Teses do historiador, presentes em livros como “A Consciência Conservadora
no Brasil”, são fundamentais para se entender a razão de nomes como o de Nelson
Jobim e o de FHC serem aventados neste momento de crise institucional

Ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Nelson Jobim é apontado como um forte candidato em uma eventual eleição indireta | Foto: Antônio Cruz/ABR

É sabido que, após o agravamento da crise institucional que sobreveio com as denúncias que Joesley Batista, da holding J & F, apresentou contra o presidente da República, Michel Temer, o mandato deste está por um fio. É sabido, também, que ao menos dois nomes que ora não ocupam nenhum posto no Estado, são aventados, nos bastidores de Brasília, como possíveis figuras centrais em uma eventual eleição indireta. Estes dois nomes são de indivíduos que já exerceram funções importantíssimas nas esferas do poder político brasileiro. Falo de Nelson Jobim, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), e Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente da República. Ambos, além desses cargos, tiveram sólida carreira política no Poder Legislativo, tendo sido também ministros de Estado. Mas por que são justamente os nomes dos dois que vêm à baila, agora? No presente artigo, me concentrarei na figura de Jobim. Em um próximo, na de FHC. Em ambos, as teses do historiador mineiro Paulo Mercadante (1923-2013) nos ajudarão a tangenciar a resposta.

“Conciliação”

Paulo Mercadante foi um intelectual que se dedicou a estudar um dos elementos mais impressionantes da tradição ibérica, de modo geral, e da brasileira, de modo especial: a capacidade de conciliação, isto é, de arremedos e costuras político-institucionais, a fim de evitar rupturas drásticas, revoluções e violências intestinas, enfim, de evitar quaisquer formas de radicalização. Mercadante estudou tal fenômeno com mais precisão em duas obras, hoje indispensáveis para quem quer entender o Brasil: “A Consciência Conservadora no Brasil” (Topbooks; UniverCidade, 244 páginas), de 1965, e “A Coerência das Incertezas: Símbolos e Mitos na Fenomenologia Histórica Luso-Brasileira” (É Realizações, 351 páginas), publicada em 2001.

Uma tal postura conciliatória se fez presente em nossa tradição desde a época das guerras civis-religiosas e da consequente reação contrarreformista, acontecimentos transcorridos nos séculos 16 e 17, mas passou a ficar mais nítida após a Revolução Francesa e a Era napoleônica, que exigiram novamente uma reação ibérica peculiar à onda nova de radicalização que inundava a Europa no início no século 19. A reação em questão ficou plasmada na atitude do então príncipe regente D. João VI de decidir fugir, com sua corte, para o Brasil. Sabemos que, como essa fuga, D. João elevou o Brasil, então colônia, à condição de parte de Reino Unido, junto com Portugal e Algarve. Além disso, possibilitou que a antiga colônia tivesse ligações econômicas diretas com a Grã-Bretanha, por meio da chamada abertura dos portos. Em contrapartida, esta última nos dava também proteção militar.

Quando, alguns anos mais tarde, com Napoleão já derrotado e preso, o embate entre restauradores do Antigo Regime e liberais radicais começou a ser travado em Portugal, por um lado, e, por outro, o Brasil já começava a dar sinais de desejo de emancipação – sobretudo instigados pela abertura dos portos –, uma nova reação conciliatória foi encontrada: o 7 de setembro, a Independência. Diz Mercadante, em a “Consciência Conservadora no Brasil”: “A independência política de 1822 encerra em seu contexto o espírito de conciliação que provinha de todo o processo histórico nacional. Prevista de fato, há muito, pelos portugueses, tornara-se inevitável, realizando-se quando irreversível a emancipação econômica, decorrentes da abertura dos portos.”

Desse fenômeno conciliatório premeditado, Marcadante diz que os homens públicos daquela época tiveram plena consciência: “Escrevia o Marquês de Sapucaí que ninguém podia arrogar-se a glória de ter apressado a emancipação política do Brasil. O ato operou-se tão aceleradamente e por tal unanimidade ‘que os fatos encaminharam os homens e não os homens os fatos’.” Nada se fez de modo ra­dical ou conflagrado. Tran­sigia o elemento mais avançado, radical e republicano, diz Mercadante, “com o elemento reacionário, em geral alimentado de pré-juízos contra o espírito democrático. Constituíra-se principalmente de antigos radicais, revolucionário de lojas maçônicas, os quais se deixaram influenciar pela ideologia da restauração, e pela tendência de centro, moderada e oportunista.” É este o cerne da tradição conciliatória que pode ser observado nos momentos cruciais de nossa história.

Capa da obra “A Consciência Conservadora no Brasil”, publicada originalmente em 1965

Em, “A Coerência das Incertezas”, Mercadante amplia a análise para o campo simbólico e fenomenológico, e observa o transcorrer da conciliação no Brasil da segunda metade do século XX. Diz ele que “velhos valores de quando em vez predominam por meses e até anos. Com frequência, a plebe idealiza um demagogo salvador, brandindo a vassoura como simulacro da lança templária. Ou ressuscitado o fantasma da corrupção como arma eleitoral para em seus braços atirar-se no fim da festa. A vocação para o sebastianismo salvador dirige a opção eleitoral.” Por exemplo, de um Vargas ditador e perseguidor da esquerda política, nos anos 1930 e 1940, teríamos, nos anos 1950, um Vargas populista, flertando com a esquerda, procurando dissipar a contenda iminente entre radicais e reacionários. Seu suicídio foi, grosso modo, um ato conciliatório que garantiu a fase dos governos de Juscelino, Jânio e Jango.

Prossegue ainda Mercadante dizendo que, nas décadas de 1960 e 1970, “os militares assumiram o poder servindo-se de valores arcaicos e modernos. Enquanto se atiraram ao programa primeiro de Roberto Campos, a fim de modernizar o país, deixaram-se entregar à radicalização ética nos governos seguintes, imbuindo-se de preconceitos contra a economia de mercado, que traz em seu ventre o malsinado lucro do capitalista. Em que pese, pois, o sentido de modernidade impressa ao movimento, as forças culturais da Contra-Reforma não cessaram de agir, aproveitando-se das vacilações.” Com a saída dos militares do Poder, a transição se fez também de modo a frear a radicalização. A Lei da Anistia é exemplo disso. A constituinte de 1987, com sua enorme e variada gama de pautas, é outro.

“Pinguela”

Pois bem, e hoje? A sensação é que parece não haver saída para a crise que vivemos. Nós, cidadãos comuns, não conseguimos vislumbrar como solucioná-la. Será que nossa tradição conciliatória vai imperar, novamente? Ou será que os tempos são outros?

No evento “Desafios Conjuntos – O Futuro da América Latina”, realizado na Fundação Getúlio Vargas (FVG), na cidade de São Paulo, em 21 de março de 2017, o ex-ministro do STF Nelson Jobim disse que há um problema grave que nos cerca: a introdução da intolerância e do ódio no sistema político brasileiro. É grave, disse Jobim, por que isso inviabiliza o diálogo: “Em política, não se escolhe interlocutor. Em política, fala-se com quem se está ali”. Jobim citou o exemplo da acusação que recaiu sobre o presidente Michel Temer quando houve os primeiros sinais de estabilidade econômica: “Acusaram-no de fazer a ‘velha política’, o ‘entendimento’”, referindo-se à negociação de ministérios com partidos políticos. “A academia”, continuou Jobim, “é ótima para fazer a crítica do que se faz. Mas é absolutamente incapaz de dizer o que se pode fazer com eficácia. E, evidentemente, nessa situação de pinguela que estamos vivendo, o que é que podemos fazer? Como se consegue uma maioria no Congresso? Criticando o Congresso, ou negociando com o Congresso? Ou seja, não se faz política sem se considerar o entorno. E o entorno é o que está aí, e não o que gostaríamos que fosse.”

Nesta fala, pode-se ver o tom conciliatório do ex-ministro, que é considerado por muitos que o conhecem um hábil interlocutor e um grande articulador. Jobim disse ainda que, se não houver acordo, negociação, entre as figuras políticas de espectro conhecido – poderíamos pensar na expressão “políticos profissionais” –, haverá o perigo de um “outsider” chegar ao poder, o perigo de um “Trump Caboclo”, em 2018. Mas o que mais me chamou atenção na fala de Jobim foi uma digressão jocosa, e, por isso mesmo, sintomática, que ele fez quando criticou a estratégia comunicativa do governo de Michel Temer com relação à Reforma da Previdência. Para Jobim, não se conquista a opinião pública fazendo apresentação de números: “Não adianta querer obter apoio popular com contas. Não. Precisa-se encontrar o ‘inimigo’”. É neste momento, quando fala da necessidade de se encontrar “o inimigo”, que o ex-ministro conta uma história sobre Jânio Quadros, quando este estava na presidência da República. História esta que lhe foi contada por Roberto Campos, quando os dois eram colegas na Câmara dos Deputados.

Campos era assessor do ministro da Fazenda do governo Jânio Quadros, Clemente Mariani e, certa feira, expos a Mariani a necessidade de aumentar o preço da gasolina. Mariani disse então que eles deveriam comunicar a necessidade ao presidente Jânio. Como relata Jobim: “Jânio estava atirado sobre a cadeira, com aquelas roupas safári, então Roberto começou a expor, mas percebendo que Jânio não estava ouvindo, fraquejou na exposição. Terminou, enfim, e Jânio fez três perguntas. As duas primeiras diziam respeito exatamente aos pontos aos quais Campos não havia se referido porque achava que o presidente não estava ouvindo. A última foi: ‘Professor, quem são os inimigos?”. Campos, evidentemente, não tinha ideia de quem eram os inimigos.

Paulo Mercadante (1923-2013) é autor da tese da tradição conciliatória no Brasil

Jobim imitando o sotaque de Jânio, reproduziu o que o então presidente disse a Campos: “Não se preocupe, professor. Eu já tenho os inimigos. Mas, lembre-se: para termos apoio popular, precisamos ter um objeto de ódio. Porque o povo não se junta para amar, se junta para ter alguém a odiar.” Campos, então, foi embora para o Rio de Janeiro. Lá chegando, ligou o rádio e ouviu Jânio fazendo um pronunciamento público atacando, brutalmente, os Estados Unidos. Falando do mal que as pressões econômicas dos Estados Unidos estavam fazendo ao Brasil etc, terminando o discurso, anunciando a necessidade de aumentar o preço da gasolina, por causa dos americanos. Roberto Campos levou um susto porque não tinha nada a ver uma coisa com a outra. Perguntou então a um motorista de táxi, português, o que ele achava daquilo. O aumento ia prejudicá-lo. O motorista então disse: “É verdade, é um problema. Mas esses americanos filhos da p…! Vamos aumentar a gasolina!” Campos, ainda segundo o relato de Jobim, ligou para o embaixador americano no Brasil, que era seu amigo, a fim de esclarecer o que estava havendo. Eis a surpresa: o embaixador já sabia. Disse ele a Campos: “Não, não. Não se preocupe! O presidente Jânio Quadro nos avisou antes.” E assim Jobim rematou o seu relato: “Isso mostra a verdade de uma frase do Dr. Ulisses Guimarães, de 1987, que dizia o seguinte: ‘Em política, até a raiva é combinada’”.

Nos resta saber, então: qual será, dentro em breve, o nosso objeto de ódio, de raiva combinada? E quem serão os agentes da combinação, ou melhor, da conciliação?

A parte II será publicada na próxima edição