Resultados do marcador: Conto

[caption id="attachment_47909" align="alignnone" width="620"] Foto: Tumblr | Reprodução[/caption]
Marcos Nunes Carreiro
–– Mãe, ele riu.
–– Ele acha que ele está rindo.
–– É o formato da boca. Dependendo de como se olha, realmente parece que ele está rindo.
–– Mãe, olha. Ele riu.
De fato. Não é de duvidar que Eurípedes estivesse sorrindo naquela manhã, mesmo tendo passado toda a noite deitado na mesma posição. Afinal, morrera dormindo na tarde do dia anterior. Há um modo melhor para morrer do que dormindo?
Estavam todos tranquilos no velório. O corpo havia chegado à igreja depois da meia-noite e todos ali ficaram até o início da tarde, quando levaram o corpo para o cemitério. Cheguei às sete da manhã, talvez por isso já não tivesse ninguém chorando. Até Paulo, o filho mais novo de Eurípedes que ainda morava com os pais, aos 47 anos, devido à hidrocefalia, estava com o semblante limpo.
Na verdade, pensando bem, não foi o horário a fazer com que todos se entregassem à tranquilidade. Nem era aquilo pura aceitação. Eurípedes, um homem austero e justo, já havia orientado tanto Paulo quanto Margarida, sua esposa, sobre o dia que estava chegando. Ele sabia que, aos 89 anos, seu tempo deveria estar quase findo. Já não era exatamente saudável.
Mas havia sido na esmagadora parte de sua vida. O Velho Eurípedes era chefe de cozinha. Alimentou paladares aguçados, e outros nem tanto, por muitos anos. Desde os tempos em que ainda não era chamado de “o Velho”. Herdou o gosto pela comida da mãe e o bom apetite do pai, que fora conquistado pelo estômago, tanto quanto Margarida, sua nora.
A posição de chefe de cozinha, um dos melhores, possibilitou a Eurípedes viajar mundo a fora. Ele aproveitava as idas e vindas para fazer duas coisas: aprender o máximo possível sobre a culinária local, em todos os seus aspectos; e colecionar conversas com idosos. Eurípedes era sedento por histórias. As queria todas e ninguém melhor para contá-las que os velhos habitantes dos locais que visitou.
Esse era um hábito antigo. Quando menino, não era raro vê-lo aos pés do grupo de amigos de seus avós maternos. Chegava da escola, trocava de roupa e atravessava a rua em direção à casa dos velhos parentes. Sentava-se a seus pés e pedia para ouvir as experiências, anedotas e antigos contos. O garoto explorava as mais profundas memórias daquelas pessoas.
Era um bom grupo de idosos. Além de seus avós, Dona Europa e Seu Juvenal, havia também os amigos de infância deles: Seu Juarez, Seu Pedro, Seu Francisco e Dona Ana, esposa do último. Cresceram todos juntos. Dona Vânia e Dona Fátima, mulheres do Seu Juarez e do Seu Pedro, respectivamente, já haviam morrido quando Eurípedes nasceu. Mas ele as conhecia como se houvesse convivido com elas. Era uma boa relação. O menino queria ouvir e os velhos relembrar.
Foi assim que Eurípedes cresceu sabendo de muitas coisas e, provavelmente, recebeu o acréscimo de “o Velho” ao próprio nome. Já na adolescência, tinha a maturidade de um jovem adulto. Acostumou-se a aprender com os erros cometidos por todos que viveram antes dele. Quando completou 17 anos, emancipou-se e partiu para a cidade grande. Não tinha mais a presença de seu grupo de idosos, nem a possibilidade de atravessar a rua com tanta facilidade, mas tinha o discernimento necessário para saber o que queria.
Aos 25, já cozinheiro estudado e conhecido na metrópole, conheceu Margarida. Ela cantou no restaurante um dia e ele mandou, com cumprimentos, um prato especial à sua mesa. Tão especial quanto ela própria passou a se sentir daquele dia em diante. Casaram-se dali a um ano. Ela viajava muito. Ele passou a fazer o mesmo. Passavam poucos meses juntos e, de tempos em tempos, um viajava. Às vezes os dois. Não era fácil, mas Eurípedes voltava cada vez mais sábio e, com grandes novidades, fazia Margarida mais feliz que sua flor homônima o era na primavera.
Pararam com as viagens quando ela engravidou. Já não era tão nova. Ele estava na Índia quando recebeu o telegrama vindo da Argentina avisando que em breve seria pai. Voltou o mais depressa possível. Nasceu Augusto, morto em julho, oito invernos depois, vítima de pneumonia. Nessa época, já tinham Paulo, que acabara de completar dois anos. Sabiam que o filho mais novo nunca iria sair de perto deles devido a sua doença. Isso, somado à tristeza da perda do mais velho, foi motivo suficiente para que Eurípedes e Margarida se resignassem a não ter mais filhos.
Não os tiveram, mas foram felizes. Afinal, aos sete anos de idade, Paulo falava. Sua doença era menos grave do que imaginavam. Margarida já não cantava mais profissionalmente e Eurípedes era chefe do restaurante mais bem frequentado da cidade. Decidiram os dois, então, colocar Paulo em contato com pessoas felizes e falantes. Os idosos da casa de apoio próxima da residência do casal receberam bem a ideia. O chefe e a cantora, sempre sorridentes, alimentaram e divertiram vários grupos de velhinhos durante algumas décadas, até que eles próprios se tornaram idosos.
Paulo, a essa altura, era reconhecido no bairro. Mais sorridente não havia. Era sua marca e aquilo que também gostava de marcar nas pessoas que conhecia. Foi Paulo que ajudou seu pai a se levantar da cama naquele dia. O Velho Eurípedes precisava ir à fisioterapia. Era a última sessão. Havia caído umas semanas antes e lesionado o braço direito.
O taxi já estava à porta. Com a ajuda de Paulo, o ex-cozinheiro se ajeitou no banco traseiro. Com o auxílio do filho, ele subiu para a sala da fisioterapeuta. Na volta para casa, foi apoiado no único herdeiro, que pediu para se deitar a fim de descansar um pouco. E a cada ajuda, um sorriso acompanhado de um “obrigado, meu filho”.
Margarida deve ter se lembrado disso quando, seguindo a voz do filho, olhou para o marido mais uma vez.
–– Mãe, olha. Ele riu.
–– Sim, meu filho. Ele riu.

Marcela Haun Especial para o Jornal Opção Eu chorei. E chorei como nunca havia feito e mais do que devia. Cansei mais que um mundo inteiro e tive que engolir, com dificuldade, o pranto e a saliva acumulada na boca. E se eu tive dó de mim foi por sua causa. Você e esse seu irresistível jeito que me partiu ao meio. Ai, se eu soubesse! Se eu pudesse... Se eu tivesse sonhado, alguma vez na vida, que você iria aparecer, me vestiria de vermelho, afinaria a minha voz até ficar estridente e seria a pessoa mais fútil que já tivera o desprazer de conhecer. Mas acontece que eu tive que olhar para a sua distração parcial e te achar, no mínimo, interessante demais. Marcela Haun é jornalista.

[caption id="attachment_45332" align="alignnone" width="620"] Reprodução | Tumblr[/caption]
Paulo Lima
Especial para o Jornal Opção
A moça mal recebeu o folheto na calçada e já ia jogando fora quando percebeu algo que lhe interessava. “Odara, dona de muitos poderes, faz e desfaz qualquer trabalho. Traz seu amor de volta.” Obcecada, foi logo correndo ao local anunciado.
Era bem perto da sua casa. Estranhou nunca ter reparado naquela porta de ferro e vidro com uma plaquinha em cima com o mesmo nome descrito no papelzinho. Entrou. Uma senhora bem alta, gorda e sorriso de orelha a orelha, com roupas largas em tom azul escuro e laranja, cheias de pano solto e um turbante, a recebeu com as duas mãos estendidas, agarrando as dela logo na entrada.
― Como vai, querida? Em que posso lhe ajudar?
Meio sem graça, respondeu:
― Eu o li o seu folheto e queria muito...
― Já sei! Vem, senta aqui comigo. Procurou a pessoa certa!
Puxou a cadeira e se sentou de frente pra ela, numa mesinha redonda com uma bola de cristal no centro.
― Então... ― continuou ― Aqui diz, entre outras coisas...
A senhora atalhou:
― Traz seu amado de volta! É isso que você quer não?
Surpresa, de sua boca só saiu um "É...".
O diálogo pegou ritmo de vez.
― Como ele se chama?
― Leo.
― Leonardo, Leonel...
― Só Leo.
― Tá. E há quanto tempo ele se foi?
― Dois anos.
― Muito tempo... Nunca mais soube dele?
― Não.
― Por que ele desapareceu de sua vida?
― Ah... Tenho certeza de que foi por causa daquela cachorra... Ai que ódio!
─ Não! Nada disso. O ódio não leva a lugar algum. Confie em mim. A gente traz o seu Leozinho de volta.
― E quanto isso vai me custar?
― Quanto você esta disposta a pagar?
― Se a senhora conseguir, eu juro que te dou 5 mil reais!
― Hmmmm...
A vigarista procurou se fazer de difícil, enquanto se controlava para não pegar logo a rua e ir pessoalmente atrás do desaparecido com uma coleira na mão. Cinco mil era uma senhora grana.
― Escuta, minha filha, eu preciso pensar... Tenho muitos poderes, mas dois anos é muito tempo. Não sei se consigo, mas por você eu vou fazer o possível. Vou começar os trabalhos ainda hoje, ok? Volte amanhã neste mesmo horário e falaremos mais sobre o seu amado. Pode ser?
Para quem esperava há tanto tempo, um dia a mais não faria tanta diferença.
― Pode, sim. Até amanhã.
Enquanto a moça ganhava a rua, a velhaca ia costurando um plano. “Essa tá a fim de gastar. Tenho que aproveitar a deixa. Amanhã, vou colocar mil e uma dificuldades, dobrar o preço e pedir 50% de entrada. Digo para retornar uma semana depois e faço como o tal do Leozinho: caio fora! O aluguel tá vencendo e esse ponto é muito ruim.”
No dia seguinte, uma garota entusiasmada chega, toca a campainha e já vai entrando.
― A senhora é realmente muito poderosa! Vim lhe pagar o que devo.
Abriu a bolsa e depositou três maços de notas de 100 e 50 sobre a mesa.
― Minhas amigas vão fazer fila na sua porta depois que souberem...
A velha tentava disfarçar simulando humildade, mas no fundo não estava entendendo bulhufas.
― Imagine só: acordei de madrugada e olha quem tava lá na minha varanda, fazendo serenata, feliz de me ver?
― O Leo, claro! ― emendou a bruxa, tirando proveito da situação.
― O próprio!
Dizem que a sorte acaba sorrindo pra todo mundo. Aconteceu com a dona poderosa. Um mês antes, a cachorra que havia tirado o Leozinho do caminho da mocinha havia morrido. Passado o luto, ele resolveu voltar para a sua ex. E graças à bruxa ― quer dizer, ao destino ― sua cliente e seu amado cãozinho estavam novamente em lua de mel.
Paulo Lima é redator publicitário desde 1988, caminhando para 26 anos de atividades ininterruptas. Contista por natureza, vocação ou sina, escreve desde mini contos a contos maiores. Nesse balaio, inclui algumas crônicas.

[caption id="attachment_31981" align="alignnone" width="620"] Reprodução (Enaaa/DeviantArt)[/caption]
Paulo Lima
Max foi, de longe, o cachorro mais especial que eu tive. Soa injusto –– e é mesmo, reconheço –– eleger um cachorro dentre tantos que passam por nossas vidas, como que desconsiderando o fato inequívoco de que cada qual é particularmente especial do seu jeito. Mas, calma lá, eu logo explico.
Primeiro, vamos falar do animalzinho. Max era o que se podia chamar de “filhote da promessa”. A expressão tem um componente meio evangélico, mas se justifica. Durante anos, um tal Maxley, pintor de paredes que morava num bairro próximo, sonhou possuir uma cadelinha para homenagear o primeiro amor de sua vida, dois anos mais velha, de nome Janaína, ou Jana, como era mais conhecida. Homenagear... em termos. Na verdade, queria se vingar mesmo. Era ainda um menino nos seus quinze anos bem vividos, no auge do romantismo adolescente que, de tão ingênuo e pulsante, rivaliza com a libido da puberdade, quando descobriu tardiamente que a cachorra, quer dizer, a namorada, compartilhava seu amor –– e outras coisas mais –– com metade dos meninos do bairro, e muitos outros além dele. Além da desilusão, pagou muitos micos por conta desse amor multicorrespondido pela fogosa companheira. Se fosse nos dias de hoje, a forma como foi alvo dos comentários jocosos dos colegas durante meses seria um exemplo bem acabado do famoso bullying.
Pois bem: seu vizinho, dono de um ferro velho, prometeu lhe dar o último exemplar da última prenhez da Vadinha, nome de uma cadela já bem experimentada que, por mais de uma década, ajudou a povoar o bairro de pulguentos das mais variadas raças. E assim fez.
Mas não ocorreu exatamente como o planejado. Antes de dar o suspiro final, Vadinha ainda pôde lamber a derradeira cria de cor meio bazé, meio sei-lá-o-quê, cuja saliência abaixo do umbigo denunciava a chegada de um machinho.
Teve que ficar com ele. Mas não é de ver que o danadinho tinha lá seus encantos? Acabaram se afeiçoando de verdade e o dono resolveu dar-lhe o próprio nome. Foi aconselhado pela esposa a dar uma abreviada e, bobo que não era de questionar a patroa, passou a chamá-lo simplesmente de Max. Em tempo: a esposa dele era da Assembleia de Deus, daí aquele blablablá todo da promessa lá de cima.
Infelizmente, a relação entre os dois durou pouco. Três meses depois, o patrão foi mordido por uma cadela sem dono que vadiava por aquelas bandas –– ironia do destino? –– e não deu trela para os conselhos da digníssima, que insistiu até onde pôde para que ele tomasse vacina contra a raiva. Não tomou, e pagou caro por questionar a esposa pela primeira vez.
Dona Glória não tinha escolha. Para sustentar seis filhos, precisaria abrir mão de pequenos luxos, e ter um cão era um deles. Bateu em muitas portas até chegar à minha, chorou, implorou, pediu perdão a Deus e foi embora depois que eu me comovi com sua história. Depois me bateu aquele arrependimento, mas aí foi Deus que não quis me ouvir. Fiquei com o peludinho e seu pequeno defeito de fábrica sobre o qual comentarei depois.
Tive apenas três cachorros em vida. Todos eles fantásticos. O primeiro, Teseu, era grandalhão e abobalhado. Seu tamanho metia medo em quem não o conhecesse, o que foi de muita utilidade a casa nas tantas vezes em que eu era obrigado a viajar e deixá-la sozinha. Os filhos dos vizinhos se ocupavam de alimentá-lo nesses tempos difíceis. Eles sabiam que brabeza não morava ali, muito pelo contrário. Era uma criatura festiva que, mesmo tendo contraído câncer, ainda sorria pra todo mundo se esquecendo da própria dor. Foi duro ter que sacrificá-lo.
Encrenca foi o segundo. O nome era esse mesmo e quem o conheceu assinava embaixo. Perseguia motoqueiros e bicicleteiros –– naquela época não havia os termos ciclista e byker –– latindo com raiva contra todos que passassem na frente do seu focinho. Quase perdi um emprego por conta desse seu mau humor desgracento quando o carteiro resolveu pular meu endereço para não ter que encarar e sair correndo do cachorro da raça latidor-mordedor. Naquele dia, trazia ele a cópia de um contrato que eu deveria passar ao meu chefe depois de uma boa revisada. Sorte que o carteiro benevolente deixou a correspondência duas casas depois, nas mãos da Norminha, a gostosona do bairro, por quem ele nutria intenções suspeitas e, cá entre nós, eu e a torcida do Flamengo também.
Apesar de ter nascido com a pá virada, Encrenca era um doce comigo. Obediente, nunca alterou a voz –– ou melhor, o latido –– quando se dirigia a mim. Quando eu estava por perto, meus amigos chegavam sem medo e até brincavam com ele, passando a mão na cabeça, coisa que o safado particularmente gostava muito. Foi numa manhã de terça, sol a pino, que levou um pipoco de um jornalista manquitola, o Orlando, que de segunda a sexta ia pro trampo na garupa da moto do cunhado, também colega de jornal. Me contaram que ele já estava de saco cheio de todo dia ver o bicho se aproximando, com a bocarra quase lhe alcançando a perna doente, e decidiu pôr fim ao desassossego. Sua mira foi precisa. O pobre cão não agonizou, o que me deu um certo conforto, quando me lembrei de tudo o que passei com Teseu.
Mas, o que fez o Max ser o mais especial? Finalmente vou dar a tão esperada explicação. Além de absurdamente bom de faro e de ouvido, ele era, por assim dizer, um cão vidente! Tudo bem... Vou ser mais claro. Aquele bicho parece ter nascido com o dom de prever o futuro. Sei que é meio redundante esse lance de “prever o futuro”, mas, considerando que os economistas deste país não conseguem prever nem o passado, o pleonasmo tem lá os seus méritos. Ainda mais em se tratando de um cachorro de verdade, e não de um político cachorro, redundâncias à parte.
Seu dom espiritual ou algo parecido funcionava –– seria esse o verbo certo? –– mais ou menos assim: antes que alguma coisa ruim me acontecesse, lá estava o Max me livrando do perigo. Uma vez, numa calçada cheia de tapumes isolando o lote ao lado, ele estacou na minha frente e não deixou que eu seguisse adiante de jeito nenhum. Tentei dar a volta, puxando-o pela coleira, ralhei com ele, e nada. Pois no minuto seguinte caiu um amontoado de tijolos da construção do edifício atrás do muro de tábuas, arrebentando na calçada poucos metros à minha frente. Escapei por muito pouco.
Tudo não teria passado de mera coincidência se, no mesmo dia, ele não me tivesse mordido a barra da calça antes de eu atravessar a rua, me atrasando por cinco segundinhos, prazo em que um carroceiro perdeu o controle do seu veículo e o conjunto cavalo-carro-de-madeira, tudo junto e misturado, passou por cima da minha sombra projetada à frente. Se o Max não tivesse me retardado o passo...
Certo. Você dirá: ele apenas prestou atenção no cenário em volta e, por instinto, tomou atitude de proteção ao dono. Concordo, em termos. O pequeno de fato agia como meu protetor, um verdadeiro anjo da guarda canino. Mas, como explicar a outra vez em que ele fingiu de doente para eu não sair de casa e, horas depois, fiquei sabendo que o ônibus que eu tomava sempre no mesmo horário bateu com um caminhão, pegou fogo e mais de vinte pessoas partiram dessa pra outra melhor? Pois, presságios como esses ocorriam com tanta frequência que eu passei até a andar com medo sem o Max por perto...
Claro, nem tudo era nóia na nossa relação. Tínhamos uma convivência normal, de gente comum pra cachorro comum. Quando precisava chamar a atenção dele, o chamava de Maxley, seu nome original, carregando no acento sobre a sílaba “ley”. Ele entendia e vinha de cabeça baixa, como um garoto que apronta na escola e se encaminha para a sala da Diretora, esperando pelo pior. Quando queria vê-lo alegre, chamava-o de forma silábica, cantando como na fala dos paulistas: Máa-quis! E lá vinha ele com o rabo balançando, que na linguagem universal da espécie significa: “Você nem imagina o quanto me faz feliz!”.
E tinha mais motivos para ele ser o meu preferido. Não conheci e nunca ouvi falar de um cachorro que fosse diariamente à banca de revistas buscar o jornal, trazendo-o na boca em troca de um cafuné. Mesmo o Encrenca, que adorava esse mimo, jamais se dignou ir lá me fazer esse agrado. Menos mal... Com aquele seu estilo enervado não conseguiria mesmo chegar até o destino sem ter corrido atrás de metade da vizinhança...
Falando nisso, antes que surja a pergunta, já vou adiantando: Max era de raça pura, sim. Um vira-lata puro. Não se lhe notava nenhum traço de ascendência nobre. Nada, nada. Era um tomba-lata legítimo e parecia se orgulhar disso. A mim não fazia diferença: nunca vi cachorro como produto e nunca me passou pela cabeça vendê-lo. Por isso nunca fiz propaganda de seu comportamento, digamos, profético, na expectativa de despertar interesses e faturar em cima. Fomos feitos um para o outro, ou pelo menos eu queria acreditar nisso, e ele também.
Dizem que toda história triste tem um final feliz e vice-versa. Num sábado de agosto, dia de feira naquele canto afastado de Porto Velho, na calorenta e úmida Rondônia, Max tentou me salvar uma vez mais. Mas, naquele dia, as coisas não saíram como de costume. Começaram uma briga na banca de pasteis, alguém sacou de uma arma e começou a atirar a esmo. Eu era um dos esmos que estavam na linha de tiro. A vontade de me proteger foi tamanha que, ao pular sobre o pistoleiro eventual, meu herói acabou provocando novo disparo e o resto já deu para intuir.
Acho que agora, definitivamente, está bem entendido. Aprovem ou não, o Maxley –– o pequeno grande Max! –– vai ser sempre lembrado como o cachorro mais querido. Pois, passados quase cinco anos do incidente criminoso, e apesar do seu defeitinho de fábrica –– já ia esquecendo de dizer, ele era cego de nascença –– até hoje meu bom companheiro faz questão de trazer o jornal do dia e depositar no meu túmulo.
Paulo Lima é, desde 1988, publicitário e escritor nas horas vagas desde sempre.

[caption id="attachment_29764" align="alignnone" width="620"] Matheus Antunes é ilustrador[/caption]
Marcos Nunes Carreiro
Chuveiro semiaberto para afastar melhor o gostoso, mas frio, ar matutino. Com a cabeça encostada no azulejo recém-colocado no banheiro acinzentado, Laura pensa arduamente em como escrever. Queria, aliás, precisava dizer à Isis que não iria vê-la este ano. Conheceram-se há tempos e chegaram a morar juntas por uns meses. Adora a casa da amiga, pois, desde o momento em que a porta se abre já é possível ver algumas das telas de que gosta mais, embora suas favoritas fiquem expostas na galeria. Há alguns retratos de Laura lá.
Adora o lugar e a companhia, mas neste ano não dá. O livro está atrasado e ainda há muito que fazer se quiser levá-lo às lojas a tempo do feriado prolongado. Por isso a cabeça encostada no azulejo. Olhos fechados para dar melhor fluidez aos pensamentos, enquanto a água lhe cai sobre os alvos ombros, levando consigo as palavras de que não necessita e, ao mesmo tempo, fazendo movimentar as duas pintas que tem logo abaixo do braço direito.
Abre os olhos a tempo de ver todas as palavras que tinha em mente descerem pelo ralo.
Desliga o chuveiro e, com a toalha, tira o esfumaçado do espelho para poder se ver. O novo corte que seus belos cabelos louros adquiriram dias antes demandará um novo quadro de Isis. Toalha alçada ao pescoço, caminha livre e lentamente pelo corredor que leva do banheiro ao seu quarto.
Pelo corredor, livros. Livros de todos os tipos. Livros empilhados. Livros adequados a crianças e outros bastante inadequados. Livros por todos os lados. Livros grandes e pequenos, em brochura e em capa dura. Livros que discutem ou ilustram. Livros que narram. Livros na frente de outros livros e que refletem as diversas fases e interesses de Laura. Estão ali as palavras?
Toalha molhada em cima da cama. Veste-se, peça por peça, sob a morna luz do sol que entra pela janela ainda fechada. Venta lá fora. É possível perceber pelas árvores a balançar na praça em frente ao seu prédio. Levanta-se e vai olhá-las, esquecendo-se que está só de sutiã.
Abre a janela, o vento eriçando sua pele. Pensa no conto que escreveu por último. Isis está nele; estão as duas sentadas em um daqueles bancos de praça tão comuns e caros a elas. Lá embaixo, vê Heitor, seu amigo que mora a alguns quarteirões de distância, chegando ao Café que existe ao lado de seu prédio. Pega o envelope enviado por ele há dois dias, coloca o texto corrigido lá dentro e vê que está atrasada.
Volta-se, pega o computador e digita: “I’m waiting u this year”. Enviar. Sai vestindo a blusa, mas esquece a porta aberta.

Yago Rodrigues Alvim
As caixas desempilhadas, esparramadas do pé da cama à porta entreaberta. Fotografias fora da caixa, roupas desbotadas fora do cabide, do fundo da gaveta, amontoadas em livros sobre livros, ao lado de cds, na mesinha sem arranjo. Cama desnuda, de noite atormentada.
Mormaço escalado em paredes de cortina amarrada. Copo meio vazio, no criado mudo em meio a farelos também sem sal. Botou as mãos na cintura, depois de sequer um fio amarelo sobrar na testa suada. Umedeceu os lábios e cerrou os dentes, ante o olhar disparatado a imagem estatelada no espelho. Endurecidas, se entreolhavam até o ínfimo poro do poro da pupila estática. O ar atracara nas narinas, na goela, nos pulmões secos. O ar suspendia-se no ar.
A interferência chiando em preto e branco na tevê da sala, o arroto do liquidificar jorrando ninharias amareladas por todo o piso da cozinha, a descarga desenfreando água pela tubulação do vaso, vasando água pelo chuveiro, uma lesma caminhando no jardim. Ela de pé, no quarto.
Queria esmagar, por tudo, por si, a lerda lesma na lida da grama ao concreto da passarela.
Queria salgá-la, com o sal que derramava dentro de si, em silêncio. Queria salgá-la com a maré de sequer uma grama salgada que gastara com ele. Queria riscá-la feito rabisco de vai-e-vem desenfreado. Máquina descabeçada. Queria riscá-la até as unhas roerem no negro de tantos riscos, enfeitando de sangue o risco, o risco, o risco, o risco, o risco, o ris-co. E solfejar amarga, um “uh” aliviado.
Queria entender as tralhas, desvendar as travas que a emperravam sempre no meio do caminho. Aos trancos, queria tropeçar num pulo e alcançar outro lugar. Que não fosse ali, que apagasse a fumaça, antes mesmo do trago. Queria um cigarro. E a dor no meio da testa surgia estúpida e deselegante ante a imagem intacta. Acrescia no fosso do crânio. Enegrecia-a e ariscava a sede no céu da boca. Chorou sem lágrimas.
Chorou até que escorresse nas maçãs pálidas do rosto coragem suficiente para arremessar longe as caixas, desempilhando-as, abrindo a porta. Chorou até sobrar fiascos de memórias rasgadas dentro da caixa. Chorou desabotoando os retalhos sem cor junto aos cabides. Chorou até que nenhuma palavra sequer sobrasse sobre as linhas. Chorou até a cama atormentar-se com a noite. Chorou até o mormaço cair morto pelo chão do quarto. Chorou, muda, o sal.
Desligou a tevê, bateu um suco de maracujá. Banhou-se. E sentou na varanda com seu cigarro aceso.

Cristiano Deveras
Era novamente eu e a estrada. A vastidão do nada à frente e a mesmice do que ficou para trás, os horizontes que atravessavam as janelas do veículo, celerados, assustados e velozes. Não, acho que era eu quem corria demais. O pé direito afundado no acelerador me dava uma vaga suspeita disso.
Tentei lembrar-me o que havia me levado ali: a) um ano dedicado aos estudos e um concurso que no fim das contas, não deu em nada; o que leva invariavelmente a um b), estar tão deslocado no seu próprio eixo, devido ao isolamento para estudo e às profundas meditações transcendentais e sem sentido, que a melhor forma de se recolocar é sair por um tempo e depois voltar, acertadamente ao seu lugar, ou fingindo metodicamente estar.
Então, meu irmão fechou animadamente um negócio com um primo meio trambiqueiro, que mora no extremo norte do Estado. Era para trazer um carro para minha mãe, um Honda Civic 2007, com todos os apetrechos que um carro deste porte deve ter. O transportador seria eu, que iria de ônibus e voltaria guiando. Não me perderei nestes detalhes. Até porque não lembro muito bem de nada depois disso. Fui colocado ou direcionado ao meu assento no banco do ônibus por algum funcionário da viação; como houve um senhor atraso no embarque, passei meu tempo ocioso na lanchonete mais próxima do embarcadouro, cervejas e whiskys falsificados me fazendo companhia. Podem não ser as melhores companhias do mundo, mas te ajudam a passar o tempo. Daí que a ida foi um sono contínuo, uniforme e vomitado. Acredito que ganhei alguma antipatia dos outros passageiros. Talvez tenha tido isso do motorista também, a contar pelo jeito que me empurrou porta afora, quando chegamos na cidade do meu destino. — E que destino! — exclamei.
Sob um calor de no mínimo cento e cinquenta graus, a rua principal esturricava abandonada. Olhei quase no fim dela e vi a garagem de meu primo, ao lado de um agradável botequim, um oásis de calma e beleza rodeado de palmeiras — Melhor pegar o tal carro e me arrancar daqui, ou corria o risco de ganhar raízes profundas.
Cheguei com cara da ressaca encarnada, ainda não havia comido nada, depois de uma noite de solavancos e sonhos entrecortados. Carlos, o parente vendedor de veículos, me deu um abraço mais falso que uma moeda de dois reais:
— Grande Juliano! Como é que tá o cara mais famoso da família Werneck? — Até que vou bem, mas não sou o mais famoso: o primo Alceu é quem tá bombando nas manchetes agora, depois daquele caso de desvio de dinheiro público. — Ah, mas isso é ficha. Em pouco tempo o povo esquece disso, vai por mim. Mas no teu caso, você é um artista, um escritor, daí que não dá para esquecer. — Isso se você escrever. Como não ando escrevendo, dane-se. É este o carro?
Ele fez um sim desconfiado, como uma raposa na porta do galinheiro. Deixei que o desdém do meu olhar demonstrasse que não me animei nada com o escolhido. Olhei em volta e todos os outros automóveis tinham o mesmo ranço estético; vários outros sedans alinhados, juntamente com alguns hatchs econômicos e algumas pick-ups monstruosas. Nenhum conversível, nenhuma motocicleta endiabrada, nenhum escape de duas ou quatro rodas. Foi então que o vi. Parado no canto, me chamando, quase ordenando que o ligasse. Era um carro de sonho. Na verdade, uma lenda. Deixei o escolhido de lado.
— Roda? — O quê, aquele ali? Você deve estar brincando, não é para sua mãe? — É, mas a gente divide o carro. Daí que acho que aquele ali é perfeito. Pega a chave.
Girei o segredo no tambor e senti o motor explodir: aquilo sim, é que era o som verdadeiro de uma engrenagem em movimento, o bom e velho carburador, não aquela coisa insossa da injeção eletrônica. O barulho do motor me impedia de ouvir o que meu primo teimava em gritar ao lado do carro. Ele apontava alguma coisa para dentro do veículo e eu somente acenava a cabeça, sorrindo maquiavelicamente como se entendesse tudo. Por fim, ele se aproximou e disse:
— ... Fora isso, tá tudo beleza. Fiz o motor, o câmbio e a suspensão, o bicho tá tinindo! Mas ainda acho melhor você colocá-lo em uma cegonha ou levá-lo sobre um caminhão. — E perder o melhor da festa? Nem na bala.
Acertei a papelada com Carlos, comi alguma coisa que pedimos diretamente do botequim e comecei o meu retorno para casa. Não via a hora de cortar o espaço com aquela máquina. Atravessei a cidade com controlada ansiedade, louco para chegar na rodovia e começar verdadeiramente a rodar. Quando as rodas de liga leve começaram a desfilar na estrada, vi o brilho do olhar dos fãs de motores chegando a corroer as fortes latarias. Meu ser começou a se integrar com o veículo logo após os oitenta por hora. Senti o volante se tornar uma extensão de minhas mãos e os pedais grudarem-se aos meus pés, o coração correndo em uníssono com o motor e minha força sendo transmitida pela transmissão daquele carro dos sonhos.
Era novamente eu e a estrada. Foi quando percebi o que meu primo tentara desesperadamente me mostrar. O painel de instrumentos, vez por outra perdia o contato, ficando estático, sem fornecer informação nenhuma. Isto me fez gostar ainda mais daquele carro, pois suas falhas em muito se assemelhavam às minhas: sem marcador de RPM, nem ele nem eu sabemos a própria força ou potência; isto geralmente atrapalha muito coisa, seja em um aclive acentuado ou em um relacionamento conturbado; sem o controle do combustível, nunca sabemos até onde teremos gás para podermos ir, seja na estrada ou na vida, mas dane-se, quem perde tempo com isso? Um dia tudo acaba mesmo. A falta do velocímetro me impede de saber a que velocidade estou indo, mas algo dentro de mim me assegura que estou indo no tempo certo, no momento exato, e que em mais ou menos tempo chegarei em algum lugar; já a falta do marcador de temperatura é grave, pois assim como o motor pode fundir devido ao excesso de calor, sua falta na vida nos deixa sem saber se nossas relações estão próximas da ebulição ou em total e completo congelamento.
Todas estas conjecturas ajudam a despertar mais uma companheira de viagem que me acompanha desde muito. Minha velha e conhecida sinusite. A dor que se espalha pela cabeça se assemelha a milhares de pequenas e pontiagudas facas distribuídas pelo crânio, com uma raiz profunda que desce por detrás do olho direito e se esgueira pela orelha, chegando a sussurrar coisas obscenas em meu ouvido; não tomo analgésicos pois eles causam dependência e a pior coisa do mundo é estar dependente (de algo ou de alguém). Por esta razão me apeguei a esta dor como um náufrago a uma tábua.
Mas acho que me enganei. A pior coisa do mundo não é a dependência, mas sim viver frustrado. É pior que morrer duas vezes; uma porque se sabe que ainda vai morrer, outra, porque realmente todo o sentido da vida se esvai com aquela imagem de quem você deveria ter sido. Neste exato momento vejo um eu bem sucedido sentado no banco detrás, rindo amigavelmente para mim, tentando me passar alguma confiança. Foda-se.
Enquanto devoro quilômetros rodas abaixo, com o pensamento solto e livre, tentando decifrar o código secreto da vida, ao lado sempre aparece um ou outro apressadinho tentando apostar corrida comigo; ao adentrar um carro poderoso (ou se destacar de qualquer outra maneira) você sempre verá as pessoas (pelo menos as pessoas mais idiotas) te chamarem para um racha, uma aposta ou uma desafio qualquer. Ao não aceitar, estarão todos te avaliando por questões de valentia ou medo, mas ninguém (salvo raras exceções) perceberá que não procedeu daquela forma justamente para não fazer aquilo que as pessoas esperem que você faça.
Acredito que exatamente por isso que trouxe este maravilhoso Maverick V8, e não o tal Honda... Apesar de meu irmão quase ter enfartado, fico sempre tocado ao saber que minha mãe é, aos quase sessenta anos de idade, a feliz proprietária de um autêntico muscle car. E sinto-me como um garotinho, toda vez que Mamãe, dirigindo seu V-oitão pelas ruas, vai me buscar em mais um sarau de poesia, enquanto vou bebericando meu Jack Daniel´s madrugada afora... A lei seca pode ter me privado de um dos meus passatempos prediletos (direção ébria pós encontro literário), mas ao menos serviu para melhorar meu relacionamento familiar.
Cristiano Deveras é escritor.

Estou na esquina. Se tivesse de escolher um homem honesto para cumprir esta missão, eu me escolheria. Tenho trinta anos, dois ternos, um par de sapatos e minha honestidade. Meu pai não deixou nenhum bem ao morrer. Ele me dizia: Filho, minha herança será a honestidade. Com a honestidade, reconheço, não se compra apartamento ou carro novo, mas tem-se a consciência tranquila e isso não tem preço. Ele repetia: Isso não tem preço.
Estou aqui há mais de três horas. Faz um calor dos diabos. O sol não dá bola pra honestidade. Tanto faz ser honesto ou ladrão, se sua da mesma maneira. Não sei o rosto do homem que recolherá o pacote. O sigilo é alma da missão. Pode ser qualquer um: a velha que passa, a mocinha de jeans, o velho de boné, o militar de farda entre os civis, o rapaz da prancha de surf.
Aprendi a controlar os instintos. Quase não me movo. Tomo ordinariamente pouco líquido. Um homem, para cumprir a missão, não pode ser vencido pelas partes baixas do corpo. Posso passar um dia sem urinar. O mesmo acontece com a comida. Preciso de um mínimo para me manter em pé. Até o sono. Um homem que dorme muito não pode cumprir a missão.
Disciplinei meu corpo. Um homem honesto precisa disciplinar o corpo. Tenho um orgulho que não reparto com ninguém. Se contasse, diriam, mentiroso. Controlo meus sonhos. Tenho consciência de que sonho e os dirijo. Um homem honesto tem que controlar até mesmo o inconsciente.
Que me interessa se posso parecer suspeito? Os transeuntes não dão bola para um homem parado numa esquina. Só os desocupados ou os comerciantes da rua dão conta de mim. Os vendedores — as lojas hoje em dia andam às moscas — vêm até a entrada da loja. São homens de gravata e camisa branca de manga curta. Não usam paletó. Não se precisa de paletó para vender geladeira, aspirador de pó, batedeira ou televisão.
Sou um homem bem vestido numa esquina. Um homem bem vestido numa esquina não desperta suspeitas. Percebo alguns desocupados. O camelô grita bugigangas. O mendigo pede dinheiro no sinal. É um falso mendigo. Numa sociedade justa não haverá mendigos. Numa sociedade justa não haverá nem mesmo a necessidade de que um sujeito como eu se poste na esquina.
Percebo outras coisas: há leve trottoir de duas mocinhas. Quem passa não percebe nada. É dia, a calçada cheia, talvez nem mesmo os vendedores percebam o que percebo. A honestidade às vezes nos torna ingênuos. Mas a minha honestidade não é apenas inata. Aprendi a cultivá-la como quem exercita músculo. A honestidade é elástica e pode tornar-se flácida. Ou aumentar o tônus.
Dois malandros tentam me roubar o pacote. O primeiro me pergunta algo. Quê? Outro vem por trás. Nada é mais criança em nós que a atenção. Reajo, luto. O sujeito mais manhoso é o baixinho. É forte como o diabo. Ninguém me ajuda. Abre-se um círculo, grito, esperneio, o pacote se rasga. A multidão assiste impassível. Pode até ser que tenham algum sentimento de revolta ou de solidariedade com os bandidos.
Os bandidos hoje estão em todas as partes. Certa vez fui empenhar as joias de minha mulher. A fila se desorganizava. Vinha o guarda, escolhia um elemento. Servia de exemplo. Preferia as mulheres e os idosos. Batia impiedosamente. Quando desmaiava, dois seguranças levavam o desordeiro para dentro da agência. O guarda se afastava. Esperava o próximo levante. De longe, já sabia quem seria a vítima. Estivesse ela ou não fora da fila. Ao chegar a minha vez, empurrei o pacote. Na primeira oportunidade, o caixa me mordeu a mão. Gritei. Por fim, com muita dificuldade — e com os dedos intatos — consegui retirar minha mão.
Talvez o público esperasse ver sangue e, aí então, reagiria de outra maneira. Em vez de indiferença, ficariam exaltados. Uns contra mim; outros, a meu favor. Quem sabe não se moveriam de seus lugares, mas torceriam e xingariam como no boxe ou nas rinhas de galo. Esta luta que eu e meus desafetos travamos mais parece coisa de mulher. Há empurra-empurra, dentadas, unhadas. Aos poucos, o público se entendia e vai procurar outra contenda ou acidente. Algo que os atice e tire da rotina. Algo com sangue, porque as brigas e acidentes sem sangue não monótonas como filme com pouco enredo.
Por fim, uma alma vem me auxiliar. O homem atarracado, meio calvo, pele seca e amarelada, olhos fundos e sem brilho, vestindo terno surrado, grita-lhes algo. Os bandidos fogem. O embrulho permanece intacto em seu interior. Meu medo é de que se rompesse. Teria forçosamente de saber o conteúdo. Um homem honesto não deve conhecer o conteúdo dos pacotes.
Passei a noite e a manhã inteiras na esquina. Uma hora qualquer dessas aparecerá o sujeito que receberá a encomenda. Um sujeito que faz abordagem deve saber a hora certa. A esquina é esta. Estou seguro. Um homem honesto não pode abandonar o posto. Poderia muito bem ir para casa.
Do outro lado da rua, sujeito baixo, gordo e suarento chega à esquina. Está bem vestido. Debaixo do braço, o pacote. Deve ser também homem honesto. Não nos olhamos. Não sinto sede nem fome. Muito menos sono. Fui preparado para ser homem honesto. Os camelôs começam a aparecer, as lojas abrem. Algumas pessoas bafejam o ar frio da manhã. As pernas sempre atrasadas para o trabalho.
Nas duas outras esquinas aparecem homens bem vestidos, com belas gravatas, sapatos impecáveis. Todos os dois carregam pacotes. Já não estou só. Não me atacarão. Nem quero supor o que traz o pacote. O pecado não está apenas em cometê-lo. Pensar é uma forma de transgredir. Se controlo o sono e os pesadelos, tenho de aprender a controlar os pensamentos.
Ronaldo Costa Fernandes é escritor.

[caption id="attachment_20100" align="alignright" width="620"] M. File[/caption]
José Fernandes
Florinda entrou pela porta lateral da Matriz de São José de Botas e ajeitou-se à frente do primeiro banco, próximo à nave. Contrariando a espécie, não se deitou ou demonstrou qualquer constrangimento por encontrar-se em meio àquela multidão. Acompanhou a missa com o rabo espichado, revelando-se senhora de seu ato, como se aquele evento religioso fizesse parte de seus hábitos. Executava os mesmos movimentos dos fiéis. Levantavam-se; ela se levantava. Sentavam-se; ela se sentava. Padre José Paiva, compenetrado no rito e no ritual da transubstanciação, não lhe sentiu a presença. Á hora da consagração, ela abaixou a cabeça. No momento da pronúncia das palavras de poder e transformação, ergueu os olhos, como se também dissesse “Senhor meu e Deus meu”. Só não trazia um ramo às mãos, a despeito de tratar-se de missa de Domingo de Ramos.
Ao término da cerimônia eucarística, sem que a ninguém incomodasse, colocou-se ao lado, próximo à porta, aguardando os fiéis se organizarem na procissão que percorreria a Praça Cônego Pinto, Rua do Rosário e retornaria à Matriz. Tudo pronto, ela se pôs atrás dos fiéis, como a observar a ordem das filas e a sentir melhor a repetição do rito que lembrava o ontem cristão. Ao retornar, procurou adaptar-se ao novo espaço à frente do altar, posto que as crianças, portanto ramos às mãos, em atualização daquele gesto primeiro, dispuseram-se entre os bancos e a mesa do sacrifício. Ao longo do percurso, entretanto, encontrou um ramo no chão, certamente perdido por alguma beata distraída, ou por alguma criança traquina, recolheu-o entre os dentes e caminhou com ele, como se sua posse fosse imprescindível à consumação daquele ritual.
Finda a cerimônia, cada um voltou à sua casa. Creio que poucos se deram pela sua presença e por aquele fato inusitado. Mas, durante toda a Semana Santa, ela acompanhou todos os gestos que trazem à memória o trágico acontecimento da morte de Cristo. À cerimônia do lava-pés, ela se postou ao lado das personagens que representavam os apóstolos. Portava um olhar indefinido, expressão de curiosidade e de quem desejasse também ter os pés lavados, a fim de purificar-se de alguma mácula invisível, sequer desconfiada pelos humanos. Na procissão do Senhor Morto, enquanto Verônica cantava e desenrolava a efígie do Cristo coroado de espinhos, ela gania baixinho, fazendo coro a alguns fiéis mais emotivos, certamente arrependidos de seus pecados. Houve quem risse do inusitado e quem se contristasse a pensar que ela trouxesse alguma mensagem do além. No domingo de páscoa, após a missa, deitou-se em meio à calçada entre a casa de Robson e a de Elias. Dava a impressão de que aguardava algum pedaço de chocolate ofertado pelas crianças, felizes por haverem encontrado o ninho do coelho.
A partir daquela semana, em todos os eventos religiosos da cidade, Florinda se fazia presente. Não se sabe como ela sabia dos horários e dos lugares em que eles se realizariam. Chegava, à hora exata, às missas, inclusive quando elas foram transferidas para a igreja de Nossa Senhora Aparecida, em decorrência da reforma por que passou a Matriz. Em dias de novena, como a que se faz por ocasião da Senhora Peregrina, ela ia à casa dos componentes do grupo, religiosamente. Acompanhava o terço, sem incomodar quem quer que fosse, e se retirava, ao final, quase sem ser percebida. A cidade já se acostumara com sua presença, e até havia quem visse nela a reencarnação de alguma alma penada a pagar os seus pecados. Houve até quem arriscasse algum palpite, nomeando pessoas que, segundo se relatava, assombravam porteiras, capoeiras e encruzilhadas. Os pelos furta-cores de Florinda propiciavam ilações relacionadas com algum falecido, pois conferia, à noite, uma tonalidade espectral, além de seus uivos chorosos em noites de lua-cheia.
O tempo propiciou-lhe conhecer todas as pessoas da cidade e, inclusive, saber-lhes os hábitos, pois, em uma missa de sétimo dia, a que as irmãs Timim compareceram, a fim de homenagear a amiga de infância, Ernestina Fernandes, Florinda as recebeu com alegria esfuziante. Ao contrário de outras ocasiões, fugiu inteiramente ao ritual de condolências próprios das missas de réquiem. Parecia dar-lhes as boas vindas, já que as via, pela primeira vez, a participarem de um culto religioso. Entrou pelo meio dos bancos e lhes pulou aos colos. Quase lhes beijou as faces. Mas, tudo de forma muito educada, como se soubesse até onde deveria expandir a sua satisfação. Os olhos dos fiéis, mesmo daqueles mais concentrados na celebração, caíram sobre elas. Não houve quem não deixasse escapar um risinho maroto, não sei se pela simpatia das Timim, ou se pelo comportamento inesperado de Florinda.
Mas a religiosidade de Florinda não se encerra na frequência às missas. Dispunha de um faro especial para cerimonias religiosas. Não se sabe como, bastava que alguém pensasse abrir as portas da Matriz, que ela já estava por ali, à espera do acontecimento. Duas semanas após a Semana Santa, faleceu Antônio Pedro. Era uma quarta-feira, e não havia nenhum culto, à tarde. Todavia, o passamento do avô do Padre José Paiva requeria missa de corpo presente, com todos os ritos propícios aos mortos. Aberta a porta lateral, ao lado direito, Florinda entrara junto com o sacristão. Quando Padre José chegou, ela, discretamente, aguardava a chegada do cortejo fúnebre. Assim que a urna mortuária chegou, colocaram-na sobre a essa. Assim que os familiares tomaram seus assentos, Florinda sentou-se ao lado da essa, como que entristecida pela próxima ausência eterna daquele ser humano.
Normalmente, cachorro entra na igreja porque encontra a porta aberta e, quase sempre, sai logo, porque as pessoas, discretamente, dão um jeito de vê-lo longe do templo. Com Florinda, talvez em decorrência de sua discrição, ninguém se incomodou. Por isso, manteve-se ali, encolhida, durante a missa e, depois, na realização da benção do corpo. Na sequência, aguardou que todos saíssem para, em um gesto inesperado pelos presentes, acompanhar o féretro até o cemitério. Saiu pela porta da frente, como todos os acompanhantes, a fim de não desorganizar o cortejo e, pareceu-me, em sinal de respeito, pois sair pela porta lateral implicaria interromper os passos do falecido à casa dos tempos.
O cortejo seguia a passos lentos, como se todos estivessem retardando aquele momento imponderável de separação. Os filhos, tantos; os netos e bisnetos, inúmeros; e os amigos colhidos ao longo dos longos anos. Se o féretro parava por momentos, Florinda mantinha-se à distância, sem misturar-se ao grosso do povo, talvez receosa de que alguém a molestasse, embora parecesse acreditar ser aquele o seu lugar, pois estava curiosa por ver como ocorria a despedida definitiva de um humano.
Um dia, à tarde, agoniada, corria em volta do templo à procura de uma porta aberta. Em pouco tempo, via-se o féretro subindo a rua do meio. Ela, imediatamente, correu ao encontro do cortejo e, à frente, dirigiu-se à igreja. Entrou e postou-se próximo à essa, aguardando que, nela, alojassem o caixão. Ao choro dos familiares, começou a ganir em tom agônico o passamento de Antônio Feliciano, morto na fazendo de Antônio Belo, perto de Arco Verde.
Terminado o ritual das exéquias, ministrado pelo Padre Geraldo, àquele dia, aguardou os acompanhantes do féretro porem-se em movimento, para iniciar sua tarefa de guia até o cemitério. Lá, guiada por algum instinto ou por algum espírito dos mortos, dirigiu-se, como que magnetizada, ao túmulo da família. Posto o ataúde no chão, ouvia as palavras do orador, como se as entendesse, porque, a cada palavra de expressão doída, em decorrência da passagem do amigo por ele proferida, parecia-lhe dilacerar o corpo, em uma dor de real confrangimento. À reza do réquiem, fechou os olhos, a fim de se pôr em comunhão com o falecido e, sobretudo, com o Senhor dos mortos, para que recebesse com a alegria de amigo aquele que fora ceifado da vida.
Assim que saiu das dependências do cemitério, porém, seu comportamento macambúzio e discreto converteu-se em alegria, ao perfilar-se com Beijinho. Pulava e corria para lá e para cá, ao seu redor, como se lhe fizesse uma festa. Ele, que a via pela primeira vez, não entendia aquele carinho; ainda mais quando ela, erguendo-se, rapidamente lhe deu verdadeiro beijo na face. Essa cadela deve estar me confundindo com alguém aqui da cidade. Nunca vi um animal me fazer tanto carinho; nem o Tupi, que viveu, até morrer, na fazenda, e me ajudava a juntar o gado no pasto. E olha que eu o tratava como se fosse alguém da família, tamanha a amizade que nos devotávamos. Estou até constrangido, no meio dessas pessoas que só conheço de ver pelas ruas da cidade.
— Florinda gostou de você, compadre Beijinho! Será o que ela viu em você? Deve ser o cheiro do Cambalé que você trouxe na barra das calças. Ele não lhe acompanhou pelo pasto hoje?
— Pode ser, compadre Cassimiro. O fato é que não estou gostando dessas intimidades! Nunca vi esse animal antes!
Duas semanas se passaram, quando Florinda, em uma manhã de sábado, acho que 14 de agosto, postou-se à porta do cemitério, ao aguardo da chegada do coveiro. Acompanhou a abertura da cova naquela parte mais sinistra, em que se não veem túmulos. Horácio estranhou que ela não se encontrasse, como sempre, nas proximidades da matriz de São José. Ao ver o féretro vindo dos lados de Arcoverde, correu e pôs-se à frente dos poucos acompanhantes, a guiá-los ao local exato em que se procederia ao sepultamento. Era Beijinho, assassinado no capoeirão de João Pinto por Adão Bento!
Diferentemente dos outros enterros de que Florinda participara, ela não demonstrou aquele semblante soturno e contristado e nem aquele comportamento discreto que lhe possibilitou conquistar a simpatia dos habitantes de Alto Rio Doce. Parecia alegrar-se com a morte daquele amigo de poucos minutos, conquistado há apenas duas semanas; mas respeitou a mansão dos mortos. Porém, assim que se viu fora de suas dependências, pôs-se a saracotear em frente de José Belo, num verdadeiro ritual de saudação à amizade. Zé Belão, assim chamado pelos amigos, ficou vermelho, ao ser distinguido entre os participantes do cortejo com aquelas manobras de carinho. Será que ela sentira em mim o cheiro do Botuca? Cachorro é um animal muito estranho. Apenas vi essa cadela assistindo a algumas missas. Nunca me aproximei dela, e nem ela de mim, e ela vem me assediar hoje. O pior é que pula no meu peito e me suja a camisa. Já corre na cidade que ela previu a morte do Beijinho. Eu, heim!
Semanas depois, Zé Belão sentiu-se sufocado. Era meia-noite, na roça, sem condução para ir à cidade. Andava pra lá e pra cá, dentro de casa, sem pegar no sono. Seu irmão, Ângelo, chegou a vê-lo naquele estado. Deu-lhe um calmante, na esperança de que ele dormisse, para, no outro dia, levá-lo ao médico. Mas ele fora categórico: minha hora chegou. Pela manhã, Ângelo, ao dirigir-se ao seu quarto, encontrou-o morto. A notícia logo chegou à cidade. Elias, ao saber do ocorrido, ficou ressabiado, pois presenciara o ritual celebrado por Florinda, dias antes. O enterro, entretanto, seria em Arcoverde, no túmulo da família. Todavia, assim que o coveiro começou a subir o morro que demanda aa cemitério, a fim de providenciar a abertura do túmulo, deu com ela à porta da igreja. Ela encontrava-se ali para chorar a morte. Credo! Se essa cadela vier pro meu lado, vou dar-lhe uns pontapés. Sai de mim coisa ruim!
Ninguém a viu voltar à cidade. Mas, na missa de sétimo dia, celebrada pelo Padre José Paiva, lá estava ela, contrita, a fazer coro aos amigos de Zé Belão. Lembro-me bem de que, a despeito de a igrejinha de Arcoverde encontrar-se lotada, ela entrou pela porta lateral, do lado da casa paroquial, e ficou ali, à frente, próximo aos familiares do falecido. Deu uma olhada para Floripes e Alípio, mas não os incomodou. Terminada a missa, saiu discretamente enquanto os amigos cumprimentavam, com sofridos pêsames aos irmãos de Zé Belão: Ângelo e Conceição. Mas, comentando mais tarde o ocorrido, em uma roda de amigos, Edith, Cátia, Cristina e Adair disseram-nos que, no mesmo dia e horário, ela estava no sepultamento e na missa de sétimo dia do Padre Geraldo.
Jose Fernandes é escritor, crítico literário e doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

As amarguras de Gertrudes doíam na alma tropeçante de quem parasse um pouquinho só para observá-las. Havia um sorriso de penumbra sempre lhe embaçando o olhar cor de chuva, de tormento, de desvairo e de profunda solidão.
Gertrudes apareceu na cidadezinha assim como sarna surge, de repente, sem explicação. Chegou com sua maturidade acalmada, retinta de fogo morto, sobrando apenas cinzas fabulosas. Alugou a casa da viúva Eleonora, do seu Tomás, aquele de olhar branco, com os cabelos grudados e que possuía um sorriso tão alto e cheio de estranha sonoridade, que espantava os passarinhos de todas as árvores da praça e os morcegos da torre da igreja de Nossa Senhora do Bom Parto.
Gertrudes montou seu “ateliê de costura” (como escreveu na placa rústica e simpática do portãozinho) e trouxe tecidos de cores primorosas e sem semelhança com outras cores de uso acostumado. Esses panos passavam uma intranquilidade danada no espírito dos homens de todas as idades e um contentamento esfuziante no espírito das mulheres.
A freguesia cresceu como a brisa de maio, assim silenciosa e rápida, inflexível em sua presença, que rangia de tão cheia de frescor. Gertrudes, muito prosa, falava até espumar os cantos da boca e contava grandeza do amor de seu homem, e tocava a pianola, e dava corda nos relógios, e plantava lírios amarelos nos fundos da casa e girassóis no jardim. Mas as amarguras de Gertrudes iam atrás dela, de tão forte presença que se assemelhavam a vultos de espíritos num acampamento solene.
A sociedade amou rapidamente aquela mulher, que dizia com a boca benta de paixão: “Meu marido chegou de viagem tarde da noite, agora dorme. É viajante, não tem porto, o coitado. Ama o lar, mas a profissão o consome. Vamos falar baixo, pois, se ele acordar, fica ansioso o resto do dia”. Puxava a porta, trazia as botinas sujas de lama para perto da bacia no corredor do jardim. A mala abria sobre duas cadeiras ao sol.
Todo mundo que frequentava o ateliê de costura, sempre ouvia as estórias de Romão, esse nome sempre envolto de onírico mistério ruidoso, palpável e, sobretudo, impenetrável. Ninguém nunca o vira, só sinais do cavalheiro distinto que “estralava” de amores por Gertrudes.
Sempre um presente acompanhava o retorno daquele rapaz escalavrado de vítrea aura impermeável, e que sufocava o ambiente com um perfume de macho saudável, vigoroso e quase satisfeito plenamente.
E Gertrudes fazia bolos e broa, peta e biscoitos, rocamboles com frutas cristalizadas, tão perfumadas, e abarrotava de “quitutes” os guarda-comidas. Sempre havia dois pratos, dois copos, duas xícaras, duas chávenas, e assim por diante, na enorme mesa “antigona” e toda trabalhada, acomodada num salão, só para refeições. A toalha rendada de branco céu e, em tudo por tudo, uma zelosa harmonia parecia dançar valsa naquele ambiente. O interior da casa sempre sóbrio, elegante e distinto, bonito de se contemplar.
“Gertrudes não é desse mundo, gente!”, diziam as moças cheias de vida e encantadas com tudo. Leninha jurou de pé junto que viu mais de uma vez seu Romão atravessar o pátio dos lírios desesperados. E contava na praça: “Ele é lindo, altão, moreno claro, tem uns olhos tão verdes como uma folha de parreira nova. É perfumado, o homem. Deixou no ar um cheiro tão bom, que nem dei conta de ir embora dali, até que o sol me queimou e, quando ardeu minha pele, consegui sair andando. Ele tem as mãos longas e macias. Deram-me calafrios. Quando cheguei em casa, tive febre a noite toda. Esse homem veio do começo do mundo, gente!”
A aura do marido de Gertrudes crescia com fama audível, indomável. Seus cheiros, sinais, astros, marcas estavam por todos os cantos e cantoneiras da casa. A curiosidade de vê-lo era atiçada, fora de toda compreensão, quanto mais casos Gertrudes cantava de Romão. De como o conhecera, do dia do casamento, do filho que lhe morreu na barriga, porque um jacaré imenso apareceu rolando no limpo chão.
Esse dia, Gertrudes, entrecortada de dor, pensou que fosse morrer e engomou a mortalha que bordara em noites de espera de Romão. Inteiramente de vidrilhos cor de água, cor de espuma, em desenhos e arabesco geometricamente riscados e que, olhados de longe, imitavam uma biga com sete cavalos e um cavaleiro, como aqueles antigas que corriam nos primórdios dos tempos cristãos, na cidade de Roma, que, de tão conhecida, até pereciam-lhe os encantos.
Era sempre e sempre um martírio sem conta, de uma fundura custosa, aquele sofrido pelas senhoras e moças que visitavam o ateliê de costura de Gertrudes.
E ela voejava pela imensa casa como borboleta, sempre a fazer mil coisas. E, entre uma e outra, olhava-se no espelho e contava mais um caso, e revelava as noites de amor com aquele potro de legítima gentileza e incansável ternura.
No fim de pouco tempo, as pernas das adolescentes, das moças velhas e novas, das donas viúvas e das senhoras casadas tremiam só de pensar em ter de experimentar o vestido, de provar a saia plissada, ou verificar se o chapéu melancólico, mas cheio de luz, estava em ponto de prova satisfatória.
Quem andava com a alma cheia de musgo, zumbindo resignação dolorida de ciúme consistente, como aço, era cada marido, ou cada pai, ou cada irmão.
O perfume de Romão, sempre rarefeito, sufocava e parecia derreter os ossos e nervos das freguesas. E Gertrudes a contar suas noites afogueadas, mostrar os presentes e pedir mais silêncio, pois ele ressonava. Chegara novamente de longa viagem.
A agitação interior das meninas costumava provocar câimbras nos pensamentos delas, as coitadas, ouvintes das confidências pesadas de tão reais, fundindo o coração e a alma, resultando daí um caldo de angustiante desejo e curiosidade sem termo.
Às vezes, quando a ausência da viagem era maior, Gertrudes caía na cama, inapetente, pálida e, todas as tardes, chorava inclementemente, que toda a cidade começava a rezar para que a profunda amargura descesse o rio o deixasse a costureira sossegada. Mas logo chegava o moço, com seus assombros em brasa, seu perfume e paixão indecifráveis, seus suspiros que carbonizavam até planos e bordados. Os quatro cantos da cidade pareciam sacudidos por terremotos dolorosos de tanto carinho.
Ninguém nunca conseguia explicar o porquê da desatinada amargura que emanava sempre e constantemente da costureira Gertrudes, estando o nobre amo e senhor presente ou estando em suas obscuras ausências de ambulante, mascateando miudezas raras e curiosas.
Após mais de ano de tanto martírio, meia dúzia de aventureiras insalubres e desalmadas planejaram invadir o quarto do cavalheiro para vê-lo dormindo e em pelo, pele, suores e suspiros.
Isso, evidentemente, quando Gertrudes fosse às compras na feira do morro ou no mercado velho, onde costumava ficar horas piruetando entre as vendinhas, aproveitando um gole de café, e então contava as façanhas de seu amado distante ou presente bem dentro de sua alcova dominada pela penumbra e cheiro de céu.
Numa manhã cravejada de mau agouro, as meninas tomaram coragem e penetraram no imenso e silencioso recinto. O homem ressonava, coberto de linho puro todo bordado de rosáceas de seda. Bárbara de seu Tonico, o seresteiro afamado, acendeu a vela da cabeceira, enquanto as meninas, devagarinho, para não despertá-lo, foram lhe tocando os linhos com a leveza das mãos e das palavras. O resfolegar da serpente interior das fêmeas mugia solene naquela manhã calorenta e pasmada até a raiz das nuvens.
Com vagar e doçura, foram descobrindo o rosto, os ombros, o meio do corpo daquele homem moreno, fragilizado pelo sono, dormindo tão justo e casto. Até que, por fim, descobriram-no por inteiro, nu, repousando na beleza de um deus grego, tão silencioso como uma estátua perfeita e fascinante de um museu de Tróia.
Era o dia do fim do mundo. Ele, ali, verdadeiro e completo. A menor das moças, Ditinha de Sá Rita, tocou-lhe os lábios. Estavam frios como gelo. Assustadas, vieram todas apalpando os cabelos de seda, os ombros cheios de flores, o peito vigoroso de pelos lisos e dourados e os pés alvos e de perfeição rara de se ver. Ele estava ausente de alma? Habitaria naquele instante o mundo subterrâneo, levado pela “indesejada de todas as gentes?”
Não é possível! Abram as janelas, acendam luzes do alto, escancarem tudo para o sol chegar! O ar fresco, restolho da madrugada há pouco morta, entrou em cheio no aposento. E elas reviravam agora aquele homem acalentado tanto tempo em sonhos, cercado de intenso silêncio e fragilidade exposta.
Os minutos enfraqueciam nos relógios de toda terra, para chegarem a mais esquisita constatação: era um boneco de goma, espécie de uma borracha, perfeito dos perfeitos.
Com mãos trêmulas e úmidas de suores, abriram-lhe com tesoura o ventre delicado viril e incandescente. O grito soou rompendo tímpanos. Uma caixa mecânica incrustada no plexo solar, para que os suspiros, gemidos ali dormitassem cumprindo sua sina cronometrada. O resto era algodão com sementes, saindo aos borbotões. Os olhos de vidro, lindos, brilhantes e lacrimosos. As orelhas, lábios e língua feitos de matéria como uma borracha especial e macia. Gritaram até a outra madrugada chegar. A cidade acorreu em massa. Frei Lauro, o caolho, veio tropeçante em pura castidade, suando frio com roxo beiço tremido.
Depois de três dias de afobação tresloucada, sentiram falta de Gertrudes. Esvaziaram Romão, beijaram-lhe todas as partes, num misto ódio e amor, e o partiram em pedaços nobres e pouco nobres. O perfume no ar, e Gertrudes nunca aparecia. Cada qual pôde levar um pedaço para casa, nem que fosse uma unha, daquele sonho deitado acima de todas as compreensões. As trevas vieram em forma de aguaceiro sem nome, sem tempo, e provocaram mediana enchente, lambendo pontes e pinguelas.
Uma semana depois, na prainha, bem abaixo do matadouro, estava Gertrudes, perfeita como viva, abraçada com os agrados que buscara do seu amado. Eram colônias, sais de banho, presentinhos e enfeites, um anel de pedra lilás, tudo para Romão, homem de suas palavras diurnas e noturnas. Nada sucumbiu à chuvarada e nem à enchente.
Gertrudes guardou entre os seios e braços os presentes do viajante, tudo bem guardadinho, para aquele que havia voltado de mais uma viagem. Mas quem pegou a estrada dessa vez foi Gertrudes, não foi o cavalheiro amoroso. A alma de Gertrudes foi vista mais de uma vez; às vezes, tomava forma de uma pomba sempre esperta e fria.
O corpo em nada foi maculado, mas recendia aquela antiga amargura disfarçante, que ficou repousando por todos os recantos da cidade, vinda daquela mulher que parecia adormecida, na curva maior da prainha, coberta de violetas e solidão. Ninguém nunca esclareceu se a senhora Gertrudes teria morrido na hora exata em que descobriram e violentaram seu sagrado segredo, ou se aguaceiro lhe havia roubado a flor da vida.
Até o último momento, ao fechar o esquife, ainda possuía o frescor dos vivos, a tristeza de quem está partindo e a saudade desmesurada de um ente querido que perdera definitivamente.
Augusta Faro é escritora.

Itaney Campos Não, não guardo raiva ou pesar pelo que me aconteceu. Aqui e agora já não há espaço para esse tipo de sentimento. As tragédias têm reduzida a sua dimensão, passam a representar apenas um infortúnio a mais, no oceano de carnificina que é a existência humana no mundo. No entanto, não posso negar que me pesa algum desconforto, uma certa insatisfação, algo que me constrange fundamente. Não, não chega a ser um aborrecimento. Na verdade, não sei definir essa sensação. Percebo que o que não me satisfaz é a consciência que esse fato, de que fui vítima, e seus protagonistas, não estejam completamente identificados e suas circunstâncias efetivamente desvendadas. Agora, em olhar retrospectivo continuo tendo dificuldades de reconstituir a ocorrência, de visualizar os seus personagens e individualizar as condutas de cada um. Eu me vejo inicialmente no interior de um veículo, reconheço que ali estou a contragosto, alimentando uma sensação de insegurança. Gostaria de saltar do automóvel, mas algo me impede. Já nem sei se estava amarrado ou algemado ou preso à lataria do veículo. O motorista não me ouve, faz ouvidos de mercador às minhas súplicas. Logo em seguida, já me vejo sob a mira de uma arma, um sujeito estranho profere ameaças, me insulta, brada que eu mereço a sova que vou levar, o sofrimento que vou ter de expiar. Observo que havíamos saído da estrada municipal e, depois de seguir por uma estradinha vicinal, numa distância aproximada de quinhentos metros, o veículo estacionou no meio do cerrado, a cerca de cinquenta metros daquele trilho. São dois os elementos que me mantém imobilizado, amarrado com os braços para trás. Posso vê-los, estão de pé, do lado de fora, ambos armados. Não os reconheço, mas a intuição me diz que meu fim se aproxima. Eles mencionam meu envolvimento com uma mulher, cujo nome declino de registrar aqui, acrescentando os meus algozes, aos gritos, que eu devia aprender a respeitar família alheia, comportar-me como pai e marido de mulher honesta, e não como um desgraçado que faz a desgraça dos outros. Naquele momento, percebi nitidamente que suas palavras iradas serviam de alimento à sua raiva, queriam encher-se de ira, provocar-me, para, então, descarregar sobre mim o seu ódio. Tento argumentar, no pouco espaço de tempo deixado por suas maledicências, por suas maldições, procuro mostrar que fui seduzido por aquela mulher, que não fui o primeiro com quem ela mantivera um caso clandestino, traindo o marido. E foi aí que me dei conta de que estava sendo alvo de vingança, que se tratava ali de crime encomendado, e minha morte era a empreita. Reparei que as armas se tratavam de dois revólveres cromados, de cano longo, provavelmente de calibre 38.0. Quando pronunciei as primeiras palavras para tentar convencê-los a desistir da empreitada, porque teriam maior ganho com o que eu lhes poderia pagar, senti o relâmpago da dor percorrendo meu corpo, penetrado por uma sequência de balas. O barulho seco dos estampidos feriu duramente os meus ouvidos. Uma dor agudíssima no peito me fez consciente de que uma das balas me transfixiava o pulmão. Ou, quem sabe, o coração. Senti-me desfalecer, a friagem que me avassalou o corpo era indicativo seguro de que um processo de hemorragia interna se desencadeara. Fui perdendo a consciência como se mergulhasse na escuridão de um poço sem fundo. No entanto, eu ainda percebia alguns sons, tinha consciência do meu corpo fragilizado, um último lampejo de lucidez exigia que eu lutasse contra aquele torpor mortal. Foi nesse momento crucial, de agonia inigualável, que senti a violência de mãos segurando-me a cabeça, puxando-me os cabelos, expondo meu rosto desfigurado e forçando-o para cima. Aquele que se jogou sobre mim tinha uma faca na mão direita. Meu corpo, que já pendia para a esquerda, foi violentamente empurrado contra a lateral do carro, vindo a ficar apoiado na lataria, meio fletido. A cena que se seguiu já não posso precisar se tive consciência dela no momento mesmo de sua ocorrência ou se só agora, em consideração retroativa, apreendo a sequência de sua execução. Lembro-me bem e, ainda me dói de forma lancinante essa lembrança, que algum resquício de consciência latejava em meu cérebro. De alguma forma, ainda que minha pressão sucumbisse, a friagem enrijecesse meus músculos e doessem os meus ossos, eu sentia que uma facada impiedosa seria desferida sobre o meu corpo inerte. Os meus carrascos tinham pressa em concluir o seu serviço macabro. Só não pressentia, e nem pressenti no ato, porque possivelmente só agora tomo consciência disso, que o golpe cruel se dirigia para o meu globo ocular. A lâmina entrou rasgando no meu olho direito, em meio ao sangue que esguichava. O executor não se perturbou, aparentemente, com o jato de sangue que escorria por sua mão, seu antebraço e atingia sua camisa. Nervoso, cortava os nervos, veias e artérias, na tentativa de extrair o globo ocular, provocando um fluxo contínuo de sangue que se espalhava pelo encosto do banco e respingava no meu rosto, no seu rosto, na lataria e nas imediações das poltronas traseira e dianteira. O procedimento e a crueldade compulsiva repetiram-se no outro olho. Consumada a tarefa, as órbitas vazias exibiam uma massa de sangue a extravasar pelo rosto, entranhando-se à barba mal feita. De posse da prova da execução do serviço, retiraram-se os malfeitores do local, em um outro veículo. Havia mais de duas horas que se fizera noite fechada. Só na madrugada do dia seguinte as diligências empreendidas pela família e pela polícia lograram localizar-me, sem vida e sem os olhos, no local da minha morte. Da minha morte matada. Como disse, já não guardo mágoas, nem ódios, nem ressentimentos ou qualquer outro sentimento que me comova. Nem mesmo a alegria das lembranças dos convívios, dos amores, do bons negócios que realizei. Observo os eventos tumultuados ou não da minha vida como se observasse uma nuvem que passa, uma mosca que pousasse sobre uma mesa, guardando distanciamento e quase indiferença. Mas me perturba ainda constatar a ignorância humana sobre os fatos mais evidentes. As circunstâncias da minha morte continuam envoltas por um véu de imprecisões, de indefinições, de interesses escusos e especulações malévolas. Há quem tire proveito, evidentemente. Não que eu pretenda que os meus carrascos e o mandante sejam punidos. O que incomoda e estarrece são as invenções, as fantasias e a cegueira generalizada, a despeito da evidência solar dos fatos. Noticiada a minha morte, que comoveu a família e alguns poucos amigos — porque espantoso número aprovou tacitamente o episódio ( “agiota geralmente termina assim”; “ele sempre foi impiedoso nos negócios”) — fez-se circular a versão de que, por haver denunciado uma rede de tráfico de drogas na cidade — eu fora executado, como queima de arquivo, pois presenciara, em um dos meus imóveis alugados, os inquilinos estocando pacotes de cocaína. Mais do que isso, eu teria testemunhado o grupo a aspirar cocaína, enquanto se divertiam com um carteado, na varanda da casa que há pouco lhes alugara. Algumas testemunhas relataram que no dia do meu assassinato me teriam visto em um bar, bebendo em companhia de pessoas estranhas, novatas na cidade, Outras informaram ter presenciado comportamento estranho da minha parte, com aparência de estar embriagado ou mesmo drogado, e houve até quem comentasse ter havido murmúrios do meu envolvimento com drogas proibidas. À meia boca, discutiu-se se não seria a droga o fator determinante de minha impulsividade sexual. Quanta fantasia, quantas mentiras e maledicências. É certo que se chegou a aventar a possibilidade de crime passional, a título de vingança de algum marido traído, porque a fama que corria é de que eu não poupava as mulheres dos amigos, e nem dos inimigos. Sedutor incorrigível, eu semeava chifres nas testas de conhecidos e desconhecidos. A pobre da minha companheira passava horrores, suportando os meus incontáveis envolvimentos com mulheres. Mas essa hipótese foi logo descartada. A suposta amante foi ouvida e jurou, de mãos postas e joelhos, ao chão, sua fidelidade ao marido, a bondade angelical deste e sua completa aversão à minha pessoa. Ela, que ameaçara matar-se por mim, caso eu renegasse os seus carinhos ardorosos. Ela, que todas as noites sonhava estar imersa no azul profundo dos meus olhos. A cidade preferiu dar vazão à versão que relacionava o assassinato ao negócio de drogas, à execução a mando de traficantes. Pouco a pouco, à medida que a investigação se desenvolvia, emergia dos depoimentos, encarnado em minha pessoa, um dos mais importantes chefes do tráfico de drogas da região. As investigações estenderam-se por meses. O processo tramitou ao longo de cinco anos. No dia do julgamento, os sete jurados, por unanimidade, declararam a absolvição, por insuficiência de provas, dos dois acusados de minha morte, notórios usuários de drogas da cidade, molambos que não tinham onde cair mortos. Um deles foragira e fora julgado à revelia. O outro, catador de lixo e furador de covas no cemitério, após levar uma esfregada do Delegado, foi colocado na rua, por ordem do juiz, em consequência de sua absolvição. O meu desconforto, repito, não se deve à impunidade dos meus executores e do mandante de minha morte, mas à rede de intrigas e invencionices que se tramou em torno do triste episódio. Não julgo, apenas constato. E encerro minhas confidências parafraseando a Bíblia: os que tem olhos para ver, que vejam; os que tem ouvidos para ouvir, que ouçam! Itaney Campos é escritor. Desembargador do TJGO.

Rafael Teodoro
Naquela manhã de domingo o telefone tocou e tocou e tocou. Ele estava ao lado do aparelho. Mas hesitava em atender. Tinha medo de que se repetisse a noite anterior.
Sim, uma noite de sábado, céu limpo, clima quente. Uma noite inofensiva como qualquer outra não fosse por um pequeno detalhe: naquele dia eles completavam doze meses de namoro. Ele então pega o telefone e liga para ela. Animado, quer conversar mesmo sem ter assunto. Achava que ela não lembraria da data. Era estranho dizer isso, mas ele sempre havia sido mais atento aos detalhes da relação, aos pequenos detalhes, aqueles que fazem a vida sair da banalidade tão comum. Um desenho de coração num caderno, uns versinhos escritos apressadamente, uma caixa de bombons, as flores... Ele preparava tudo com o esmero de um confeiteiro que despeja a cobertura sobre um bolo de aniversário para alguém muito especial. Esse alguém era ela.
Ele só queria vê-la feliz.
Todavia, ela não parecia valorizar tanto aqueles pequenos gestos. E assim, do outro lado do telefone, naquele sábado quente e silencioso, ele escuta uma voz sem nenhum entusiasmo carinhoso. Ele ouve uma voz fria e indiferente.
Dura, seca, de partir o coração.
No diálogo que se seguiu ela cobrava satisfações. Fotos compartilhadas, recados em redes sociais, conversas com colegas de trabalho... Tudo era motivo de aborrecimentos. Por vezes, mui arrogante, ela deixava-se envaidecer e cobrava dele um pedágio pela passagem na sua vida. “Se soubesse que tu eras assim, não me interessaria...” Pronto. Agora ele se sentia qual um estelionatário a enganá-la. E, no entanto, ele nunca a enganou.
Ao telefone, ela tornava a falar com um ar de despeito, como se a doação do amor não fosse entrega, e sim caridade. Como se tudo o que viveram até ali — as declarações, os presentinhos, os abraços, os beijos, os planos para um futuro juntos — não significasse nada. Tudo o que ela via eram os seus desejos, as suas vontades. Egoísta, ela queria controlá-lo.
Quanto de ciúmes havia naquilo ele não sabia. Talvez fosse uma faceta escura de um amor tão puro entre grandes árvores azuis, prenhes de frutos podres que principiavam a cair. Ou talvez fosse o temor que acomete quem ama com tanta intensidade que prefere matar a perder. E aquelas brigas, aquela hostilidade gratuita, súbita, inexplicável, feriam o coração dele. E o amor ia morrendo aos pouquinhos, afogado na desconfiança.
Ele só queria que ela se libertasse do seu passado. “Eu já esqueci”, ela dizia. Dizia não porque fosse mentirosa, mas porque achava que pudesse enganar a si própria. No fundo, queria amenizar a dor que a consumia ante a lembrança de outros homens, homens que a fizeram transitar pelas sendas perigosas da raiva e do ódio. Os mesmos homens que a usaram um dia, que a ludibriaram, que fizeram da sua sensibilidade uma ponte para o desespero humilhante de quem confia e é traída, de quem se entrega para o amor e se percebe quedar junto à armadilha da frialdade mais abjeta — na qual se homizia a triste figura dum coração de pedra. Altiva, ela não aceitava que seu passado era uma prisão da qual ela ainda não pudera se desvencilhar. Era um fardo que ela carregava como um medalhão sobre o peito, que resplandece o brilho túmido duma cegueira branca que terminava por turvar a visão de todos à sua volta. E começava a matar até mesmo o amor, perdido que estava num labirinto de suspeitas e dúvidas.
Naquela noite, então, depois de ouvir tudo o que ela disse, pela primeira vez em 12 meses de namoro ele duvidou. Pela primeira vez, após todas as crises, ele se viu balançar, vacilar no sentimento para o qual ele não havia posto obstáculo — e entregara-se completamente. Erguia-se pouco a pouco um muro com os tijolos do cansaço e da desesperança. Ao final da construção, ele temia seriamente que ela não pudesse mais ver os momentos felizes, o desenho de coração num caderno, os versinhos escritos apressadamente, a caixa de bombons, as flores... Nada! Nem um instante de alegria na memória, nem uma gota de carinho num oceano de mágoas. Absolutamente nada. Pela primeira vez ele teve medo de se afogar.
Inconformado, sabia que os fantasmas do passado perseguiam-na. Ela insistia em negar. Eles haviam prometido um ao outro experimentar o novo, recomeçar do zero, só nós dois, por Deus, eles juraram! Mas ela continuava perdida no terreno pedregoso das lembranças antigas, irresoluta e desconfiada. Sem perceber, ela não via que o terreno ficava próximo a um mar de entulhos; que as lembranças eram como pedras amarradas ao corpo daquele amor que se tornava cada vez mais pesado. Ela prendia o sentimento dele e o lançava contra as ondas daquele mar revolto, indomável, cruento, cheio de entulhos. O sentimento ia se afogar. Os fantasmas do passado agora surgiam redivivos, transformados com a face do ceifeiro, que os vinha buscar para a morte, enquanto o amor estilhaçava moribundo.
Ele só queria entender por que ela o maltratava, por que essa desconfiança imotivada, esse receio possessivo, tanta infantilidade! Por quê? Se ela havia sofrido tanto e, como ele, desejava se libertar, por que não acreditar naquele amor? Por que não se dar essa chance?
Naquele momento, ele compreendeu finalmente que estava a ser processado. Era réu de um crime que não tinha perpetrado, pecador de um pecado que não havia cometido. Ele era o culpado de forma sumária, sem direito a um julgamento justo.
Pena. Ela não via que ele não era o criminoso, o pecador, o bufão que se aproximava para humilhá-la outra vez ao brincar com seus sentimentos. Na sua cegueira branca, ela não entendia que o amor que ele dava a ela era santo, pois oferecia a redenção. Era uma porta que se abria no presente para um futuro de felicidade — uma felicidade que ela certamente nunca tinha sentido. E que ela própria, ensimesmada, sabia não ser possível sentir com mais ninguém. Porque aquele sentimento era puro e sacro; não vinha para consumi-la na maldade terrível da perfídia velada; vinha, isto sim, para retirá-la daquele quarto escuro solitário, onde ela se trancara desde tempos imemoriais para a vida. Ele queria resgatá-la. Oferecia-lhe sua mão. Infelizmente ela estava cega. Não queria aceitar.
Naquela noite de sábado, pela primeira vez ele desligou o telefone. E pela primeira vez não sentiu mais vontade de ligar. Logo ele, que sempre quis conversar com ela, dedicar a ela suas melhores palavras! Ele sabia que alguma coisa estava errada.
No domingo, quando tornou a si após sair da imersão em pensamentos que o remetiam à noite anterior, primeira vez em 12 meses de namoro ele hesitou em atender ao telefone. Não sabia se ela telefonava arrependida, se queria se desculpar. E temia o contrário: que ela tornasse à sua ira, que descontasse a sua raiva injustificável, enquanto queimava na fogueira dos ciúmes mais pueris. Então pela primeira vez ele sentiu medo de acabar. Sentiu um medo absurdo de que ela não tornasse a si, que não vislumbrasse os riscos do caminho que ela trilhava. Era um caminho sem volta, decerto. Ele só não sabia se ela queria parar por ali e voltar a cultivar o amor.
Por isso, enquanto o telefone tocava insistentemente, ele olhou de novo para o aparelho. O barulho irritava-o. Ele já se via compelido a tomar uma atitude. Que faria? Ignorá-la seria covardia. Mas ele sabia que, se a atendesse, aquele poderia ser o momento derradeiro duma história de amor tão bonita. Ou talvez não! Talvez fosse justamente a oportunidade de que precisava, a conversa que permitiria a ela entender que não devia ocupar-se com miudezas, e que não era justo puni-lo por faltas que ele não protagonizou, que não era correto expiar os sofrimentos passados nas costas de um inocente. Talvez. Só talvez ela então percebesse o óbvio: que os 12 meses que passaram juntos haviam sido os momentos mais felizes da vida dele.
E foi nisso que ele acreditou, quando, vencendo a hesitação do início, tomou em mãos o telefone e decidiu dar a si próprio uma última chance de viver aquele amor.
Rafael Teodoro é advogado e crítico de música e literatura.

Sinésio Dioliveira
Conto dedicado à minha amiguinha Bárbara Toledo Gomes, de 9 anos
Curiolando vivia feliz como todas as aves que moravam numa pequena floresta. Todas despreocupadas com semear, segar e recolher provimentos para os celeiros. Por lá o Pai celestial ainda as sustentava. A floresta era cortada por um ribeirão repleto de peixes. Suas águas eram tão límpidas que era possível ver os peixes com facilidade. Lambaris e piaus predominavam por lá. E por isso eram presas fáceis dos martins-pescadores, socós, tuiuiús...
Nessa floresta viviam também saracuras, jaçanãs, garças diversas, tizius, coleirinhas, bigodinhos, canários-da-terra, sabiás-do-campo, almas-de-gato e outras muitas aves.
Certa vez, já quase no fim de uma tarde de novembro, em plena primavera, Curiolando teve uma surpresa desagradável. Ao buscar comida nos pendões de capim para seus dois filhotes de duas semanas, pousou num galho seco. Achou o galho diferente, mas, como dar comida para seus filhinhos era algo mais urgente, Curiolando nem teve tempo de observar direito onde havia pousado.
O galho seco estava entre os pendões de capim, num lugar ideal para facilitar o recolhimento das sementes de capim. Ele sentiu seus pés presos ao galho. Assustado, tentou voar para escapar. Só que não conseguiu e ficou preso de cabeça para baixo, batendo as asas barulhosamente. Daí a poucos instantes apareceu um homem correndo e desprendeu os pés de Curiolando do galho seco e o colocou dentro de um alçapão. Desesperado, ele se debateu nas laterais do alçapão em busca de liberdade, a ponto de sangrar o bico. O homem, um vendedor de passarinhos, capturou Curiolando com visgo de leite de jaqueira. Não era um galho propriamente, mas um pedaço de ferro simulando um.
Depois disso, Curiolando nunca mais viu seus filhinhos nem a mãe deles. Foi levado embora para bem longe da floresta da qual tanto gostava. A viagem foi muito sofrida: algumas horas de ônibus dentro de uma caixa de madeira cheia de compartimentos e com alguns furos nas laterais dos compartimentos. Os furos eram para entrada de ar e assim as aves transportadas não morrerem. Essa caixa estava dentro de uma mala também furada mas de modo discreto. Alguns pássaros acabaram não resistindo à viagem, mas Curiolando sim.
Curiolando acabou sendo vendido, e seu destino foi morar na cidade grande. Ele, que tinha uma floresta para viver, acabou aprisionado numa minúscula gaiola que, durante o dia, ficava pendurada na parede de uma área e à noite o dono a recolhia para dentro de casa.
Foi quase um ano engaiolado. Após alguns meses, Curiolando acabou cantando, mas não da maneira feliz como era na época da liberdade. Ainda assim seu canto deixava o homem que o comprou orgulhoso. Seus chilreios eram ouvidos ao longe, inclusive chegaram aos ouvidos de um gato pardo, que acabou localizando o curió. A partir de então, o felino passou a desejá-lo como refeição e passou a observá-lo de longe.
Numa certa tarde, já beirando as 17 horas, o homem teve uma crise de hipertensão. Sua mulher, então, desesperada, chamou um táxi, e os dois foram
para o hospital. O homem estava tão mal que nem se lembrou que Curiolando tinha ficado na área.
Isso foi a oportunidade de o gato realizar o seu desejo. Chegou silenciosamente. Foram dois pulos inúteis sem alcançar a gaiola, mas no terceiro sua pata dianteira esquerda acertou a gaiola, que se soltou do prego na parede. Na queda, a travinha da porta acabou se quebrando e, no desespero do acontecimento, Curiolando acabou achando a porta aberta. O gato ainda tentou pegá-lo, saltando sobre ele, assim que Curiolando levantou voo, mas em vão.
Voou por alguns minutos. Pousou na copa de um angico bem alto de uma praça. Permaneceu por lá alguns instantes até se recuperar do susto e ganhou o céu novamente. (Talvez em direção à floresta onde vivia feliz!)
Sinésio Dioliveira é escritor e jornalista.

Paulo Lima
[caption id="attachment_16904" align="alignleft" width="620"]
Dizem que foi mais ou menos assim... Decisão no Vigário Geral. Clima de festa, apesar de as torcidas adversárias declararem ódio uma à outra e meia dúzia de boleiros, de cá e de lá, jurarem botinadas entre si para descontar alguns estranhamentos ao longo do campeonato. O visitante, Barra da Tijuca, iria enfrentar uma barra daquelas, mesmo tendo a vantagem de jogar pelo empate, uma vez vencido o primeiro jogo no estádio [sic] do Chinelão.
Naquele ano, nenhum time havia conseguido vencer o VG no Cascalhão, seu estádio [sic de novo]. A pressão da torcida era qualquer coisa, um verdadeiro caldeirão, e seus jogadores cresciam no jogo diante do seu público fiel.
Mas a grande atração era mesmo o centroavante Oscar, carinhosamente apelidado por Linha. Reza a lenda que recebeu esse apelido porque fez teste aos 14 anos para jogar no gol, o sonho de seu pai, mas logo viram que ele não segurava nada, nem bola murcha atrasada com a mão. Então, no segundo tempo o garoto de pernas compridas foi jogar na linha e cravou cinco gols, cada um mais bonito que o outro. Nunca deu conta de explicar onde achou inspiração para fazer aquilo. Já seu pai jurava que o apelido tinha outra origem: de tão magro, ele tinha a silhueta de uma linha.
A verdade é que todo mundo torcia por ele, ainda que defendesse as cores da camisa rival. Tinha fama de bom moço e realmente era. Durante a semana, depois do batente, enquanto seus colegas de copo e de cruz se rendiam aos encantos da noite, ele no máximo bebericava dois copos de loira no bar do Lalau e logo voltava pra casa. Disciplinado, não queria perder a disposição de treinar mais à noitinha. Uma rotina que se estendia até as dez da noite, em dias alternados.
Nos fins de semana, após as peladas — do futebol, bem entendido — demorava horas contando histórias que jurava serem verdadeiras e os amigos de verdade fingiam acreditar que fossem. Sua cerva mornava sobre a mesa. Bom de papo, conquistou uma outra loira de mesma idade, que conhecera no mesmo bairro, quando tinham oito anos. Casou cedo. Seu último gol tinha sido duas partidas antes, na semifinal contra o Magé. Passou em branco pela primeira vez no certame justo na primeira partida da final. O Vigário perdeu por dois a zero e voltava a jogar contra o BT com uma desvantagem enorme no placar. Difícil de reverter, pois enfrentava o time de melhor defesa da competição. Na decisiva, teria que vencer por dois gols de diferença para levar o título, beneficiado com a combinação de resultados pontuados, o chamado placar agregado, em virtude de sua melhor campanha. Nada impossível para um time que, a despeito do revés anterior, tinha uma média de cinco gols e meio por partida.
A outra atração era a presença ilustre do olheiro do Botafogo, Eurico Salgado, que estava na arquibancada ou algo parecido, de olho em tudo. Foi ele quem havia revelado Garrincha, o que dispensava apresentações. A expectativa geral era de que ele fora pessoalmente confirmar o interesse do time da estrela solitária em levar para seu plantel o centroavante de 19 anos que arrasou no campeonato de várzea com seus incríveis 38 gols em 16 partidas.
No meio esportivo, aqui incluindo-se os botecos e as acaloradas conversas entre os taxistas que faziam ponto pelas praças cariocas, não se falava de outra coisa: a dupla “Ga-Linha”, futura fonte de alegrias para o Glorioso, para desespero de rubro-negros, tricolores e cruzmaltinos. Mesmo sendo a estrela maior do time, o jovem Linha podia contar com o apoio de uma escalação de dar inveja: Peroba, Mateira, Elias (evitava-se chamá-lo pelo apelido, que ele odiava), Pezão, Cangaço, Lindinho, Trigueiro, Rapadura, Jurubeba, Caixeta e Anjico, o centroavante substituto que nunca tinha chance de entrar, embora fosse fera também. Uma seleção, na opinião dos especialistas!
Na esperança de faturar alto, nas imediações do campo disputavam o pouco espaço uma dezena de barraquinhas de churrasco e um batalhão de meninos defendendo o seu com laranjinhas de todas as cores e sabores. Estes, por sua vez, enfrentavam a indisfarçada hostilidade da concorrência: picolezeiros vindos de bairros próximos, com seus palitos gelados de leite condensado, frutas de todos os nomes, milho verde e creme holandês. Armado o palco, o árbitro ensaiou um rápido em nome do pai e soprou com força o apito, dando início ao último confronto do campeonato.
Não foi um jogo fácil. Naquela tarde quente de sábado, o Tijuca resolveu jogar bem de novo, muito firme na marcação, com aquela defesa marrenta, quase impenetrável. Do tanto que pulava, Macaco — o goleiro que mais parecia um gato peludo — naquele dia entrou disposto a não deixar entrar nem a própria toalhinha que, supersticioso, colocava sempre do lado de dentro da meta, no canto direito junto a um pote de água benta, procurando se defender de um inimigo que só ele via. Assessorado pela inspirada e truculenta dupla de zaga formada por Cocão e Tigrila, o ferrolho estava armado no gol do BT.
Rivalidades do futebol e nada mais. Foram amigos de escola e só defendiam camisas diferentes porque moravam em bairros distantes. Tinham até parentesco: Macaco era cunhado de Linha, da parte da irmã, e Cocão era primo da esposa dele. Mas, bons amigos, negócios à parte. Os quatro apostaram alto. O centroavante disse que faria pelo menos dois gols no trio de pernas de pau, do contrário penduraria as chuteiras. Eles também não iam deixar barato: caso isso ocorresse, prometeram lhe entregar todo o salário do mês, contadinho!
Foi um jogo disputado e sofrido. Para quem segurava o placar, o tempo andava feito tartaruga com mais de cem anos de estrada; para quem corria atrás, um cadeirante disputando prova com uma Ferrari.
O VG só conseguiu fazer um golzinho aos trinta e nove minutos do segundo tempo, quando a animada torcida já nem estava tão animada assim. De quem? Dele, claro. Mas foi gol de pênalti, para não dizer de bobeira do lateral imprudente que botou a mão na bola meio sem querer e o juiz, na pressão, marcou incontinenti para o time da casa. O guarda-metas quase pegou, e haveria de pegar se a bola não tivesse tocado antes num montinho artilheiro que fez a pelota subir um pouquinho acima de suas mais sinceras pretensões.
Após rápida comemoração e a cera costumeira na reposição de bola, o final do combate prometia. Ainda restavam cinco minutos. Com uma pitada de sorte e boa vontade do juiz — e os juízes costumam ser voluntariosos nessas horas —, dava para chegar aos 48 minutos, contando os acréscimos. A esperança é a última que morre.
Mas as coisas não caminharam exatamente como a torcida vigariana queria. O Tijuca continuou dono de si e teve mais duas chances de marcar, o que é comum em jogos de várzea, onde o campo é menor e a motivação é maior. Talvez, por um desses mágicos segredos do futebol, tenha sido aí seu grande erro. O Vigário tava acuado mas não tava morto. Tinha nego experiente, com lampejos de genialidade. Percebendo a situação, Linha fez algum sinal para Mateira que pareceu entender na hora. E baixou a cabeça, com as mãos nos joelhos, simulando extremo cansaço, enquanto o time visitante fervia em cima dos donos da casa.
Foi aí que aconteceu. Aos 47 minutos, com o juiz pronto para dar por encerrada a batalha, Lindinho recuperou a bola e tocou de imediato para Mateira, que a empurrou dois metros à frente para fazer um lançamento de longa distância, sua especialidade. Foram quase 30 metros de um voo preciso, até a redonda chegar ao seu destino. O futuro companheiro de Garrincha correu por entre a zaga, que até então contava como certo que ele já estivesse batido, e recebeu a bola ainda no ar, matando a gorduchinha no peito estufado, se preparando para o chute certeiro quando ela caísse calmamente à frente do seu pé esquerdo. A torcida visitante, que apesar de em menor número fazia uma festa ensurdecedora, emudeceu. Sabia que aquele atacante era especial por muitos motivos, inclusive por uma característica matadora: era ambidestro.
Normal seria se a galera do VG soltasse gritos de comemoração antecipada, mas não foi o caso. Aconteceu muito rapidamente e quem presenciou se lembra de tudo em câmera lenta: olhares atentos, esperando o desfecho que seria fatal para um dos times. Surpreendendo mais uma vez, o magricela habilidoso não chutou de imediato, optando por dar um lençol no zagueiro, deixando a bola limpa no outro lado. O arqueiro anteviu o pior: seria um gol de placa, justo em cima dele que havia segurado tudo, mas não haveria de dar conta daquele balaço.
Seria. A perna direita de Linha não chegou a concluir a jogada. Antes disso, seu corpo magro caiu no chão e ali permaneceu, inerte. Tigrila, que havia ganhado de presente o último chapéu do campeonato ficou parado, olhando, sem saber se chutava a bola para bem longe ou se esperava alguém lhe dar alguma explicação. A torcida, já muda, calada continuou. O juiz segurou o apito na boca, andando devagar rumo à grande área, sem saber que decisão tomar. Só o médico, na verdade um enfermeiro com experiência em primeiros socorros, teve a iniciativa de sair correndo em direção ao local. Foi lá, de joelhos, diante do jogador estirado no chão de terra batida, que viu um par de olhos arregalados, boca aberta e arroxeada, a mão no peito e um coração sem nenhum sinal de vida. Também foi ele quem levou a notícia para a esposa, grávida, que ficara em casa aguardando pelo resultado do jogo, ansiosa.
Naquele tempo, os times não tinham departamento médico para saber antecipadamente quem estava em condições de seguir carreira ou mudar de profissão. Enquanto nos dias atuais os cardíacos são logo barrados na peneira dos clubes, o que importava era apostar no talento e ver no que daria. Linha foi mais uma vítima do despreparo do amadorismo que durante décadas reinou no futebol brasileiro. O mesmo que atingiu também o “moleque travesso”, de pernas tortas e dribles desconcertantes, que não conseguiu vencer a rotina de infiltrações e as armadilhas da bebida.
Foi a primeira vez que o time da casa perdeu um campeonato jogando em seus domínios. E, pela primeira vez, não houve vencedor nem comemoração. O time da Barra da Tijuca depositou a taça junto ao caixão, em homenagem, respeito e admiração pelo companheiro de papo e de bola.
Alguns anos se passaram, o bairro foi encurtando e a comunidade viu-se invadida pelo crescimento desordenado da cidade grande. O campinho virou estacionamento de supermercado e o técnico do virtual time campeão, o seu dono.
[caption id="attachment_16905" align="alignleft" width="620"]
Macaco até hoje vê passar na sua memória flashes do gol antológico que o cunhado não lhe deu. Nos seus sonhos, beija com satisfação a medalha de vice como se fosse de ouro. Isso antes de acordar de madrugada, com os olhos marejados, pelo menos uma vez por semana. Juntamente com a dupla de zaga do Tijuca, cumpriram a promessa e deram todo o salário e mais um pouco para bancar o funeral e auxiliar nas despesas diárias de uma jovem viúva.
O zagueiro Elias, mais conhecido como Cu Doce, montou uma oficina mecânica e foi levando a vida. Na companhia dos filhos, é visto com frequência bebendo suas Brahmas no bar do Lalau, bem ao lado.
Peroba, o goleiro, de tanta tristeza pela morte do melhor amigo, mudou-se para bem longe e, em São Paulo, conheceu a bela Mariana com quem se casou e finalmente foi feliz como vendedor de colchões numa loja das Casas Bahia.
Mateira, com seus lançamentos precisos, chegou a treinar no Bangu, mas uma sequência de erisipelas frustrou seus planos. Juntou um dinheirinho, comprou um Ford Corcel 1.4 e atualmente vive dos rendimentos de um ponto de taxi na Ilha do Governador.
Pezão, lateral direito, com a ajuda de um pistolão virou ator de novela na Globo. Fez sucesso nos anos 70, mas prometeu a si mesmo nunca revelar seu passado varzeano. E assim o fez. Cangaço, o lateral esquerdo, voltou para Patrocínio, sua cidade natal no sudoeste de Minas, e lá se aposentou como funcionário do Banco do Brasil.
Lindinho, o médio-volante, abriu uma escola com a esposa, professora de mão cheia, e acabou abrindo também uma academia de ginástica para o filho tocar.
Rapadura, ponta direita, montou uma fabriqueta de doces para vender sua produção nas feiras livres. Quebrou, abriu um restaurante de comida por quilo, quebrou de novo, se reergueu e hoje tem uma rede de cinco drogarias no morro do Flamengo.
Jurubeba virou policial. Foi baleado na perna numa operação de rotina, tornando-se um inválido para o serviço de rua. Desgostoso, pediu baixa da corporação e atualmente tá encostado pelo INSS.
O ponta direita Caixeta se enveredou pelas drogas e foi assassinado como bandido comum no morro do Jacaré, não se sabe pela polícia ou pelo alto comando do tráfico. Deu na TV.
Trigueiro, o ponta esquerda, abriu um centro de espírita — meio kardecista, meio de Umbanda — e dizem que já recebeu inúmeras mensagens dos falecidos, mas ninguém nunca deu muita bola pra ele.
Anjico, que nos treinos arrebentava no time reserva sem nunca participar de uma partida oficial, pendurou as chuteiras.
Urubu, o juiz, internou-se diversas vezes com crises de depressão numa clínica especializada, se perguntando por que não encerrou a peleja tão logo o Vigário recuperou a bola, evitando tudo aquilo.
Eurico Salgado nunca mais deu as caras por aquelas bandas.
Os jornais noticiaram no dia seguinte cada lance do jogo, com os detalhes e os exageros de sempre, como costumam fazer para aumentar as vendas de exemplares e conseguir mais anunciantes. As torcidas dos grandes clubes do Rio se comoveram com a tragédia, mas por motivos inconfessáveis também não lamentaram o ocorrido, exceção dos botafoguenses.
Dizem que foi mais ou menos assim. Não tenho certeza porque eu não estava lá: no campo, na arquibancada ou no alambrado. Apenas recolhi os depoimentos de alguns aqui e ali para recontar a história. Na época, só tinha quatro meses de vida e, na barriga da minha mãe, bem perto do coração, durante os meses seguintes só ouvi o choro dela, constante e doído, de saudade do meu pai.
Paulo Lima é escritor e publicitário.

[caption id="attachment_16252" align="alignright" width="260"] M. File[/caption]
O começo como se conta O tempo se leva com os ventos. As ventanias da vida, os redemoinhos do mundo, para onde nos levam? Aonde foi aquele menino encantado com as curicacas e o vento nos guizos dos arrozais? Por onde foram os meninos, como foi que se perderam de nós? Perguntas se perguntam, respostas se inventam, verdade o que se conta.
Dobras do tempo, sombras. Não era ele, aquele menino? Será que ainda se encanta com o cicio dos cachos de arroz? Ainda lhe apraz extrair, com o polegar e o indicador, o verde assovio ao liso das folhas na touceira de grãos? Ainda se lembra de seus bois de mangas verdes, sabugos e caramujos? Provável que já nem seja mais como antes. Perdido no tempo sombrio, pode que seja outro, diferente de ontem, podendo que a vida revele sua real(idade).
Bem-te-vi avisou, insistiu que viu o menino passar por ali, ao amanhecer. Já o murmúrio da coruja acusara-lhe a passagem, em hora escura. Levado embora a cavalo da noite. Os vultos silentes dos cavaleiros. Os cascos dos cavalos ressoando no solo. Noite adentro, sertão afora. Longe, o mundo estranho. As mãos agressoras do mundo. O riso de quem rosna. As hienas da Terra. Do porvindouro percurso de vida do menino, que se conta mais adiante, recorte-se, antecipando a figura paterna, o dia em que um sanfoneiro cantava assim, dirigindo-se justamente ao pai do garoto:
O senhor, Seo Valdemar, escuta o que vou falar, não fui eu, não fui eu que matei seu canarinho, no galho da laranjeira, no derradeiro galhinho.
Noites seguintes, dias adiantes, anos seguidos. Procura-se o menino. “Mora não senhor. O menino não mora aqui mais não. Saiu daqui do Desemboque e desapareceu.” O fio da conversa alinhavando as palavras. Um modo peculiar de falar, fluindo simplicidade e sapiência. “A vida, o senhor sabe como é: anda e desanda. A vida mesma se perde na própria vida.”
As curicacas nas redondezas gritam que o menino foi uma criança infeliz. Que mal teve infância, desde aquela noite. Um caco de lua minguante, nenhuma estrela no céu. “Muita vez o destino entorta o focinho e desatina. A vida vai de mau jeito, como um salto de botina acalcanhado, pisando torto pelos caminhos.”
Desvãos cinzentos da memória Os bois ali à sombra do arvoredo, ao lado do curral, perto de umas rochas negras, brotadas da terra feito fossem tubérculos gigantes e abruptos, de natureza mineral. “Não se sabe do menino. Nunca que dele se soube mais não. E pouco se lembra.”
Do que mal se conta e muito não se acrescenta. Cinzento é o tempo da memória. Desvãos. Que mal se lembre, o tempo esquece. O dia não clareia, a noite não esclarece. Assunto delicado, de desacerto familiar. Ao certo é que era um menino claro, alourado, e tinha olhos azuis, o mesmo que ver bolinhas de vidro. E havia outros. Eram quatro, ao todo: três meninos e uma menina. O mais velho também tinha olhos azuis. Só eles dois puxaram pelos olhos do pai.
Os outros tinham os olhos castanhos da mãe. O menino foi na garupa da montaria do pai, e sua irmãzinha, aos cuidados de outro cavaleiro. Iam a passos compassados. A noite ao redor e a noite pela frente, numa noite só. Os homens calados. As duas crianças foram entregues a uma tia, irmã do pai; já o mais velho ficou com outra tia, e o mais novinho deles foi deixado com a mãe, de nome Sebastiana, que dali também se foi.
“Ficou aí a casa vazia. Foi construída em 1935. Compramos essas terras já de um outro dono, e construímos a casa nova. A casa velha agora abriga um peão nosso, com mulher e filho. O peão, vocês cruzaram com ele, na vinda pra cá; a mulher e o filho foram ver uns parentes.”
O fantasma da velha casa A conversa se desenrola de um novelo. Fala-se de velhos tempos, sem que se fale muito ao certo, por incerto o incerto mesmo. Difuso o tempo confuso. Ouvissem, do passado, o riço dos cachos de arroz soprados pelo vento, algo parecido com o chocalho das cascavéis. Avistassem a alma-de-gato, ou alma-perdida, com o seu penacho e as penas de sua longa cauda, pousada no mandiocal. Um encanto de ave, muito bonita, todavia agourenta, aviso de morte para breve, como se acredita. Mas o certo é que a infância se foi e o menino cresceu. Bem-te-vi de outras terras viu o menino já crescido passar acolá.
Agora o berro de um boi. Um familiar aroma no ar. O cheiro da terra, da relva e do seco esterco das vacas. O contentamento de voltar ali, passados mais de sessenta anos. A casa antiga, ao lado, ainda é a mesma, salvo um puxado que não tinha, e vitrôs ao invés dos janelões que havia.
Por trás da casa, os dois irmãos chupavam manga escondidos da mãe, enquanto ela cozinhava o almoço; vigiavam-na pela janela da cozinha e, às pressas, se lambuzavam com a fruta. “Limpa a boca”, sussurrava o mais velho. Iam lá dentro da sala, pra mãe não desconfiar, daí voltavam, sorrateiros, pra se lambuzarem de manga novamente. A doce infância!
Avulta-se o fantasma do passado. Espectro o próprio aspecto da casa. O que alegra os dois irmãos, ali chegar, também os entristece, só de olharem a casa por fora. Tomados pela comoção, ou como se deles mesmos saísse, liberta, aquela aparição.
O berço vazio Envelhecidos e grisalhos, foram rever o chão de suas origens. O berço. Lá no fundo do tempo, por onde corre o ribeirão Desemboque, e de onde as lembranças são as mais remotas que guardaram de si mesmos. Aquelas que não se apagam nunca. Mais dolorosas as que mais profundamente se guardam. Espaço e tempo houvesse a contento para tudo se contar.
A terra perdida, enfim reencontrada. Uma viagem sentimental, profundamente gratificante. E lá estavam as curicacas, como se fossem as mesmas de antes, ainda sobrevoando aquele chão de ausências. Tinham-nas, iguaizinhas, retidas nas retinas da memória.
O retorno às origens mistura sentimentos: contentamento, nostalgia, melancolia. Dorzinha sutil, feito farpa miúda. Fragmentos, lascas de histórico de família, de coisas que se guardam. Pudessem recompor o antigo lar, recolocar a mobília. E o pai, a mãe, os filhos. Refiar os fios. Reatar os laços de afeto. De resto, o que resta, senão pedaços de recordações? O berço é uma terra vazia. Não há ninguém. Nenhum deles por ali.
Não olhe para trás A tarde debulha seus minutos. Os dois visitantes precisam ir embora, recusam o convite pra mais demora. Voltarão, um dia, numa outra hora. Cocos secos e ocos de muito tempo, de bacuri e guariroba, um dia mascados pelo gado e agora cinzentos de pó, foram recolhidos do chão pelo irmão mais novo, próximo ao ribeirão, e guardados nos bolsos, como lembranças do regresso à terra da infância. Comentou que, se pudesse, se mudaria de volta. “É um belo lugar — completou —. Tem mais coisas do que supunha a minha memória, assim de encher os olhos e se derramar com o ribeirão que passa bem ali, rente aos fundos da casa”.
A casa. A profunda emoção de revê-la, e agora o pesar de deixá-la, como quem se separa do seio materno. Ainda antes da despedida, o mais novo caminhou até o ribeirão, molhou as mãos e lavou o rosto com água fresca, só pra dizer que tinha voltado, e sentir o gostinho da volta. Se se demorasse um pouco mais por ali, seria bem capaz de ouvir um menino chamando pelo pai e pela mãe. Então se despediram e saíram já com vontade de voltar, e de chorar.
Suspiros dobrados, sentidos, vindos do fundo da alma. “Ah, não olhe para trás! Dói demais, de tanta saudade e tristeza. E dá um vazio danado na gente”. Disse o mais novo ao irmão, ou mais para si mesmo, e enxugou os olhos na manga da camisa.
Para sempre separados (Álbum de família) A morte o levou em 26 de janeiro de 2007. A família quase toda, de vidas separadas, agora se junta. Ali, onde as diferenças se igualam e os extremos da vida se tocam e se cobrem de terra fúnebre. Só ali, e só então, se dá o momento da reunião. Quatro coveiros de uniforme azul aguardam. Três enxadas e três pás de prontidão. Os familiares em volta, à beira do chão aberto. A família desunida, enfim reunida. O que a vida separa, a morte reúne. A cova escancarada e ali o fundo do fim. Quatorze blocos de concreto, quinze tijolos e os calços de sustento. A camada retangular do reboque e cinco placas de laje que fecham o jazigo. O senhor Lázaro, “responsável pelo campo-santo”, como se identifica, supervisiona o serviço.
A terra é vermelha no Parque Memorial. Os vivos pisam na grama. São quinze horas e trinta minutos agora. Quadra 02, Módulo 5, Jazigo 01. Valdemar se foi. O pai. Uma vez mais, ele se vai, como de outras vezes se foi. “O pai de vocês tomou chá de sumiço”, a tia dizia. “Comeu pé de cachorro e sumiu no mundo”, dizia. “Parece que virou passarinho, que voa e desaparece”, concluía. Casado pela segunda vez, e pai de dois outros filhos, repegou dois do primeiro casamento: o menino em questão e a menina. Acabou que não deu certo. A madrasta não quis. Escorraçava-os, cometia-lhes horrores; por isso foram levadas de volta para a tia.
De alma boa, a tia, justiça seja feita, fez tudo por eles, não mediu sacrifícios; foi-lhes a mãe (e o pai) que não tiveram. Pra começar, foi ela quem lhes acendeu a luz do saber; ensinou-os a ler e escrever, e eles já entraram na escola sabendo, adiantados. O menino, certa feita, na verdade já rapaz, adoeceu e ficou cego; chegou a ser desenganado pelo médico sobre voltar a enxergar. A tia, desesperada, mas decidida, e ainda pela ciência do doutor, logrou salvar das trevas, e da morte, o filho enfermo. Momentos críticos.
Violentas convulsões do rapaz. Aos gritos e choro de desespero, clamando pelo Divino Pai Eterno, ela o trouxe de volta à vida. Foi como se o tomasse dos braços da morte, no último instante — a ele que, logo que se “viu” cego, não demonstrou desespero, mas pensou em suicídio. Saiu das sombras do vale da morte, transpôs o portal de intensa claridade e emergiu com os olhos inundados de luz. A luz da providência divina, segundo a tia, imbuída de fé.
A boa tia, porém, sofria dos nervos e havia vezes em que os tratava, aos meninos, com excessiva fúria, às cegas. Depois vinha com a salmoura do remorso, a banhar os ferimentos; e o menino até condoía-se dela em seu ar sofrido, tomada pelo arrependimento. De tudo, ficam as marcas, de certa forma confusas entre o sentimento de gratidão e de magoado perdão. Fica sempre um resquício de ressentimento, enfurnado e surdo, num escaninho da alma; fica lá, feito um morcego, no seu esconderijo, respirando e se remoendo no escuro. Repisar tudo isso, denuncia o resquício. Mas fica, sobretudo, o reconhecimento do bem que se recebe, e fica o afeto compartilhado, ainda que de forma defeituosa. Prevalece a falta que fica, o vazio da ausência: a tia-mãe já falecida.
Após devolver os meninos à tia, o pai andou sumido com a outra família. Cerca de oito anos sem dar notícia. Sem que se soubesse por onde andava. Nesse tempo foi que o menino cresceu.
A mãe Sebastiana morreu primeiro. Vivia ela só com o seu silêncio e sua solidão. Analfabeta e de pouco assunto. Conversa avulsa, quando muito. Quedava-se contemplando o filho já rapaz que a visitava, e vinha-lhe um riso curto e repentino, seguido por comentário relacionado a ele quando criança; coisa de que ela se lembrava e achava graça. A voz tirante a grave; o rosto de traços rústicos; o sobrecenho carregado, o olhar cor de terra sombria. O semblante fechado e um ar pensativo de quem parecia aceitar resignadamente o rumo tomado por sua vida. Vê-la assim era doloroso para o filho, por conta do sentimento de compaixão que o perseguia.
A mãe tinha uma violinha velha, ponteava trechos de modinhas e era comovente. Lembrava-se de seus tempos de moça. Isso também doía no filho, incomodava-o imaginar a mocidade da mãe e seus sonhos perdidos. A pobre mãe. Morava numa casinha simples, humilde, em cidade do interior, onde preferia ficar. Não se dava bem na capital em que o filho residia. Em sua própria casa, mantinha sobre uma pequena mesa a “máquina de costura de mão”, como então se dizia da máquina sem pedal, tocada a manivela; e costurava por encomenda, a mãe. Por certo que também tinha lá sua vida particular, algum namorado ocasional. Tocava sua vida. Já o filho caçula numa vida andarilha, buscando seu próprio caminho.
A terra cobre a sepultura no Parque Memorial. Valdemar se foi. O pai. Aonde vai agora, assim sozinho? Ouve-se pelo “campo” o voar de um passarinho.
O sopro do vento Mas, olha só, o menino que se foi com os demais, deixou seus rastros por aqui, escritos no pó, como se a dizer que um dia os ventos voltam e os tempos se reencontram. Os meninos por escrito. Demiro, Divino, Aparecida, Valdinho. Folga sabê-los ainda vivos. Saídos do tempo cíclico para o tempo interior da ficção, a cavalo de letras, com a língua de trapo do fio narrativo. O conto como se conta pelo fio, num colar de contas-de-lágrimas.
Os ventos que voltam, que cinzas sopram agora? Os tempos de volta, o que contam do que foi embora um dia? Que rosto de dor agora se contrai e se mostra dos meninos? Que rosto lhes resta, em ruínas?
“Que mal pergunte, o senhor é parente do menino que está procurando? É mesmo?! Mas então é o senhor mesmo?! Ora, ora, quem haveria de imaginar? Esse mundo dá mesmo suas voltas.”
Ele mesmo que se procura, um pouco se reencontra. A velha casa ali ao lado, soturna, silenciosa. Um livro que se fecha no tempo. Por dentro, quem sabe? O espírito do passado, por suposto que não inteiramente morto. “Vivo! Ele está vivo! Abriu os olhos! Mexeu ali!” Os gritos das curicacas. Que o menino virou personagem de livro. Ali, feito fantasma. Uma sombra que se move no desemboque das palavras.
Valdivino Braz é jornalista e escritor.
Nota: o conto aqui publicado, misto de prosa poética, foi vencedor da primeira etapa, em seleção regional (Centro-Oeste), da 14ª Edição do Concurso Cultural Talentos da Maturidade, promovido, em âmbito nacional, pelo Banco Santander (Santander Cultural/Ministério da Cultura). Agora revisto e reestruturado, posteriormente o conto será acrescido de uma segunda parte, ainda em processo de elaboração. O título do conto inspira-se no nome do filme norte-americano “Alice Não Mora Mais Aqui”, de 1974, dirigido por Martin Scorsese, com roteiro de Robert Getchell.