Velhice
09 outubro 2015 às 14h54
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Marcos Nunes Carreiro
–– Mãe, ele riu.
–– Ele acha que ele está rindo.
–– É o formato da boca. Dependendo de como se olha, realmente parece que ele está rindo.
–– Mãe, olha. Ele riu.
De fato. Não é de duvidar que Eurípedes estivesse sorrindo naquela manhã, mesmo tendo passado toda a noite deitado na mesma posição. Afinal, morrera dormindo na tarde do dia anterior. Há um modo melhor para morrer do que dormindo?
Estavam todos tranquilos no velório. O corpo havia chegado à igreja depois da meia-noite e todos ali ficaram até o início da tarde, quando levaram o corpo para o cemitério. Cheguei às sete da manhã, talvez por isso já não tivesse ninguém chorando. Até Paulo, o filho mais novo de Eurípedes que ainda morava com os pais, aos 47 anos, devido à hidrocefalia, estava com o semblante limpo.
Na verdade, pensando bem, não foi o horário a fazer com que todos se entregassem à tranquilidade. Nem era aquilo pura aceitação. Eurípedes, um homem austero e justo, já havia orientado tanto Paulo quanto Margarida, sua esposa, sobre o dia que estava chegando. Ele sabia que, aos 89 anos, seu tempo deveria estar quase findo. Já não era exatamente saudável.
Mas havia sido na esmagadora parte de sua vida. O Velho Eurípedes era chefe de cozinha. Alimentou paladares aguçados, e outros nem tanto, por muitos anos. Desde os tempos em que ainda não era chamado de “o Velho”. Herdou o gosto pela comida da mãe e o bom apetite do pai, que fora conquistado pelo estômago, tanto quanto Margarida, sua nora.
A posição de chefe de cozinha, um dos melhores, possibilitou a Eurípedes viajar mundo a fora. Ele aproveitava as idas e vindas para fazer duas coisas: aprender o máximo possível sobre a culinária local, em todos os seus aspectos; e colecionar conversas com idosos. Eurípedes era sedento por histórias. As queria todas e ninguém melhor para contá-las que os velhos habitantes dos locais que visitou.
Esse era um hábito antigo. Quando menino, não era raro vê-lo aos pés do grupo de amigos de seus avós maternos. Chegava da escola, trocava de roupa e atravessava a rua em direção à casa dos velhos parentes. Sentava-se a seus pés e pedia para ouvir as experiências, anedotas e antigos contos. O garoto explorava as mais profundas memórias daquelas pessoas.
Era um bom grupo de idosos. Além de seus avós, Dona Europa e Seu Juvenal, havia também os amigos de infância deles: Seu Juarez, Seu Pedro, Seu Francisco e Dona Ana, esposa do último. Cresceram todos juntos. Dona Vânia e Dona Fátima, mulheres do Seu Juarez e do Seu Pedro, respectivamente, já haviam morrido quando Eurípedes nasceu. Mas ele as conhecia como se houvesse convivido com elas. Era uma boa relação. O menino queria ouvir e os velhos relembrar.
Foi assim que Eurípedes cresceu sabendo de muitas coisas e, provavelmente, recebeu o acréscimo de “o Velho” ao próprio nome. Já na adolescência, tinha a maturidade de um jovem adulto. Acostumou-se a aprender com os erros cometidos por todos que viveram antes dele. Quando completou 17 anos, emancipou-se e partiu para a cidade grande. Não tinha mais a presença de seu grupo de idosos, nem a possibilidade de atravessar a rua com tanta facilidade, mas tinha o discernimento necessário para saber o que queria.
Aos 25, já cozinheiro estudado e conhecido na metrópole, conheceu Margarida. Ela cantou no restaurante um dia e ele mandou, com cumprimentos, um prato especial à sua mesa. Tão especial quanto ela própria passou a se sentir daquele dia em diante. Casaram-se dali a um ano. Ela viajava muito. Ele passou a fazer o mesmo. Passavam poucos meses juntos e, de tempos em tempos, um viajava. Às vezes os dois. Não era fácil, mas Eurípedes voltava cada vez mais sábio e, com grandes novidades, fazia Margarida mais feliz que sua flor homônima o era na primavera.
Pararam com as viagens quando ela engravidou. Já não era tão nova. Ele estava na Índia quando recebeu o telegrama vindo da Argentina avisando que em breve seria pai. Voltou o mais depressa possível. Nasceu Augusto, morto em julho, oito invernos depois, vítima de pneumonia. Nessa época, já tinham Paulo, que acabara de completar dois anos. Sabiam que o filho mais novo nunca iria sair de perto deles devido a sua doença. Isso, somado à tristeza da perda do mais velho, foi motivo suficiente para que Eurípedes e Margarida se resignassem a não ter mais filhos.
Não os tiveram, mas foram felizes. Afinal, aos sete anos de idade, Paulo falava. Sua doença era menos grave do que imaginavam. Margarida já não cantava mais profissionalmente e Eurípedes era chefe do restaurante mais bem frequentado da cidade. Decidiram os dois, então, colocar Paulo em contato com pessoas felizes e falantes. Os idosos da casa de apoio próxima da residência do casal receberam bem a ideia. O chefe e a cantora, sempre sorridentes, alimentaram e divertiram vários grupos de velhinhos durante algumas décadas, até que eles próprios se tornaram idosos.
Paulo, a essa altura, era reconhecido no bairro. Mais sorridente não havia. Era sua marca e aquilo que também gostava de marcar nas pessoas que conhecia. Foi Paulo que ajudou seu pai a se levantar da cama naquele dia. O Velho Eurípedes precisava ir à fisioterapia. Era a última sessão. Havia caído umas semanas antes e lesionado o braço direito.
O taxi já estava à porta. Com a ajuda de Paulo, o ex-cozinheiro se ajeitou no banco traseiro. Com o auxílio do filho, ele subiu para a sala da fisioterapeuta. Na volta para casa, foi apoiado no único herdeiro, que pediu para se deitar a fim de descansar um pouco. E a cada ajuda, um sorriso acompanhado de um “obrigado, meu filho”.
Margarida deve ter se lembrado disso quando, seguindo a voz do filho, olhou para o marido mais uma vez.
–– Mãe, olha. Ele riu.
–– Sim, meu filho. Ele riu.