Opção cultural

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Concerto traz composições de sultões turcos a São Paulo

Com entrada gratuita, evento será realizado no dia 9 deste mês, às 19h30, no MIS, sob a batuta do maestro e compositor Musa Göçmen

Três personagens ilustres

Novo livro de crônicas de Danilo Gomes joga luz sobre três personalidades brasileiras, amigos pela vida toda, que tinham muitas coisas em comum, como a política e o amor pela literatura: Augusto Frederico Schmidt, Juscelino Kubitschek e Odilon Behrens

Sugestões para um mundo mais justo

Carta da escritora nigeriana transformou-se num manifesto contundente e equilibrado, sugerindo que as crianças leiam livros e oferecendo 15 sugestões de como aproximá-las do conceito de feminismo, que para a autora não está moldado na desigualdade de gênero

Sete poemas de Hölderlin

Poeta alemão que viveu entre a segunda metade do século XVIII e a primeira do XIX, Hölderlin é um dos grandes de todos os tempos; e, ao lado de John Keats, é um dos mais influentes na modernidade

Kazuo Ishiguro sugere que o esquecimento é uma porta aberta para a paz entre os povos

Os livros do nipo-britânico sustentam-se como literatura de qualidade, para além das ideias? “O Gigante Adormecido” é um romance que fica de pé

Dostoiévski e a perspectiva redentora

A escrita do autor russo caminha na borda do abismo. Joga-se em suas profundezas e, lá do fundo da lama, onde apenas os heróis não são completamente maculados pela sujeira, como afirmou o Homem do Subsolo, ele se levanta em ímpetos de fervor subindo novamente para as paragens seguras

“A cidade de Ulisses”, de Teolinda Gersão, é um prato cheio para o leitor amante de narrativas híbridas

Escritora portuguesa nos dá um livro vigoroso e abrangente porque realiza uma sinergética fusão entre romance, história e ensaio, daí sua abrangência temática e seu acento reflexivo

1967: o ano que morreu… e se revira no túmulo

A Tropicália tinha como objetivo uma revolução cultural, pretendia abalar as instituições em uma época que facilmente se tornavam símbolos de opressão

Muito mais psicólogos do que policiais

Entre as séries mais interessantes do ano, “Mindhunter” é um prato cheio para quem quer compreender o lado menos humano do ser humano [caption id="attachment_108365" align="aligncenter" width="620"] "Mindhunter" vem conquistando grande público pela qualidade da produção e da trama[/caption] Ricardo Silva Especial para o Jornal Opção Dois agentes do FBI que se propõem a estudar a engenharia psicológica de assassinos em série na década de 70, quando os estudos de psicologia criminal ainda eram embrionários, quase inexistentes. Para dar conta disso, a dupla formada por Holden Ford (Jonathan Groff) e Bill Tench (Holt McCallany) viaja pelo Estados Unidos entrevistando criminosos que cometeram os mais horrendos crimes e começa a traçar os perfis psicológicos dos detentos. Essa é a premissa básica de Mindhunter, série da Netflix, criada por Joe Penhall e produzida por David Fincher e Charlize Theron. O que poderia facilmente ser o mote para mais uma série pobre de investigação policial, nas mãos de Fincher — o verdadeiro núcleo criativo da obra — transforma-se numa inteligente narrativa ficcional. Baseado no caso real de dois agentes — John E. Douglas e Mark Olshaker que decidiram quebrar os protocolos da agência federal americana para estudar a estrutura mental de assassinos —, Minhunter sagra-se com uma das produções mais interessantes no seguimento de séries desse ano — ao lado de The Handmaid’s Tale, The Deuce, o retorno de Twin Peaks, apenas para citar algumas. Fincher — que dirigiu 4 dos 10 episódios — conseguiu imprimir seu DNA de forma definitiva na série — quem já assistiu Zodíaco facilmente concordará com essa afirmação. Com diálogos longos e muito bem escritos, a estrutura narrativa de Mindhunter não se concentra na velocidade. Sua ação é, como seria de esperar, totalmente psicológica. Com uma fotografia em tons pastéis, bastante sobria, que ambienta o clima da série de forma sombria e lúgubre — mas sem ser tenebroso —, a sutileza dos recursos permitem que o espectador receba o peso de cada cena na medida certa. O que vai dar intensidade à narrativa é a performance de cada núcleo: a dupla de agentes funciona com uma organicidade impressionante, a Dra. Wendy Carr (Anna Torv) é daqueles personagens hipnotizantes, e mesmo os criminosos têm suas psicologias e personalidades profundamentes bem captadas pelos seus intérpretes — com destaque para Cameron Britton e o seu irretocável Ed Kemper. Para o espectador familiarizado com a agilidade de cenas e as tramas cheias de plots de produções como C.S.I ou Criminal Minds, pode ser o que ritmo lento de Mindhunter não cative de primeira. Mas ao se dar conta da evolução muito bem construída dos personagens e de como suas vidas pessoais vão sendo influenciadas pelo seu ambiente de trabalho, o espectador mais sensível e esperto vai entender que está diante de uma grande obra — que já tem continuação garantida, segundo Fincher. O pioneiro trabalho de John E. Douglas e Mark Olshaker rendeu no livro “Mindhunter: o primeiro caçador de serial killers americano” — publicado no Brasil pela editora Intrínseca na tradução de Lucas Peterson —  que revela os procedimentos que a dupla precisou adotar para conseguir extrair os métodos, os gatilhos emocionais, as motivações dos serial killers — expressão cunhada pelos dois. Para conseguir isso precisaram ser muito mais psicólogos do que policiais. O trabalho de Fincher consegue exemplificar muito bem isso ao apresentar o agente especial Holden como um professor burocrata e meticuloso na primeira parte da série e, depois do contato com os criminosos, ele ir se transformar num irreconhecível burlador de regras e adotar comportamentos reprováveis pelo FBI afim de dar prosseguimento ao seu projeto e obter resultados mais autênticos e sinceros dos entrevistados. As cenas de entrevistas dos assassinos impressionam pela forma como cada um deles apresenta seus crimes. É possível entender ali que quem estava por trás daqueles crimes desumanos não eram bestas feras, ou qualquer espécie de animal. Eram humanos. Ao começar a traçar os perfis psicológicos de criminosos extremamente cruéis em seus crimes, Mindhunter apresenta algo que procuramos ignorar: a natureza humana pode ser profundamente cruel. Aquilo que chamamos “desumano” nada mais é do que outro desdobramento da natureza humana. A mente dos serial killers ainda estava numa zona gasosa para os estudos da psicologia criminal porque eles não eram compreendidos como humanos, tinham sua humanidade retirada por terem cometidos “atos desumanos” — como esquartejar um corpo e fazer sexo com o cadáver, por exemplo. No entanto, foi necessário o problemático processo de humanização desses sujeitos para conseguir submetê-los a um estudo. E isso gera conflitos — o agente Bill Tench é esse contraponto na série. Ao abordar esses meandros da natureza humana — como fez em Seven e Zodíaco — Fincher obtém uma fórmula preciosa na construção da estrutura de Mindhunter,  que é o estudo do grotesco criminal sem a necessidade de cenas gráficas, indo somente pela sua abordagem psicológica, muito mais sutil e interessante para quem vai se dedicar às dez horas da primeira temporada da série. Mindhunter é pura psicologia e loucura, explorando a natureza humana no que ela parece ter de menos humano, com bastante calma e maestria. Uma das melhores séries do ano, sem dúvida. Ricardo Silva é graduando em Filosofia pela Universidade do Estado do Amapá (UEAP) e crítico de literatura e cinema.

Fats Domino deveria ganhar um “Remembrance Day”

[caption id="attachment_108312" align="alignleft" width="300"] Fats Domino, um dos pais do Rock
[/caption] Marcelo Franco Especial para o Jornal Opção Fats Domino (nome artístico de Antoine Dominique Domino) morreu na quarta, 25 de outubro. Não teve chuva de RIPs nas redes sociais, mas dá pra entender: quem o conhecia provavelmente se perguntou “De novo?” ao ouvir sobre a sua morte. Tinha o quê, 90, 95 anos? Com 80 ou quase isso sobreviveu ao Katrina e foi resgatado no telhado da sua casa em New Orleans, onde, aliás, nasceu (na cidade, não no telhado...), algo para músico americano que é semelhante a sambista nascer na Mangueira ou sanfoneiro ver a luz em Juazeiro. Li nos obituários que vendeu 65 milhões de cópias dos seus álbuns, perdendo apenas para Elvis entre os pioneiros do remexe-quadril (e Elvis, quando chamado de “Rei”, costumava dizer que Fats era o verdadeiro monarca). Esse número meio que me deprime, confesso: se o sujeito está entre os inventores do rock, digamos assim, e vende essa quantidade absurda de discos, deveria ganhar feriado nacional e, sei lá, um “Remembrance Day”. Eis aí um mistério insondável. Mas dizem que ele vai ter um daqueles fantásticos enterros musicais de New Orleans; contenho-me quase à força para não pegar o primeiro voo para a Louisiana e, resignado, vou então ao Spotfy e ouço as minhas preferidas entre as suas interpretações, “I’m Walking”, hino rockeiro dos corações despedaçados (ao menos para a turma old school, que integro com honras — old school tanto em matéria de rock quanto de coração despedaçado, friso), e “Blueberry Hill, que, a propósito, Louis Armstrong também gravou belamente. Para acompanhar, cerveja, que era o que Antoine Domino (que lindo nome creole, não?) apreciava. Ah, sim, requiescat in pace, Fats. Marcelo Franco é Promotor de Justiça em Goiás. https://www.youtube.com/watch?v=oqs5gkyH930  

“A verdade desestabilizada” em Jorge Luis Borges (2): A cegueira como um “lento crepúsculo”

Vivendo na “umbrosa noite do silêncio” de sua cegueira, o leitor-escritor depara-se com as sombras, mas não decai para a escuridão a névoa o recobre para que “o sol interior” ilumine o leitor  [caption id="attachment_108303" align="alignleft" width="620"] Jorge Luis Borges[/caption] A cegueira de Borges, tal como em Homero, Milton, Joyce – e outros escritores –, pode ter sido decisiva para a produção diferenciada do escritor argentino que se fez conhecido e reconhecido no cânone da literatura ocidental. Harold Bloom chega a dizer que Jorge Luis Borges foi para o conto “a maior influência sobre o gênero (“short stories”) na segunda metade do século XX ”. E assim, o conto – conclui Bloom: “agora tende a ser tchekhoviano ou borgiano e, nalguns casos, influenciado por ambos”. Não inferior seria a importância e a influência de Borges na Poesia. O poeta, o ensaísta, o palestrante, o homem público, para quem a cegueira não chegou como um raio, um acidente inusitado, mas como uma doença progressiva, como um “lento entardecer”; variante pessoal significativa, a cegueira em Borges teve uma dimensão existencial que o coloca em paz consigo mesmo. Sua cegueira progressiva foi como um lento crepúsculo, fazendo com que Borges se tornasse mais compreensivo e com pequeno grau de revolta (e dor) que poderiam ter-lhe afetado mais decisivamente se vítima de uma cegueira gerada, por exemplo, por um acidente. Ao contrário, a cegueira o apazigua, a ponto de avaliá-la como um dom. Deus teria, segundo o poeta e contista argentino, trazido ao mesmo tempo os livros e as sombras, mas, ao enfrentar (com valentia) a cegueira, esta “não foi um desespero nem tampouco uma infelicidade total”. E mais: Borges tornou-se um poeta mais “musical”, trocando o mundo visível pelo mundo auditivo. Não ter sentido a cegueira como uma punição, deu a Borges a vantagem do que chama de “ter adotado um novo modo de viver” (uma espécie de dom) e se inscreve entre escritores ilustres que ficaram cegos, como Homero, Milton, William Prescott, Rafael Baralt e James Joyce – que, cegos ou quase cegos, geraram obras imortais na literatura. Ao assumir a diretoria da Biblioteca Nacional da Argentina, Borges o fez como quem segue o Destino, pois era o terceiro dos presidentes cegos da entidade, depois de José Mármol e Paul Groussac. Bastou a Borges que a coincidência de sua nomeação formasse uma tríade de cegos, para que enxergasse no evento uma conotação divina ou teológica – “se dois é uma mera coincidência, três é uma confirmação  —  e confirmação de ordem ternária, quer dizer, divina ou teológica[i]”. De fato, foram cegos José Mármol(1817-1871) – poeta, lembrado sobretudo por “Amália: um romance argentino”; Groussac, que, por sua vez, nasceu na França (1848) e faleceu em Buenos Aires (1929) – cujas obras principais, originam-se de seu ofício de professor e bibliotecário (“La Biblioteca” e “Annales”), além dos estudos sobre a história da Argentina. “Devo à cegueira muitos versos e o aprendizado de idiomas” – diz Borges numa conferência que ficou famosa (“La Ceguera”) e que ainda pode ser vista na rede, através do YouTube. Além disso, há “Elogio da Sombra”, um livro que é como uma evidência objetiva de que o cego está apaziguado com o escritor e vice-versa. Um cego[ii] Não sei qual é a face que me fita Quando observo a face de algum espelho; No seu reflexo espreita-me esse velho Com ira muda, fatigada, aflita. Lento na sombra, com as mãos exploro Meus invisíveis traços. O mais belo Fulgor me atinge. Vi o teu cabelo Que é já de cinza ou é ainda de ouro. Repito que perdi unicamente A superfície sempre vã das coisas. O consolo é de Milton e é valente, Mas eu penso nas letras e nas rosas, Penso que se pudesse ver a cara Saberia quem sou na tarde rara. Já se sabe que o autor argentino tinha na biblioteca sua visão pessoal do paraíso. Aos 70 anos, o autor de “Ficções” escreve um poema exemplar sobre sua relação com os livros e os dons. Sabendo que não poderia senão reconhecer as lombadas e sentir-lhes a presença – a quantidade de livros de uma biblioteca parecia a Borges algo sensível –, ao andar pelo espaço das estantes, conforme o comprovou em experiências de viagens ao exterior. Mircea Eliade bem pode subsidiar o leitor a melhor traduzir a experiência borgeana de produzir arte escrita – contos e poemas. Em “Imagens e Símbolos[iii]” ele afirma que “o pensamento simbólico não é domínio exclusivo da criança, do poeta ou do desequilibrado: ele é consubstancial ao ser humano: precede a linguagem e a razão discursiva. O símbolo revela certos aspetos da realidade — os mais profundos — que desafiam qualquer outro meio de conhecimento. As imagens, os símbolos, os mitos, não são criações irresponsáveis da ´psiquê´; eles respondem a uma necessidade e preenchem uma função: pôr a nu as mais secretas modalidades do ser”. [...] Sobre o homem decidido e cego que toma esse caminho, ocorre o que Eliade definiu assim: “ Fugindo à sua historicidade o homem não abdica da sua qualidade de ser humano para se perder na «animalidade»; ele reencontra a linguagem e por vezes a experiência de um «paraíso perdido». Os sonhos, os sonhos acordados, as imagens das suas nostalgias, dos seus desejos, dos seus entusiasmos, etc., são outras tantas forças que projetam o ser humano historicamente condicionado num mundo espiritual infinitamente mais rico do que o mundo fechado do seu «momento histórico». [caption id="attachment_108304" align="alignleft" width="620"] Borges na Biblioteca Nacional da Argentina[/caption] Borges foi um desses seres que fez um voo importante para fora do seu “momento histórico” e se dizia pouco preocupado com as datas, pois “as circunstâncias das datas não importam – só os fatos como os recordamos” e a partir desse olhar de sobrevoo sobre a história do Homem, um argentino do século XX, orgulhoso descendente de ingleses, tarde veio a estudar o idioma anglo-saxão e a poesia de seus ancestrais. Ainda firmado em Eliade, que cita o pensador francês Gaston Bachelard, garantindo que a criação baseia-se sobretudo na poesia e nos sonhos e, subsidiariamente, no folclore, poderíamos facilmente mostrar como sonhos e imagens poéticas prolongam os simbolismos sagrados e as mitologias arcaicas. Indiferente à galhofa, ou ao esgar de quem quer que fosse, ele era capaz de sair gritando junto com suas alunas e colegas de estudo do idioma anglo-saxão: “Lundeburgh/Londresburgo/Romaburgh/Romaburgo” – para significar que “a alta luz de Roma havia caído sobre as ilhas boreais de seus ancestrais” e esta luz era a mesma que povoava seus sonhos e seus escritos naquele momento. O próprio Borges já afirmara no “Livro dos Sonhos” (1976) que “Coleridge deixara escrito que as imagens da vigília inspiram sentimentos, ao passo que nos sonhos os sentimentos inspiram as imagens (...) Se um tigre entrasse neste quarto, sentiríamos medo; se sentimentos medo no sonho, engendramos um tigre...” (...) Junho, 1968[iv] Na tarde de ouro ou numa serenidade cujo símbolo poderia ser a tarde de ouro, o homem dispõe os livros nas prateleiras que aguardam e sente o pergaminho, o couro, a tela e o prazer que dão a previsão de um hábito e o estabelecimento de uma ordem. Stevenson e outro escocês, Andrew Lang, reatarão aqui, magicamente, a lenta discussão que interromperam os mares e a morte e a Reyes não desagradará decerto a proximidade de Virgílio. (Ordenar bibliotecas é exercer, de modo silencioso e modesto, a arte da crítica.) O homem, que está cego, sabe que já não poderá decifrar os belos volumes que manuseia e que não o ajudarão a escrever o livro que o justificará perante os outros, mas na tarde que é talvez de ouro sorri perante o curioso destino e sente essa felicidade peculiar das velhas coisas amadas. Sobre a “arte antiga e rudimentar da leitura”, poucos dela se aproximaram com tal paixão, criando sobre esta uma mitologia tão notável como a deste escritor argentino. A leitura foi para Borges, em dado momento, uma oitiva. Alguém lia para ele seus livros prediletos, levando-o a “reler”  textos antigos, por intermédio de leituras feitas pela mãe ou por sua secretária – até Alberto Manguel leu para el... Assim, o leitor-ouvinte passava por uma espécie de sonho e de aprendizado dantesco do real sentido das palavras. Ler uma a uma todas as palavras, como se deve, obrigatoriamente, fazer diante de um idioma desconhecido que se está estudando, tentando dominar, ler e reler no idioma nativo, mas sempre entender as nuances do que se leu. Esta parece ser a fórmula mágica do “fingidor” Borges que, segundo João Alexandre Barbosa[v], nos leva sempre a ler Borges pensando em outros escritores, fazendo analogias com outros textos (texto chama texto que chama texto); como se ler um texto fosse ler todos ou estar lendo outros textos, com ironia, ele “transfere para o leitor uma carga paródica e de fingimento” – aquela “verdade desestabilizada” de que falei na primeira parte deste ensaio. Ou, como sugere Bloom, ler Borges é como adentrar a “um labirinto vivo da literatura imaginativa”, tanto nos contos, quanto nos poemas, guiados pela mão de um gnóstico ascético e leitor voraz. Destarte, Borges analisa uma quadra do soneto do Quixote (de Lotário para Clóris), aqui na tradução dos viscondes de Castilho e Azevedo. “Da umbrosa noite no silêncio, quando Meigo sono refaz os mais viventes, Só eu vou meus martírios inclementes Aos céus e à minha Clóris numerando”. Vivendo na “umbrosa noite do silêncio” de sua cegueira, o leitor-escritor depara-se com as sombras, mas não decai para a escuridão – a névoa o recobre para que “o sol interior” ilumine o leitor. Da análise feita para o Quixote não me ocuparei agora, mas asseguro que o leitor comum ficará sempre em dívida com o crítico, tanto quanto com o escritor Borges, pelos desafios que nos propõe, pelas inumeráveis cifras que ele nos faz descobrir, das leituras novas que são propostas, pelos enigmas a dirimir. Há, no entanto, uma medida de espanto que o autor nos causa por ter lido infinitamente mais e tão mais profundamente do que nós – pelo menos no caso deste cronista –, em que sempre nos surpreende quando se sabe que, ao praticar a arte da escrita, este argentino-universal passou em muito a média de leitura de nosso tempo, seja pelo tempo de meditação e solidão que a cegueira o doou, seja pelo Amor, este, sim, ingrediente fundamental aos que praticam a literatura, tanto como autor, como leitor apaixonado. Devo a Borges o conhecimento de Bioy Casares, Chesterton, Blake, De Quincey, Léon Bloy e tantos outros. Devo-lhe as melhores interpretações do Quixote, de Pascal, de Carlyle, de Coleridge, de J.W. Dunne, de Keats e tantos outros bons escritores. Sua aproximação amorosa dessa coisa “leviana, calada e sagrada” que Oscar Wilde chamava Poesia lhe permitiu seguir à risca o que Dante (Canto V, Paraíso) chamava de o verdadeiro aprendizado: ter de memória inúmeros textos amados – seja no idioma nativo (espanhol), em inglês (anglo-saxão), francês e alemão. Dante já dissera: “Abre ora a mente pra o que te elucido, /e o guarda, que não faz erudição, /sem o reter, ter somente entendido” . A lição, como sabemos, vem de São Tomás de Aquino, para quem só o Amor pode expandir a capacidade da memória, pois esta é uma potência intelectiva da alma. Desse leitor ideal, retiro de “Elogio da Sombra”, esses versos que testemunham que Borges tomou a cegueira como um dom e continuou lendo e meditando, sonhando acordado. Um leitor exemplar. Borges é a figura d´O leitor por excelência, entre tantos. Um leitor Que outros se jactem das páginas que escreveram; a mim me orgulham as que li. Não fui um filólogo, não pesquisei as declinações, os modos, a laboriosa mutação das letras, o de que se endurece em te, a equivalência do ge e do ka, mas ao longo de meus anos tenho professado a paixão da linguagem. Minhas noites estão cheias de Virgílio; ter sabido e ter esquecido o latim é uma possessão, porque o esquecimento é uma das formas da memória, seu impreciso porão, o outro lado secreto da moeda. Quando em meus olhos se apagaram as vãs aparências amadas, os rostos e a página, entreguei-me ao estudo da linguagem de ferro que usaram meus antepassados para cantar espadas e solidões, e agora, através de sete séculos, desde a Última Tule, tua voz me alcança, Snorri Sturluson. O jovem, ante o livro, impõe-se uma disciplina precisa e o faz em busca de um conhecimento preciso; em minha idade, toda tarefa é uma aventura que limita com a noite. Não acabarei de decifrar as antigas línguas do Norte, não afundarei as mãos ávidas no ouro de Sigurd; a tarefa que empreendo é ilimitada e há de acompanhar-me até o fim, não menos misteriosa que o universo e que eu, o aprendiz. — “Alles Nähe werde fern” (Tudo que é próximo se afasta) – disse J.W. Goethe. Borges nos ensina que, tal como o sol se põe ao fim do dia, na vida tudo pode se esmaecer, fugir, afastar-se... o que está próximo bem pode daqui a pouco desaparecer; como este ensaio que se finda; como a vida do maior escritor argentino do século XX – um ser que soube “tirar da circunstância miserável de nossa vida, coisas eternas”, ele que se afastou deixando-nos coisas que desejamos sejam eternas – diante dele, o melhor é descer das estantes as formas em celulose chamadas livros, que ainda podemos ler sem temor, enquanto nossos olhos o permitem. NOTAS [i] Citado no artigo de Isabella Lígia Moraes: “A noite escura da alma: misticismo e cegueira em John Milton e Jorge Luis Borges”, cf. link da revista Capitu online, consultado em 16/10/2017: https://revistacapitu.com.br/a-noite-escura-da-alma-misticismo-e-cegueira-em-john-milton-e-jorge-luis-borges-8831a34a34f4 [ii] Tradução de Fernando Pinto do Amaral, em “Obras Completas III”, 1975-1985, Editorial Teorema, 1998. [iii] ELIADE, Mircea. “Imagens e símbolos”, Editorial Arcadia, 1979, p. [iv] "Elogio da sombra" (1969) - tradução de Carlos Nejar e Alfredo Jacques. [v] BARBOSA, João Alexandre. “Alguma crítica”, Ateliê Editorial, 2002.

Os “Cinco Magníficos” de Cambridge: comunistas, homossexuais e espiões – parte 1

O quadro em que tudo se desenrola é a ascensão e solidificação no poder de Hitler e Mussolini. De forma simplificada, esses espiões viam-se a si mesmos como tendo sido recrutados pelos soviéticos para “lutar contra o fascismo ascendente”. Obviamente que trair a pátria, nesse processo, para eles, era um mero detalhe [caption id="attachment_108211" align="alignleft" width="620"] Os cinco espiões de Cambridge[/caption] Frank Wan Especial para o Jornal Opção Conhecidos sob diversas nomenclaturas, os "Cambridge five" (Os cinco de Cambridge), Kim Philby, Donald Duart Maclean, Guy Burgess, Anthony Blunt e John Cairncross, é um grupo  de espiões duplos que pertenceram ao topo da hierarquia dos serviços secretos de Inglaterra. São o produto da mais alta educação que a Inglaterra da época podia fornecer, todos pertenciam à elite social e profissional e alguns são filhos da nobreza inglesa. Entre 1940 e 1951 tiveram acesso às informações mais sensíveis do estado inglês. Entraram, todos juntos, num jogo de vai-vem extremamente perigoso em que entregavam segredos à União Soviética e forneciam informações para o estado inglês. Na Inglaterra, são conhecidos pelos “Cambridge Five” ou pelos “Cambridge Spy Ring”. O termo “Cambridge” aparece na nomenclatura porque foram todos recrutados pela União Soviética durante os anos que estiveram na University of Cambridge. Recrutados pela antiga NKVD e posterior KGB, aparecem nos relatórios e descrições em russo como os “Cinco magníficos”. Em torno deste tema consegue-se estabelecer alguns factos, mas quase tudo está envolto em camadas espessas  de mistérios: por um lado poder-se-ia pensar que Ióssif Stálin se beneficiou muito com as informações fornecidas, por outro, quando se vê as opções tomadas quer por Stálin, quer pela Inglaterra (e por outros), as informações que correram tiveram pouca influência sobre os acontecimentos – convém não esquecer que, no âmbito militar e político, nesta época, as informações que provinham dos serviços de inteligência não tinham o peso que ganhariam mais tarde, acreditava-se mais na força bruta das armas. O que aconteceu realmente? Qual a sucessão de acontecimentos? Como conseguiram as coisas mirabólicas que conseguiram? Que métodos utilizaram? O que realmente os motivou? Penso que nunca teremos respostas completas, mas não restam dúvidas que os “Cinco magníficos” ficam nos anais da história como uma das melhores histórias de espionagem. A arte nunca conseguirá imitar os sucessivos absurdos que compõem a vida. A história dos cinco está ligada a Cambridge e ao Partido Comunista Inglês. O Partido Comunista Inglês foi fundado em 1920 e tomou o nome de “Comunist Party of Great Britain”, resultou da fusão de pequenos partidos marxistas. Durante a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Vermelha, o partido angariou muitos apoios de muitas comissões, não era um partido de grandes dimensões e organização, como o francês ou italiano, mas estava muito implementado entre muitos setores da sociedade inglesa – de forma misteriosa, o marxismo sempre foi muito atractivo para muitos membros da “nobreza” e, claro, para os intelectuais. As eleições de 1924 tinham sido ganhas pelo Partido Trabalhista com Ramsay MacDonald que ficou no poder muito pouco tempo. Seguiram-se medidas de austeridade fortíssimas com violentos cortes orçamentais que vão dar lugar a uma Greve Geral de 1926. É neste ambiente que o economista inglês e agente soviético Maurice Dobb cria a primeira célula comunista em Cambridge. Todos sabiam que Dobb recrutava entre os alunos da faculdade alunos que mais tarde seriam agentes soviéticos.  Com o tempo e o agravamento da situação econômico-financeira  a célula cresceu,  o Crash de 1929 fez o efeito final sobre as mentes: o capitalismo estava falido como modelo econômico e o comunismo era a alternativa. Um por um, o grupo dos cinco vai acabar reunindo: Kim Philby (nome de código: Stanley), Donald Duart Maclean (Homer), Guy Burgess (Hicks), Anthony Blunt (Tony Jonhson) e John Cairncross (Liszt). O número cinco é mais simbólico que real: o famoso coronel do KGB Oleg Gordievsky, também ele agente dos Serviços de Inteligência ingleses, entre outros, forneceu listas diversas com nomes fictícios e reais. Todos os livros de Gordievsky são extremamente interessantes, basta lê-los sempre cum granus salis já que, no fim da vida, assegurou uma confortável posição para si e para a sua família colaborando  caninamente com a inteligência americana e inglesa. De uma forma elíptica, sem entrar em detalhes labirínticos  argumentativos de que , estou certo, estas mentes seriam capazes, todos concordavam que o “sistema capitalista” era impotente face à crise que estava instalada e que as democracias seriam esmagadas pelo fascismo crescente e que, já sei que alguns olhos se revirarão aqui, só a URSS seria capaz de parar esta avalanche fascista. Obviamente que este caldo é regado por doses maciças de idealismo de que os “acadêmicos” são sempre pródigos. Comecemos pelo princípio, portanto, por Arnold Deutsch. Por muitas fontes que se consultem é difícil perceber qual é a nacionalidade de Deutsch. Uma coisa é certa: era espião soviético e foi ele que recrutou Tim Philby dando início a todo o processo. Arnold Deutsch, e todo o processo inicial, estarão sempre desfocados pela bruma envolvente. Deutsch está ligado a Viena de Áustria e toda a elite inglesa da época(e até europeia) era atraída pelo ambiente filosófico e social que se vivia em Viena. Na verdade estava em curso uma espécie de Woodstock à europeia, uma revolução sexual mais ou menos controlada. Os cinco magníficos tinham uma visão “revolucionária”, não apenas política e social, mas também sexual. Vejamos as listas daquilo que erradamente , no meu tempo, se chamava “opções”: dois eram gays, Burgess e Blunt, Maclean era bissexual, Philby e Cairncross eram heterossexuais insaciáveis. Para quem tenha conhecido, por dentro, os ambientes de Cambridge e Oxford sabe que o termo “ring” traduz facilmente os elos que se estabelecem naqueles meios. No fundo e na prática, bastava recrutar um elemento que os outros capilarmente se juntariam. Sem entrar em detalhes históricos, o quadro em que tudo se desenrola é a ascensão e solidificação no poder de Hitler e Mussolini. De forma simplificada, os cinco magníficos viam-se a si mesmos como tendo sido recrutados pelos soviéticos para “lutar contra o fascismo ascendente”. Obviamente que trair a pátria, nesse processo, para eles, era um mero detalhe. Lendo exaustivamente as declarações, livros e relatos de todos vê-se coisas estonteantes: nunca algum se chamou a si mesmo de “soviético”!!! quando se lhes é perguntado qual o objetivo das suas ações todos respondem com o bordão da época “trabalhavam para a paz”... trabalhavam para a paz porque, por exemplo, viam-se “simplesmente” como inimigos de Adolf Hitler – o facto de, para lutar contra o ditador alemão, passarem informações a um regime totalitário era totalmente desvalorizado. (Continua) Frank Wan vive em Portugal. É ensaísta, poeta, professor e tradutor.

“Mad Men” e a derrocada do homem contemporâneo

A série representa a derrocada do homem enquanto sujeito contemporâneo. Ao nos contar a história de Draper, Weiner conta a história do sujeito humano em vias de se transformar em pós-moderno, nas bordas das grandes explosões políticas e socio-culturais que já vivemos

Sua Majestade a Língua Espanhola

“Querem catalanizar a Espanha? Querem catalanizar-se a si mesmos? Querem fazer cultura? Pois terão de fazê-lo em espanhol, na língua em que escreveram Boscán, Campmany, Balmes, Milá, Piferrer, Pí e Maragall..., na língua em que hoje realizam obra de cultura política Maragall, Oliver, Zululeta...”