaça, ó meus irmãos, vejam só: o herói de nossa gente liberta o inventor e prende o presidente, os ministros, os assessores e os agentes do serviço secreto, enfia todas as autoridades neste cárcere bidimensional chamado papel, nesta máquina chamada livro, que é pra jamais voltarem a azucrinar a nossa paciência, que é pra jamais voltarem a nos pentelhar sem fiscalização, que a revolução está só começando e quem manda nesta História sou eu.
Luiz Bras é crítico literário e escritor.
***

De códigos genéticos e pães franceses
Homenagem a William Gibson
Santiago Santos
Especial para o Jornal Opção
A lembrança da turbulência do voo ainda irritava o estômago sensível de Nilesh enquanto seguia Manu pelas vielas do Coophamil. Fome, a mãe sagrada de todas as necessidades. Fome de vida, no caso, uma vida de rei em Singapura desperdiçada pelo equilíbrio mal calculado entre blackjack, puteiros e uísque. A Louva-Deus Sagrado o colocou pra correr sem muito mais que a roupa do corpo e os dentes na boca.
Antes da fuga, uma parada no laboratório da Myrage, onde gastou a maior parte dos últimos 12 anos, para uma série de injeções no próprio corpo e uma maleta com os últimos protótipos da pesquisa.
A reescrita CRISPR teve como efeito colateral apenas a sensibilização aguda do seu estômago, o que explicava por que nos últimos quatro dias nada parava dentro dele. Por outro lado, seu código genético já não era mais o mesmo, nem seu suor, nem suas digitais, nem suas pupilas, o que lhe permitia usar a lente de realidade aumentada sobre elas, conectando à rede sem se preocupar com os escaneamentos que a Myrage exigiria dos governos e agências de inteligência quando descobrisse que seu bioquímico mais cobiçado havia desaparecido com uma maleta de propriedade roubada.
− Oi, sou a Manu. Me pediram pra te buscar − ela disse, em inglês. Aguardava sua chegada no trevo da entrada do Coophamil, onde o táxi do aeroporto o deixou. Logo adentraram a configuração de ruas com tendas e barracas onipresentes sobre o asfalto quebrado, carcaças de carros transformados em estufas, gambiarras elétricas nos postes irrigando casas e prédios pequenos com fios esticados, uma multidão colorida e acalorada de um lado pro outro. Seu prometido refúgio.
A Djorúbo, uma organização ainda desconhecida, recrutava especialistas dos mais diversos campos. Não a escolheria como porto seguro contra a caçada da Myrage não fosse por Harini, uma antiga amiga cientista da própria Myrage. Estava instalada em Cuiabá há alguns meses e fez a ponte entre Nilesh e a Djorúbo, interessada na tecnologia CRISPR.
Manu seguiu até topar com uma escadaria de degraus lascados que dava em um corredor que parecia escavado na terra, com várias portas. Nilesh apertou o indicador com força no polegar, acessando o menu de realidade aumentada em seu campo de visão, sobreposto ao que enxergava, e o localizador de GPS: pensão Pequi Roído, dizia a legenda ao lado do seu ponto no mapa translúcido. Entraram em uma das portas. Harini estava sentada na cama.
Ela o abraçou e conversou com ele em malaio, o que o deixou mais confortável. Manu aguardou até que terminassem a conversa e os guiou pelo corredor até outra porta. Dentro, um homem de rastafári o cumprimentou em um inglês de dicção perfeita, com sotaque jamaicano. Estendeu-lhe a mão.
− Seja bem-vindo a Cuiabá, doutor Suryavanshi. Sou Alek e falo em nome de Butau-Curi-Répa, que não pôde estar presente. Temos um apartamento pronto pro senhor, próximo à residência de Harini. Sei que deve estar exausto da viagem. Manu vai levá-lo até lá. Eu queria cumprimentá-lo pessoalmente. Amanhã conversaremos sobre os pormenores da sua colaboração.
Nilesh agradeceu e voltou a seguir Manu pelo bairro, com Harini ao lado. O Coophamil seria uma casa bastante diferente da sua querida Singapura, expoente tecnológica do mundo pós-névoa; Cuiabá era capital da maior região exportadora de commodities das Américas e seguia a cartilha urbana do novo capitalismo extrativista: periferias de condomínios ricos ultrafechados e um centro pobre. Estava no centro.
Chegaram a um prédio de dois andares e subiram a escadaria. Manu abriu um dos apartamentos. Do lado interno da porta, reforços na madeira e vários trincos de combinação. As janelas tinham o mesmo tipo de tranca. Nilesh largou a maleta em uma cama de solteiro arrumada. O lugar estava todo mobiliado, pronto para morar. Manu abriu um armário cheio de roupas.
− Compramos com base nas suas preferências. Espero que sirvam. A geladeira também está cheia. Pode liberar o meu acesso? Manuela 7043V − ela tocou em algo no ar e empurrou na sua direção. No campo de visão de Nilesh apareceu um mapa de imagem de satélite cheio de pontos de referência com legendas ocultas. Eram os arredores do prédio. − A vizinhança, com recomendações de lugares para comer ou beber algo, se quiser. Enquanto estiver no bairro, não há problema em circular. É claro que recomendamos cautela. Mas sei que o senhor está ciente disso.
Ela disse que alguém entraria em contato no dia seguinte e saiu.
Nilesh ficou à sós com Harini. Ela o abraçou novamente. Ele se deixou abraçar, depois se deixou largar no piso do banheiro sob o chuveiro gelado enquanto ela fazia café na cozinha. Esfregou o corpo todo três vezes. Fez a barba com uma gilette nova na pia. Quando saiu, ela o esperava na mesa, um saco de padaria aberto.
− Pão francês − ela disse −, que é o pão brasileiro, na verdade. Acho que você vai gostar.
Comendo um sanduíche, falou com ela sobre seus últimos dias em Singapura e sobre os avanços na pesquisa. Os nanocomponentes que trazia na maleta eram um estoque experimental de CRISPR, nucleotídeos capazes de editar linhas do genoma humano, como os que injetou no próprio corpo. Por enquanto as alterações eram singelas, mas já podiam curar certas doenças e alterar assinaturas corporais. Faltava expandir suas possibilidades. As apostas em Singapura eram de que a tecnologia se tornaria comerciável em até dez anos. E ali estavam os caríssimos protótipos de pesquisa da Myrage.
Harini foi embora depois do lanche para deixá-lo descansar. Nilesh sentou de frente pra janela do apartamento, observando a nova vista, o calor empapando as axilas. Vasculhou o armário da cozinha até achar o Old Parr 18 anos. Fizeram um bom trabalho de pesquisa. Encheu o copo, voltou a sentar. Do uísque não largaria. Dos puteiros, com muito esforço, talvez. O blackjack era um proibitivo. Um proibitivo contundente. Não queria ter que contar com a sorte pra achar outro refúgio e adicionar outro inimigo poderoso à lista.
Bebeu, levantou e vomitou tudo. Deitou-se enfim para desfrutar do sono revigorante dos sobreviventes.
Santiago Santos é escritor, tradutor e jornalista. Estreou em livro com a coletânea de contos Na eternidade sempre é domingo, lançada em 2016.