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Talvez ainda demore anos, a depender da saúde, para completar a carreira da magistratura quando, enfim, poderei sair de cena rumo a outras coisas necessárias a fazer sem pressa.

Hoje li o artigo do Marcelo Duarte Lins, postado pelo Sidney Valente, onde ele cuida da transição para um período de menor protagonismo, seja pela aposentadoria ou por mudanças no percurso, cujo desafio ele explora em sua “Síndrome de Carência de Protagonismo”, onde descreve a jornada de quem, após anos de liderança e reconhecimento, se vê reduzido ao “seu Fulano da caminhada matinal” ou da dona Cicrana do pilates das nove, ou à voz que o neto chama para ajeitar o Wi-Fi.

Essa mudança, inicialmente percebida como perda, revela-se um caminho para o reencontro com a essência.

Lins narra a intensidade de uma vida dedicada ao trabalho: “Durante anos — décadas, talvez — você construiu, decidiu, liderou. Resolveu problemas que pareciam montanhas… Chamavam, você respondia. Ordenava, e o mundo obedecia. Ou quase.”No entanto, essa dedicação muitas vezes gerou ausências familiares, com filhos crescendo “sem você”. Da minha parte, ja pude ver colegas de trabalho que se supõe muito importantes, poderosos em sua cordialidade formal a requisitar os títulos do mundo e do cargo. Alguns mudam até o caminhado depois que se tornam Juízes. A liturgia do cargo, todavia, tem seus momentos de exercício e a empáfia não coaduna com as necessidades formais das ocasiões, mesmo dentro dos cancelos da Justiça. A simplicidade cordial encanta, esta sim, pois morremos um pouco a cada dia, e a coisa realmente a esperar é a própria eternidade evolutiva, que nos aguarda depois do agora. O fim de um ciclo de protagonismo neste capítulo de uma série de existências é marcado quase sempre pela entrega do crachá e desativação do e-mail corporativo, iniciando o “verdadeiro login: o da vida que existia por trás da função.”

Uma vez me adoeci e minutos depois já havia um colega assentado na minha cadeira, que portanto não é minha.

Todavia, é de se avaliar a estranheza inicial de acordar um dia aposentado: Acordar sem pressa. Almoçar sem o celular à mesa. Não precisar provar nada a ninguém. Parece perda. Mas, com o tempo, a gente descobre que é ganho.

O “ego — aquele bicho barulhento e faminto — finalmente vai dormir mais cedo.”A vaidade se desfaz, e o poder se torna uma “piada interna”. Lins descreve uma “liberdade secreta — e quase sagrada — em deixar de ser importante”, um silêncio que, após o susto inicial, revela “a chance de ser inteiro sem precisar ser centro.” É nesse espaço entre a grandeza e o anonimato que reside a liberdade de não precisar provar mais nada.

Aceitar essa travessia exige maturidade para suportar o “eco do próprio nome dito cada vez menos.” Há quem abrace essa melhor fase com dignidade, transformando passado em legado. Mas há também quem se agarre a qualquer resquício de aplauso, recusando-se a aceitar que “o tempo passou”, vivendo como “o próprio fantasma do metrô no filme Ghost.” Lins enfatiza a dignidade em reconhecer a importância passada, mas a maior liberdade em não precisar prová-la constantemente.

Freud via o envelhecimento como um período de perdas e diminuição das pulsões, onde o indivíduo confronta a finitude e a perda de papéis sociais. A liberdade, nesse contexto, seria a capacidade de lidar com essas perdas e, diremos, encontrar o caminho, que durante uma vida não havia sido encontrado. A “Síndrome de Carência de Protagonismo” ressoa com a ideia psicanalítica de um confronto com a realidade da finitude e a perda do “eu” idealizado no território da ilusão, em regra por ignorância. Sim, há uma constatação civilizatória de que não é necessário o ser humano passar pela fieira do mal para chegar ao bem, parafraseando o LE, mas assim o faz pela própria ignorância das Leis Universais que regem os ciclos e pedaços de vida, que parecem medidos por alguma sequência como a de Fibonacci, que fala da ocorrência de padrões numéricos da sequência em diversas estruturas e fenômenos naturais (como a disposição de pétalas em flores ou o formato espiral de conchas e galáxias), como a indicar que há uma assinatura da Inteligência Suprema, a causa primeira de todas as coisas onde se poderia supor um acaso.

Na Faculdade de Filosofia, visitei fragmentos de Carl Jung que, por seu lado, oferece uma visão mais positiva. Para ele, a segunda metade da vida é crucial para a individuação, um processo de volta ao interior para integrar aspectos conscientes e inconscientes da psique. A perda de poder e fama é vista como uma oportunidade para o desenvolvimento do Self, a totalidade da personalidade. A liberdade, para Jung, é alcançada ao se libertar das máscaras (personae) e das expectativas sociais, abraçando a verdadeira natureza. O “silêncio do ‘já fui'” de Lins pode ser interpretado como o espaço para essa introspecção e para a emergência de uma sabedoria mais profunda.

Jacques Lacan via o sujeito sempre em busca de reconhecimento no Outro, com a identidade construída socialmente. A perda de poder e fama desestabiliza a imagem construída. A liberdade, aqui, seria lidar com a falta constitutiva do ser, aceitando que o desejo é sempre insatisfeito. A “liberdade de quem já foi importante” pode ser a aceitação de uma nova posição simbólica, onde o valor não é mais definido pela função, mas por uma relação mais autêntica com o próprio ser.

Numa visão para depois do hoje, este que estamos a passar, a perda de poder e fama no final da vida é um despojamento necessário para o ser que sobrevive ao corpo, deem a ele o nome que quiserem, inclusive de energia primitiva que retorna ao estágio originário, desde que individualizada. A vida terrena é um palco temporário para o aprendizado. A “Síndrome de Carência de Protagonismo” é um convite da alma para se desvincular das ilusões do ego e reconectar-se com sua essência divina.

Nesse novo capítulo, surge uma “nova importância — mais discreta, mas muito mais verdadeira. Porque já não importa o que você faz. Importa quem você é.” A felicidade reside em coisas simples: “O prazer de uma conversa boa. A alegria de ensinar sem cobrar. O tempo de ouvir mais do que falar. A leveza de não ser mais “necessário” — e descobrir que isso é liberdade, não desprezo.”

A liberdade adquirida após a perda de poder e fama é a liberdade da alma. É o momento de dedicação ao crescimento interior, à caridade, à meditação e à busca de um propósito maior que transcende as conquistas materiais.

Olhamos no retrovisor e vemos que a juventude em flor se tornou o fruto, negando na silhueta da mãezinha a própria beleza física. A cada 5 anos, todos temos uma queda fisiológica. Mesmo com ajustes estéticos, passamos a ser a cópia retocada de um original que já perdeu o seu fulgor. E que o tempo, esse escritor intempestivo, lembra em páginas e fotos das estruturas corporais que amadureceram e vão seguir assim por décadas na melhor idade até fechar o ciclo. A sabedoria que surge daí é uma sabedoria de vida, fruto de experiências e reflexão.

A conexão com os netos, mencionada por Lins, ganha um significado especial. Eles são a oportunidade de transmitir valores, amor e sabedoria de forma pura. A idade madura é a chance de resgatar o tempo perdido e semear o bem.

Lins conclui que a verdadeira grandeza está em saber sair de cena e permanecer inteiro. “Quem já foi importante, se souber deixar de ser, talvez descubra que o anonimato é só outra forma de liberdade — menos barulhenta, mas muito mais leve.” A aposentadoria é, na verdade, “o início da verdadeira vida adulta: aquela em que você vive, enfim, para si mesmo — sem script, sem performance, sem palco.” E com a vantagem de poder fazer um monte de gente feliz e arranjar um outro trabalho, servir mais de outras formas, com mais calma e mais tempo, ler mais, se envolver com atividades múltiplas despojadas da mesquinha vaidade humana de ser por um dia o que nunca foi para sempre, pois o para sempre, sempre acaba, escreve o poeta.

No silêncio do “já fui”, reside a descoberta do que sempre se foi, sem cargos ou plateias, apenas “sabedoria. E paz. “A verdadeira importância está em ter tempo para coisas simples que levam à felicidade: brincar com crianças, inclusive se lembrar dos netos das planícies da fraternidade, que não são filhos dos nossos filhos. Passear com o cachorro, conversar com amigos, mas não perder o tempo de ser útil aos mais necessitados, pois no dia do grande retorno nos perguntarão: Estive com fome e me destes de comer? Com sede e me destes de beber? Doente e fostes me visitar? Éssa será a verdadeira “liberdade de quem já foi importante. E, enfim, aprendeu a ser presente.”, pois a presença, para quem ainda não se convenceu de que a vida continua, é a manifestação da alma em sua plenitude, desprendida das amarras do mundo material e conectada com a paz interior e o amor universal.

Fonte: LINS, Marcelo Duarte. Síndrome de Carência de Protagonismo: A arte de saber sair de cena. (artigo sem fonte em redes)