Opção cultural

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A voz contundente, implacável e necessária da periferia

Nos 27 contos que enfeixam “Te Pego lá Fora”, distribuídos em seções como se fossem as estações do ano, Rodrigo Ciríaco realiza a gênese de uma guerra sem vencedores

A solitária contemplação de Adalberto de Queiroz

“Cadernos de Sizenando” vem de longe, com anotações tomadas no dia a dia, de um tempo que não pede lamentações, mas o fluir da mais doce alegria, contida em pequenos lembretes, cartas, e-mails, milhares de textos, blogs e grupos de amigos

Eu sofro de mimfobia. E você?

Cultural_1885.qxd Graça Taguti Especial para o Jornal Opção

Está na hora de colocar em pratos limpos tudo o que a gente guarda e esconde em nossa cozinha mental. Fobia é medo, terror, perna bamba, paralisia muscular repentina. E por aí segue lista da diversificada sintomatologia. Pra que negar. Eu sofro de mimfobia e morro de medo dos outros que moram dentro da minha cabeça e cutucam minhas ações e decisões, presentes ou futuras. E você?

Tem pesadelos cinzentos? Sombras que o perseguem pelas calçadas da vida, vozes que o atormentam e ameaçam dizendo: Faça isso ou Não Faça — bem no fundo do seu ouvido direito que, de tanta perseguição e assédio, começa a ficar torto.

Sessão franqueza. Quantos diabos moram em você? A pergunta é exatamente essa. Não adianta se benzer nem tentar se esquivar. Não dá pra mentir agora, viu, e eu confesso já ter me submetido a vários exorcismos e nenhum funcionou.

Papo com terapeuta, lamúrias com amigos, bebedeiras, sexo a esmo, Rivotril aos montes. Selfies compulsivos, esbanjando hiperfelicidade nas redes sociais e disseminando inveja aos borbotões. Nada deu certo. Tenho que estender a mão à palmatória, como diria a minha avó. Eu abrigo uma legião de demônios que se intromete no meu olhar, sorrisos, suspiros, discursos perigosos ou maquiavélicos. Xô. Vade-retro belzebu.

É o Exu dos adiamentos. A hiena das falsidades. As serpentes das manipulações. Os escorpiões dos ataques sinuosos e repentinos. O camaleão dos disfarces. O urubu dos vaticínios. O crocodilo das crocodilagens e ignoro quantos mais se revezam dia e noite, farejando minha alma e alternando ronda sobre minhas vontades ou desvontades.

Nessas horas, saio igual louco de pedra, quebrando tudo que é espelho, esmagando tudo que é réstia de alho, destroçando tudo que é rosário, feito vampiro estressadíssimo do século 21. E sabe por que eu tenho medo? Porque eu já me perdi de mim faz tempo, desde que passei a funcionar em dois universos. O virtual e o chamado Real, dentro e fora das telas de celulares e gadgets aparentados.

A gente hoje vive cercada de preservativos sociais digitais, caras e bocas, avatares, felicidades de mentirinha, junk-pessoas, fast-sexo, sem tempo pra gozar ou respirar. Se eu pudesse, confesso, durante o sono, dava um jeito de escapar do meu umbigo, das minhas egocêntricas preocupações e fugia de mim rapidinho e de soslaio. No dia seguinte, minha empregada iria me encontrar esvaziado, tipo um saco, misturado ao edredom pra ser jogado anonimamente na máquina de lavar. Uma ex-pessoa, compreende?

Tenho medo da minha honestidade. Da minha esperteza. Da minha grandeza e mediocridade simultâneas. Da minha arrogância e humildade. Das minha terna e explícita candura e credibilidade. Das desconfianças e cismas frequentes. De virar uma bomba relógio e destroçar a geografia à minha volta. De morrer antes de me transformar em pomba celestial, com asas lindas de um azul iridescente.

Tenho medo de comer demais e estourar que nem balão de festa infantil. Agarrar-me em uma jaqueira e me casar com ela. Apaixonar-me por um urso e me mudar lá para os confins de uma gelada floresta canadense. Ficar viciada em salmão, naturalmente.

Morro de fobia de lugar cheio. De pessoas previsíveis. De papos desgastados. Falta de imaginação e tesão. Medo de quem não arrisca nada pra sair da sua poltrona. De quem se aventura demais e planta um camping na ponta de um despenhadeiro. Dos ativistas de sofá.

Fobia da compulsão de mandar esse governo espúrio, definitivamente pra puta que o pariu e fazer isso com atitude e coragem. De armas em punho, ladeada por Lam­pião, Marighela, Lamarca e Che Guevara.

Convidar o amado Fer­nan­do Gabeira pra me ajudar nesta empreitada. E chegar por fim à esplanada dos ministérios, cantando músicas de Ney Mato­grosso, bem da época dos Secos e Molhados.

Ahhh… Eu tenho medo. E você, você tem medo de quê? Arrepio-me de ansiedade quando imagino embarcar numa expedição dos Médicos sem Fronteiras e me perder nesse mundão carente, deixando largos abraços e água abençoada com muito amor, cobrindo todas as misérias que avisto.

Medo de ser uma pessoa melhor. Ou de piorar de vez, se me entregar aos cantos venenosos das sereias. Pavor de amar demais ou gostar de menos e, imersa na covardia, colocar cadeado nos sentimentos e nos beijos que ainda não nasceram.

Mas nisso tudo, sabe o que é o melhor de sofrer de Mim­fobia? A possibilidade de correr atrás da competência. Semear novas atitudes. Abrir os olhos em meio a tempestades de areia. Esticar as antenas, perceber o faro de raposas que passeiam sobre nosso corpo e, então, ganhar consciência dessas paranoias todas.

Penso que é desse jeito que a gente consegue se candidatar ao posto de maestro vitalício da nossa orquestra de confusões, demandas e ideais.

E aí, quem sabe, num gesto de extrema ousadia, a gente até decida invocar aos céus o espírito de Beethoven para compor uma obra virginal: a 10ª sinfonia. Uma sinfonia cujo último movimento expresse uma belíssima ode ao renascimento humano. *Título inspirado em frase de Millôr Fernandes.

Graça Taguti é jornalista e escritora.

via Revista Bula

Poemas que leio, poetas que admiro: Pier Paolo Pasolini

Além de cineasta, ativista político e intelectual público, Pier Paolo Pasolini foi também um poeta de grande talento

O embrulho

Cultural_1885.qxdRonaldo Costa Fernandes

Estou na esquina. Se tivesse de escolher um ho­mem honesto para cumprir esta missão, eu me escolheria. Tenho trinta anos, dois ternos, um par de sapatos e minha honestidade. Meu pai não deixou nenhum bem ao morrer. Ele me dizia: Filho, minha herança será a honestidade. Com a honestidade, reconheço, não se compra apartamento ou carro novo, mas tem-se a consciência tranquila e isso não tem preço. Ele repetia: Isso não tem preço.

Estou aqui há mais de três horas. Faz um calor dos diabos. O sol não dá bola pra honestidade. Tanto faz ser honesto ou ladrão, se sua da mesma maneira. Não sei o rosto do homem que recolherá o pacote. O sigilo é alma da missão. Pode ser qualquer um: a velha que passa, a mocinha de jeans, o velho de boné, o militar de farda entre os civis, o rapaz da prancha de surf.

Aprendi a controlar os instintos. Quase não me movo. Tomo ordinariamente pouco líquido. Um ho­mem, para cumprir a missão, não pode ser vencido pelas partes baixas do corpo. Posso passar um dia sem urinar. O mesmo acontece com a comida. Preciso de um mínimo para me manter em pé. Até o sono. Um homem que dorme muito não pode cumprir a missão.

Disciplinei meu corpo. Um homem honesto precisa disciplinar o corpo. Tenho um orgulho que não reparto com ninguém. Se contasse, diriam, mentiroso. Controlo meus sonhos. Tenho consciência de que sonho e os dirijo. Um homem honesto tem que controlar até mesmo o inconsciente.

Que me interessa se posso parecer suspeito? Os transeuntes não dão bola para um homem parado numa esquina. Só os desocupados ou os comerciantes da rua dão conta de mim. Os vendedores — as lojas hoje em dia andam às moscas — vêm até a entrada da loja. São homens de gravata e camisa branca de manga curta. Não usam paletó. Não se precisa de paletó para vender geladeira, aspirador de pó, batedeira ou televisão.

Sou um homem bem vestido numa esquina. Um homem bem vestido numa esquina não desperta suspeitas. Percebo alguns desocupados. O camelô grita bugigangas. O mendigo pede dinheiro no sinal. É um falso mendigo. Numa sociedade justa não haverá mendigos. Numa sociedade justa não haverá nem mesmo a necessidade de que um sujeito como eu se poste na esquina.

Percebo outras coisas: há leve trottoir de duas mocinhas. Quem passa não percebe nada. É dia, a calçada cheia, talvez nem mesmo os vendedores percebam o que percebo. A honestidade às vezes nos torna ingênuos. Mas a minha honestidade não é apenas inata. Aprendi a cultivá-la como quem exercita músculo. A honestidade é elástica e pode tornar-se flácida. Ou aumentar o tônus.

Dois malandros tentam me roubar o pacote. O primeiro me pergunta algo. Quê? Outro vem por trás. Nada é mais criança em nós que a atenção. Reajo, luto. O sujeito mais manhoso é o baixinho. É forte como o diabo. Ninguém me ajuda. Abre-se um círculo, grito, esperneio, o pacote se rasga. A multidão assiste impassível. Pode até ser que tenham algum sentimento de revolta ou de solidariedade com os bandidos.

Os bandidos hoje estão em todas as partes. Certa vez fui empenhar as joias de minha mulher. A fila se desorganizava. Vinha o guarda, escolhia um elemento. Servia de exemplo. Preferia as mulheres e os idosos. Batia impiedosamente. Quando desmaiava, dois seguranças levavam o desordeiro para dentro da agência. O guarda se afastava. Esperava o próximo levante. De longe, já sabia quem seria a vítima. Estivesse ela ou não fora da fila. Ao chegar a minha vez, empurrei o pacote. Na primeira oportunidade, o caixa me mordeu a mão. Gritei. Por fim, com muita dificuldade — e com os dedos intatos — consegui retirar minha mão.

Talvez o público esperasse ver sangue e, aí então, reagiria de outra maneira. Em vez de indiferença, ficariam exaltados. Uns contra mim; outros, a meu favor. Quem sabe não se moveriam de seus lugares, mas torceriam e xingariam como no boxe ou nas rinhas de galo. Esta luta que eu e meus desafetos travamos mais parece coisa de mulher. Há empurra-empurra, dentadas, unhadas. Aos poucos, o público se entendia e vai procurar outra contenda ou acidente. Algo que os atice e tire da rotina. Algo com sangue, porque as brigas e acidentes sem sangue não monótonas como filme com pouco enredo.

Por fim, uma alma vem me auxiliar. O homem atarracado, meio calvo, pele seca e amarelada, olhos fundos e sem brilho, vestindo terno surrado, grita-lhes algo. Os bandidos fogem. O embrulho permanece intacto em seu interior. Meu medo é de que se rompesse. Teria forçosamente de saber o conteúdo. Um homem honesto não deve conhecer o conteúdo dos pacotes.

Passei a noite e a manhã inteiras na esquina. Uma hora qualquer dessas aparecerá o sujeito que receberá a encomenda. Um sujeito que faz abordagem deve saber a hora certa. A esquina é esta. Estou seguro. Um homem honesto não pode abandonar o posto. Poderia muito bem ir para casa.

Do outro lado da rua, sujeito baixo, gordo e suarento chega à esquina. Está bem vestido. Debaixo do braço, o pacote. Deve ser também homem honesto. Não nos olhamos. Não sinto sede nem fome. Muito menos sono. Fui preparado para ser homem honesto. Os camelôs começam a aparecer, as lojas abrem. Algumas pessoas bafejam o ar frio da manhã. As pernas sempre atrasadas para o trabalho.

Nas duas outras esquinas aparecem homens bem vestidos, com belas gravatas, sapatos impecáveis. Todos os dois carregam pacotes. Já não estou só. Não me atacarão. Nem quero supor o que traz o pacote. O pecado não está apenas em cometê-lo. Pensar é uma forma de transgredir. Se controlo o sono e os pesadelos, tenho de aprender a controlar os pensamentos.

Ronaldo Costa Fernandes é escritor.

Um estranho mundo que nos atrai

Em “Delirium”, Claudio Parreira apresenta uma galeria de tipos estranhos, gente que habita o reino do fantástico, da mágica, do irreal e, às vezes, do real gasto e sufocante. Gente que retrata, de certo modo, a fragilidade da nossa existência

Réquiem para uma geração

“Loja de Conveniências”, de Guilherme Smee, retrata relações interpessoais nas quais o consumo está a frente de qualquer ímpeto sentimental

“O petróleo é nosso”, as derradeiras palavras de Monteiro Lobato

Monteiro Lobato conseguiu sacudir o Brasil de alto a baixo, apontando ao povo brasileiro os caminhos de sua emancipação econômica, lutas que se aprofundariam após a sua morte e que redundaram na fundação da Petrobras

Só leia isso se não tiver mais nada pra fazer

  [caption id="attachment_20645" align="aligncenter" width="620"]Foto: Artchive Foto: Artchive[/caption] Eberth Vêncio Especial para o Jornal Opção Não me queiram mal, não me desentendam, não vão pensar que eu pirei. É que, realmente, hoje estou feliz. E com felicidade se brinca. Sinto-me tão alegre que poderia até lhes escrever um texto fofo e otimista, desses que falam do amor vencendo no final. Afinal, o que seria do mundo se não houvesse o contrapeso de uma rima à altura da dor? Acreditem: tirei o dia para me dedicar às irrelevâncias. O despertador tocou, eu até que ouvi, confesso, mas fiz questão de perder a hora, e perdi. Já perdi tantas coisas nessa vida. Por exemplo, essa noite um sonho fugiu de mim. É o tipo de situação que sempre me deixa enfurecido. Hoje, não. Vinguei-me. Empatei as perdas dando tempo ao tempo, fazendo-me de desatento com o galopar das horas. Então me atrasei para compromisso algum. Estava decidido: o dia era meu; o dia e todas as insignificâncias que eu desejasse dele. Quando finalmente escolhi abrir os olhos, eis que me deparo com uma lagartixa grudada no teto, a devorar uma borboleta. Não acudi o inseto que esperneava aflito. Cruzei os braços atrás da cabeça e curti o sacrifício como se fosse um deus mimado, sem o mínimo remorso, a saborear o extermínio de um animal por outro animal, tudo em nome da cadeia alimentar, do direito do mais forte em comer o mais fraco, e coisa e tal. Levantei-me. Fui para o banheiro pensando em triturar bolachas de maisena e jogá-las dentro da enorme xícara dos Beatles, lotada com leite e café, que uma sobrinha me trouxe de Liverpool. Queria tanto conhecer o Cavern Club. Precisava tanto saber por que deixei de comer aquela gosma matinal da minha infância. Ali no chuveiro cometi uma extravagância. Apesar das campanhas institucionais alertando para a falta de água por conta da longa estiagem, eu assumo que gastei mais que os sessenta litros regulamentares propostos para um banho solitário sem punheta. E, de repente, havia mais animais se metendo na minha vida: eu estanquei paralítico sob o relaxante tufo d’água do chuveiro, lucubrando por que as formigas fugiam de mim pelas gretas dos azulejos. O que será que carregavam nas mandíbulas e que fora surrupiado daquele cubículo particular: cadáveres de espermatozóides decompostos? Sou viciado em música, em ficar sozinho, em achar que Deus tá de sacanagem, a velha mania de perseguição que imaturo carrego, desde a época que descobri como a morte é exímia em desmanchar prazeres. Então, liguei o rádio e coei o café usando as tradicionais quatro colheres-de-sopa de pó. Enquanto ingeria aquele delicioso grude feito com bolacha e média, cismei de disputar cantoria com um bem-te-vi pousado no muro. Eu assoviava de cá. Ele assoviava de lá. Pensei “não paro com isso nem fodendo: vamos ver só se este passarinho aguenta”, e continuei a soprar até que a ave perdesse a paciência e batesse as asas. Como não sabia voar fora dos pensamentos, calei-me. Nu como o rei, decidi urinar na grama, as pernas abertas, o corpo inclinado pra frente, as duas mãos espalmadas contra o muro. O quintal e a urina pertenciam-me, fazia deles o que bem entendesse. Persegui com o jato vesical uma centopeia que escapou indignada entre as folhas. Eu sei ser mau com as filigranas. Notei que aquele hábito de mijar sempre no mesmo canto do jardim já deixava a grama deveras amarelada de tanto sal e ureia. Será que — como diz minha filha — eu deveria deixar de ser moleque e abolir aquele hábito horrível? Eu não me dispunha a dilemas. Portanto, fechei o fechecler (putz! há tempos não escrevia esta palavra…) e parti. O calendário insistia que aquele era um dia útil. Mesmo assim, eu me julgava tão inútil e contente que vazei de casa para fazer certas coisas que habitualmente não faço, como implicar com insetos e me deter numa conversa longa, prolixa e desconexa com o vizinho da casa da direita, aquele velhote decadente, um sujeito que trabalhara no DOI-CODI e que foi um dos mais impiedosos, tarimbados, dedicados e talentosos torturadores a serviço da ditadura militar brasileira, de acordo com a Comissão Nacional da Verdade e com a Dona Odete, vizinha da casa da esquerda, que jamais mente e tem uma filha que é uma beleza. O demente senhor não dizia coisa com coisa. Mesmo assim, só paramos o papo surreal quando a funcionária da casa arrancou o ex-arrancador de unhas da calçada, resmungando que era preciso trocar a sua fralda antes de colocar o feijão pra cozinhar (o miserável achou que ela tinha dito “farda” e sorriu todo cagado). Ora, não há demérito algum em caçoar dos canalhas. Eu reconheço: dirigia pela pista da esquerda numa velocidade irritante, é verdade, como se não houvesse amanhã, como se não houvesse buzinas, compromissos, contas a pagar, xingamentos a serem gritados. Nenhum comportamento hostil, contudo, mitigaria o meu surpreendente, sumido bom humor. Estacionei num parque, desci do carro e me ocupei — nessa ordem — às seguintes tarefas insignificantes: Catei lixo por onde andei (uma senhora me ofereceu a ritalina que a filha tomava). Tirei a camisa e me deitei no gramado (alguém discou pro 190). Eu disse “bom dia” para toda criatura que cruzou por mim naquela tarde (um sujeito cismou que eu era gay). Elogiei o policial da esquina (quase fui preso por vadiagem e desacato à autoridade). Declamei um poema do Drummond para operários da prefeitura que furavam uma vala no asfalto (ofereceram-me suas pedras do caminho). Visitei um mestre, um velho professor de medicina aposentado (ele não se lembrou de mim). Telefonei para uma ex-namorada dos tempos da faculdade (“Lamento informar, senhor, mas ela morreu”). Fui ao velório de um estranho (gamei na carpideira com um visgo familiar). Paguei lanche para uma trupe de moradores de rua (ofereceram-me uma vaga sob a marquise). Salvei um suicida no elevado (bateu-me a carteira). Respirei fundo e pulei (fui acordado do sonho por um bem-te-vi que cantava na janela). Eberth Vêncio é escritor e médico.

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É hora de tirar os sentimentos das prateleiras

Graça Taguti Especial para o Jornal Opção Imagine-se em um supermercado absolutamente vazio, porém com as prateleiras abarrotadas de produtos de diversas categorias. Nesta cena, apenas você desfila pelos corredores, deixando no ar a reverberação dos seus sapatos de couro. Aquele ruído, dentre tantos outros, que gostamos de ouvir num filme, enquanto devoramos pipocas no cinema. Já pensou nisso? Exercite suas fantasias então. Pense agora num filme sem barulhos, trilhas sonoras e outros fascinantes malabarismos das mixagens de áudio. Você estará assistindo a uma história agonizante, quase morta, que não nos toca, nem emociona de modo algum. Exatamente como comer pas­tel de feira sem caldo de cana. Fei­joada sem Caipirinha. Churras­co sem cerveja. Não dá para encarar. Continuando nosso passeio pelo mundo das reflexões, voltemos ao supermercado abandonado. E se não entrar mais ninguém, além de você, nele? Primeira­mente, inúmeros itens perderão seu prazo de validade. No açougue e na peixaria as carnes e frutos do mar apodrecerão. Na seção de frios, a mesma coisa. O estabelecimento, embora seja o único do gênero no seu bairro, fechará as portas. Irá à falência. Situação intrigante. O que estará ocasionando a súbita paralisia do consumo? Afinal, antes de tudo, as pessoas precisam comprar itens de primeira necessidade para sobreviver, sublinhará você em voz alta, com um misto de espanto e indignação. Neste momento, faremos nova visita a outro supermercado simbólico, situado em duas regiões. Em nossa cabeça e corações. Assim, por hipótese, substituiremos os produtos nas prateleiras por sentimentos. Imagine que a cena anterior de que participamos juntos, se repita. Se os sentimentos permanecerem sem ser requisitados por ninguém, ficarão cobertos de poeira, tristeza e esquecimento. Como se fossem espantalhos, afugentando a plena e vigorosa expressão emocional decorrente de seu uso. Sentimento não é livro para figurar em estantes. Nem se assemelha a taças de cristal francês. Tampouco imita porta retratos — para preencher de sorrisos as prateleiras da estante do seu quarto. Sentimento também não é comida congelada para penar em frigoríficos ou mesmo no seu freezer. Sentimento é como uma pessoa. Precisa de exercícios, ar puro, sol a pino. Abraçar árvores, beijar a luz. Senão ganha peso, obesidade mórbida, pressão alta, diabetes e que tais, provenientes do sedentarismo e da inércia. Se o amor, por exemplo, não for detectado nem manifesto, incha dentro da gente e depois explode de solidão. Se a alegria não encontrar janelas para se exibir, uma fresta que seja para acenar aos transeuntes. Como o vizinho doente do apartamento em frente. O gatinho frajola que adora se exibir no parapeito contíguo ao seu apartamento. Enfim, se você estiver impedido de se expressar pelas agruras de um coração de ferro — que assalta seu peito de vez em quando — acabará definhando como uma vela que se apaga. Minguando como lua cinza sem consolo no abandono infinito dos céus. É aquela velha história. Muita gente existe. Entretanto não vive. Locomove-se pelo cotidiano feito um autômato. Indivíduos de lata, vazios. A tal da felicidade virou palavra estrangeira. Língua medieval, sem tradução disponível na contemporaneidade. Sentimento saudável é tudo. Acorda cedo, se espreguiça, cumprimenta os demais com quem compartilha espaços. Tenta conversar com a raiva, que dá um soco no ódio, que vira instinto assassino. Não é à toa que sentimento que insiste em manter a boca fechada, alienado de si mesmo, aprisionado na própria e assustada alma se desintegra. Esvai-se, no meio de tantas experiências importantes pelas quais você costumeiramente passa. Sentimento amordaçado despede-se das suas emoções mais tenras, pela inconsciência do que o comove no intenso fluxo das artérias imiscuídas na sua rotina. O término dessa história já conseguimos deduzir. Sentimento asfixiado vira coágulo, destruição, secura, maldade e vingança. Pelo fato de deixar escapar as cores da vida, acaba sofrendo um enfarto fulminante. Mas fique tranquilo. Isso só acontece com quem já morreu e não sabe. O que não é o nosso caso, felizmente. Graça Taguti é escritora e jornalista. via Revista Bula

Na moenda da cidade grande

“Moenda de Silêncios: Encontros & Desencantos na Metrópole”, de Ronaldo Cagiano e Whisner Fraga, relata os desafios que dois personagens oriundos do interior de Minas Gerais enfrentam na cidade de São Paulo em seus verdes anos

Vazios modernos

“Amores, Truques e Outras Versões”, de Alex Andrade, acompanha uma caçada por prazeres vulgares, na qual a tecnologia serve de motor para o abismo de sentimentos