Opção cultural

O leitor perceberá que cometi algumas liberdades. Adaptei, suprimi, refiz a métrica. As poesias traduzidas pertencem aos seguintes livros: “Hacia outra luz más pura”, e “El misterio de la felicidad”

Banda goiana divulgou na tarde desta quarta-feira (7/6) o álbum Lá Vem a Morte, com oito músicas, sete delas inéditas, em 27 minutos e 11 segundos

Livro de Wladimir Saldanha sustenta-se sobre uma interessante combinação de gêneros: além do lírico, que é a essência da obra, temos, ainda, procedimentos narrativos, elementos propriamente épicos e uma estruturação dramática do conjunto
[caption id="attachment_96640" align="aligncenter" width="620"] Wladimir Saldanha. Ilustração: Felipe Stefani[/caption]
Emmanuel Santiago
Especial para o Jornal Opção
Natal de Herodes (Mondrongo, 2017) é o quarto livro de poesia de Wladimir Saldanha. Nele, referências históricas e intertextuais se misturam ao drama pessoal/familiar de um eu lírico marcado pela ausência paterna, o que constitui o eixo em torno do qual se integram rememoração e reminiscência (as duas dimensões da memória). Temos, então, um eu lírico que procura no metafísico, na Comunhão com a figura de Cristo, uma via de redenção para seu dilaceramento interior. Contudo, engana-se quem pense tratar-se de uma obra apologética, de viés proselitista, pois os poemas, além de ser a elaboração estética de uma experiência ao mesmo tempo pessoal e com aspirações ao universal, não se negam às contradições de uma fé sincera e, por isso mesmo, às vezes vacilante e algo irreverente. Não só por conta disso, mas também pelo manejo habilidoso de diversas formas poéticas (o que inclui tanto o verso metrificado quanto o livre), Natal de Herodes pode ser colocado em linha de sucessão com Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima, um dos momentos mais altos da poesia brasileira.
O livro possui duas partes, “Tempo do Advento” e “Tempo do Natal”, cada uma dividida em três seções. Na primeira delas, há um movimento centrífugo da vivência particular em direção à tradição, em que as lembranças pessoais evocam imagens do passado histórico e do campo artístico. A primeira seção, “Registro dos enjeitados”, pode ser descrita como uma empreitada do eu lírico em reconstituir a própria história, costurando fragmentos de sua infância, marcada pela falta da figura paterna. No último poema da seção, “Os bens do ausente”, entra em cena um recurso amplamente utilizado ao longo do livro, o da dramatização do conflito interior, em que o eu lírico assume uma personagem, máscara dramática, para representar suas vivências, conforme os já manjados versos daquele autor português que definia a si mesmo como “poeta dramático”: “O poeta é um fingidor./ Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente”. Em vez de destacar o caráter fictício da fabulação poética, chamo atenção ao “A dor que deveras sente”, à vivência pessoal que serve de referente ao trabalho ficcional. Em “Os bens do ausente”, o conflito com o pai se exprime num paralelo com a história do parricida Édipo:
Porque andas tempo inteiro,
tenho, pai, os pés inchados.
Salvou-me que pegureiro,
a mim seu filho, ou de Laios?
Salvou-me; após me daria
a outro, este a um Políbio,
de quem, chamando-me filho,
fujo eu sem profecia,
mas já por medo da palavra
pai, que me pilhastes:
tua ausência me escalavra
os signos, torna-os trastes.
Aqui, a máscara é vivida como símile, como paralelo. Porém, ao longo da obra, ela vai adquirindo uma natureza metafórica, fundindo-se à identidade do “eu lírico vivencial”, digamos assim, que encena seu drama particular diante do leitor.
Na segunda seção da primeira parte, “As paternidades”, procura-se reinventar a história pessoal, lançando mão de referências históricas, artísticas e, sobretudo, literárias (ou, num outro sentido, busca-se ressignificar aquela por meio destas) num diálogo cerrado com a tradição. Trata-se de um mosaico intertextual por meio do qual se pretende recompor a imagem do pai ausente, um esforço de, no âmbito da ficção — revisitando a vida e a obra de escritores como Rilke, Borges, João Cabral, Verlaine, entre outros —, recriar o enredo do drama pessoal/familiar que é o fio condutor do livro. Um ponto interessante é a tentativa de suprir a carência da figura paterna, substituindo-a por artistas, como se vê em “Sufrágio por três pais”, série de poemas dedicados a Jorge Amado, Lêdo Ivo e Tom Jobim.
Já na terceira seção, “Palimpsesto de Cesareia”, assiste-se a um verdadeiro zigue-zague entre fragmentos da história antiga, ligados ao contexto do surgimento do cristianismo, e eventos biográficos. Assistimos a uma arqueologia da memória, em que acontecimentos, paisagens e objetos do passado ganham nova significação à luz das vivências de uma perspectiva contemporânea que, aliás, identifica ressonâncias épicas e míticas em elementos do cotidiano. De acordo com as categorias do pensamento de Walter Benjamin no ensaio “O narrador”, estaríamos diante de uma convergência entre a dimensão individual da memória, que se constitui por meio das vivências do sujeito — a rememoração — e a dimensão coletiva, matéria da tradição e construída com base na experiência social — a reminiscência. Trata-se de procurar, na reminiscência, o significado existencial que escapa às vivências que o eu lírico recompõe com o trabalho da rememoração.
É nesta parte que a dramatização do conflito interior começa a ser encenado por sua máscara preferencial: Herodes, suposto autor de três poemas que se passam por fragmentos textuais. Neles, o fantasma do idumeu que governou Israel como rei cliente sob domínio romano depara com as ruínas atuais da cidade de Cesareia, por ele construída. O que lhe chama atenção é a ausência da água que, no passado, era transportada pelos aquedutos. A água ausente, como fica claro na abertura do terceiro fragmento, é um símbolo da ausência paterna:
Tive pai, mas o meu envenenaram
e porque fui idumeu, o meu,
negaram-se sempre alguma coisa,
por isso o apreço pela falta.
Começamos a vislumbrar, então, a importância da máscara de Herodes. Ela representa, de diferentes maneiras, a condição do “filho prólogo” (que é o título do poema que abre o volume). O filho prólogo é aquele preterido pelo pai em nome de um segundo filho, de outra mãe, devidamente reconhecido. Já o órfão Herodes, por ser idumeu e, portanto, de linhagem ilegítima, vive assombrado com a possibilidade de que sua coroa lhe seja usurpada por algum pretendente de maior legitimidade, como seu cunhado Aristóbulo (mote do poema “O afogamento de Aristóbulo”). A correspondência entre o filho prólogo e Herodes é explicitada nos seguintes versos de tal poema, em que se verifica o já citado zigue-zague entre vivência contemporânea e história antiga:
[caption id="attachment_96641" align="alignleft" width="300"]
"Natal de Herodes", Mondrongo, 2017[/caption]
(...)
Como de brincadeira,
insuportavelmente,
nos jardins, piscinas infláveis
ou de armação, brincam
Aristóbulos com seus pais
e Herodes sem linhagem
têm de assistir à ablução
risonha, sem exprobar!
(...)
O título “Natal de Herodes”, portanto, sugere a ideia de um monarca encolhido à sombra do futuro “rei dos judeus” que está para nascer (ideia presente no poema “Pelo Rei Herodes”, da segunda parte do livro), o que corresponderia à situação do primogênito bastardo preterido pelo rebento mais novo de uma relação legítima do pai. Esse jogo de máscaras por meio do qual se representa o drama pessoal/familiar é metalinguisticamente desvelado em “Hipólito, Teramenos”, em que o eu lírico se traveste ora de Hipólito (personagem de uma tragédia euripidiana, retomada por Racine em Fedra), ora de Ícaro:
(...)
meu Teramenos amigo!
Perdoa se oscilo eu
entre Hipólito e Ícaro:
ambos morrem pelo Egeu
e os deuses pelo que digo.
Neste ponto, já é possível perceber que as diversas máscaras que o eu lírico assume são alegorias que visam a representar o drama da ausência paterna. T. S. Eliot, no ensaio “Talento individual e tradição”, destaca que a poesia “não é a expressão da personalidade, mas uma fuga da personalidade”, pois se trata de uma combinação de referências literárias e extraliterárias — por vezes estranhas à vivência particular do autor — que, à força do processo compositivo, integram-se na objetividade do poema, artefato linguístico. Na criação poética, em suma, há um processo de alienação da vivência, que se transforma em algo qualitativamente distinto. Para tanto, é preciso que o poeta abandone a própria personalidade, tornando-se uma caixa de ressonância das palavras dos autores mortos que constituem a tradição literária. Saldanha, contudo, obtém uma sutil alquimia: apropria-se das referências da tradição e lhes empresta um significado novo, que, mesmo não sendo o da vivência real do autor, é sua reinvenção, sua elaboração estética; ele faz, da tradição, matéria íntima. É isso o que se pode chamar de intimismo universal: a intimidade do autor se infiltra na universalidade dos arquétipos literários, atualizando-os e os atraindo à realidade contemporânea.
Se “Tempo do Advento” se caracteriza por um movimento centrífugo da vivência particular para a tradição, em “Tempo de Natal”, a segunda parte do livro, temos o movimento inverso, centrípeto. Em sua primeira seção, “Natal de Herodes”, seguido de um “Calvário de Herodes”, as máscaras dramáticas do eu lírico, interpretando personagens bíblicas, fazem-se presentes de poema a poema: Reis Magos, Herodes, Maria, José e Zacarias. Ao final da seção, em “Calvário de Herodes”, vemos o rei consumido pela culpa de ter condenado à morte Mariana, sua amada esposa, por desconfiar que ela tramava contra ele.
O mesmo movimento centrípeto, em que as referências bíblicas e históricas se remetem à vivência particular, constata-se na terceira seção, “Responsório do silêncio”. Na segunda seção, entretanto — “Desdobramentos do Natal”—, novamente o vetor da fabulação poética parte da vivência contemporânea do eu lírico, envolvendo, por vezes, acontecimentos triviais relacionados ao feriado natalino. Atravessa-a por inteiro a esperança de, por meio da Comunhão com uma criança divina prestes a nascer, alcançar a redenção do sentimento de incompletude gerado pela ausência paterna, como se percebe nitidamente nos dois poemas de “Se não tenho pai, se ela usa túnica”.
Em “Responsório do silêncio”, mais uma vez, referências históricas e mitológicas são convidadas a participar do drama do pai ausente: o Caim ciumento, assassino do irmão preferido por Deus; o Isaac que tem “o cutelo do pai ausente contra a garganta”; mais Herodes, Judas, Pedro, Zaqueu etc. Um dos poemas mais interessantes (na verdade, uma coroa aberta de 10 sonetilhos em redondilha maior) é “Dois reis” em que, num procedimento dialético ao gosto de João Cabral, são comparadas as figuras de Jesus e Édipo. Já em “A pergunta”, o eu lírico entoa o Salmo 22, repetido por Jesus à cruz, impregnando-o de reverberações pessoais:
Eu não salmodio,
não entoo Davi.
Eu pergunto ao pai
ausente em meus botões,
por que me abandonaste?
POR QUE ME ABANDONASTE?
(...)
Na segunda parte de “Natal de Herodes”, é perceptível a iminência do nascimento de Jesus como uma promessa de redenção do eu lírico, existencialmente mutilado pela falta do pai. Por meio da Comunhão com Cristo — e, num certo sentido, também com a tradição —, espera-se atingir um estado de plenitude que a vivência, destituída de um significado intrínseco, não possibilita, fazendo com que seja necessário buscar algum significado no âmbito da cultura e no metafísico. Entretanto, o enredo desse drama é mais complexo e ambíguo que isso. Cristo não é apenas esperança, promessa de redenção. Para Herodes, por exemplo, espécie de alter ego do autor (como fica claro na nota de agradecimento ao final do livro, assinado por um “Eu, El-Rei Herodes”), Jesus significa a ameaça de um potencial usurpador. Figura polissêmica, o Filho assume diversos significados, inclusive o de substituto ao pai ausente (faceta semântica que predomina ao longo do livro). É preciso reconhecer, porém, que, mesmo em sua função redentora, esse Cristo costuma se fazer presente sobretudo como ausência, ou melhor dizendo, como latência. Assim, a identidade do Filho com o pai ausente estende-se também à imagem daquele que não está, de lacuna na personalidade do eu lírico. Em “Por José (I)”:
Então ser pai é esta ausência
ao lado.
Imensa ausência, maior até
do que a primeira que lhe impusera:
Pai daquele de quem é
quem ele era.
Em “Por Maria (II)”, por sua vez:
O primeiro aniversário
sem Ele
é este vazio
de rotunda
sem edícula
este frio
de Eternidade
esta verdade
na canícula
Natal de Herodes não apresenta uma história de redenção, como no caso de A divina comédia de Dante, monumental alegoria do reencontro da alma perdida (por metonímia, a humanidade) com o Criador; trata-se, na verdade, do drama de uma procura e — por que não? — também de uma dramatização de uma neurose obsedante. O Natal segue-se ao Advento, nasce o Messias, mas o vazio, que tem o peso de todas as possibilidades, não se dissipa. Estamos diante de uma trajetória que vai da mágoa à esperança, verdadeira sublimação de profundas questões psicológicas.
O livro de Wladimir Saldanha sustenta-se sobre uma interessante combinação de gêneros: além do lírico, que é a essência da obra, temos, ainda, procedimentos narrativos, elementos propriamente épicos e uma estruturação dramática do conjunto, como se vê pelas diversas máscaras que o eu lírico assume. Como se não bastasse a grande qualidade poética de Natal de Herodes e o virtuosismo de seu autor, é preciso dizer que o livro em si é uma atração à parte graças às ilustrações de Felipe Stefani, com seu vertiginoso traço que, ao mesmo tempo em que empresta diafaneidade às figuras, destaca o aspecto material do traço, rabisco que se concentra numa forma inteligível; ambiguidade entre o material e seu conteúdo ideal, que dialoga muito bem com a tortuosa busca metafísica que os poemas expressam.
Emmanuel Santiago é poeta, tradutor e professor de literatura.
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Referências bibliográficas
BENJAMIN, Walter. “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. 7ª ed. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1994, pp. 197-221.
ELIOT, T. S. “Talento individual e tradição”. In: Ensaios. Tradução Ivan Junqueira. São Paulo: Art, 1989, pp. 37-48.
SALDANHA, Wladimir. Natal de Herodes. Itabuna: Mondrongo, 2016.

A sofisticação dos programas de TV é um fenômeno relativamente novo; série tomando qualidade de cinema. Breaking Bad é a primeira grande peça desse novo caminho da indústria do entretenimento
Já estudei muito tragédia grega. Dois livros são essenciais neste tema: "A Origem da Tragédia", do Nietzsche, onde há uma análise sob o ponto de vista filosófico e religioso; e "Poética", do Aristóteles, onde se analisa os caracteres técnicos da construção do drama, principalmente na obra de Sófocles.
Os poetas trágicos não criavam argumento, que é o mote sobre o qual se desenvolve a ação. Faziam seus textos sempre a partir dos mesmos mitos tradicionais, e as competições eram sobre quem desenvolvia com mais habilidade as variações de ação sobre os argumentos já conhecidos do público.
Criar argumento é perigoso, pois há grande chance de ser artificial e, portanto, irrelevante. As boas narrativas em geral trabalham motes clássicos, como o amor, o ciúme, dilemas morais, as guerras, a vingança. Pra pegar um exemplo pop, Tarantino fez dois grandes filmes a partir de argumentos muito básicos: Kill Bill (vingança) e Bastardos Inglórios (II Guerra).
Breaking Bad conseguiu a façanha de um argumento modernoso e inovador na aparência, além de curioso (um professor de química que, ao se descobrir com câncer de pulmão, começa a fabricar metanfetamina), e, no fundo, clássico: um homem encarando a própria mortalidade.
Aqui entra também um dilema "dostoievskiano" sobre se, perante a mortalidade e a perspectiva de desaparecimento, vale a pena jogar pelas regras. Essa pergunta atormenta Walter White e os consequentes dramas de consciência, justificações e tentativas de redenção são muito bem trabalhados.
Quanto à estrutura narrativa, Aristóteles dizia que dois recursos são essenciais pra provocar a "catarse" no público: o reconhecimento e um desenlace inesperado. O "reconhecimento" se dá quando um personagem conhecido da trama revela sua verdadeira identidade, para a surpresa de todos. A identidade verdadeira deve ser relevante.
Um exemplo famoso na cultura pop é o "Luke, i`m your father", do Star Wars. Em Breaking Bad há dois reconhecimentos. O primeiro no episódio "Mandala", quando Walt senta na mesinha dos Pollos Hermanos com Gus Fring, que, até então fingindo não conhecê-lo e ser um mero dono de fast food, de repente muda a expressão e solta o "I don't think we`re alike at all, Mr. White. Your partner was late. And he was high".
O segundo é quando Hank acha o "Leaves of Grass" no banheiro de Walt e percebe que ele é, na verdade, Heinsenberg. Neste ponto há também o que Aristóteles chama de "desenlace", o fato que desata o nó da trama, no caso, como Heinsenberg seria descoberto e pego pela DEA.
E Gilligan acha uma solução perfeita, verossímil, a partir de um elemento casual presente na trama, sem recorrer ao que chamamos de "Deus ex machina", uma solução mirabolante vinda de fora dos fatos já fornecidos. Solução "ex machina" seria, por exemplo, se Hank sonhasse que Walt era Heisenberg e isso desencadeasse sua investigação e perseguição.
Enfim, isso é o básico, eu poderia escrever um livro sobre cada ponto do Breaking Bad. Não existe nenhuma série à altura ainda, apesar de eu nunca ter visto Família Soprano, que dizem ser do mesmo patamar. A sofisticação dos programas de TV é um fenômeno relativamente novo; série tomando qualidade de cinema. E, pra mim, Breaking Bad é a primeira grande peça desse novo caminho da indústria do entretenimento.

Sequência da série iniciada em 21 de maio, sob organização de Luiz Bras, Sérgio Tavares e Anderson Fonseca, traz mais dois contos dedicados a dois escritores. Desta vez, os homenageados são André Carneiro e William Gibson
[caption id="attachment_96507" align="alignleft" width="300"] Ilustração: Bianca Lana[/caption]
Revolução do zíper
Homenagem a André Carneiro Luiz Bras Especial para o Jornal Opção No sermão dominical, repetiu nosso abençoado presidente: {No princípio era o caos opaco e o Plástico Transparente. E o plastrans, desafiando o caos opaco, gerou as galáxias, o sistema solar, a Terra, o homem e todos os animais. E o homem, soberano na Terra, criou o Estado Único, o triunfo espiritual, social e político do plastrans. } {No mundo ideal tudo é transparente: cidades de plastrans acolhem amorosamente cidadãos de plastrans. Na sociedade perfeita a liberdade e a felicidade são sempre obedientes, e a obediência é sempre transparente. } {Mas o caos opaco, avesso à beleza e à obediência, não descansa… Sombras insidiosas esperam pacientemente o melhor momento pra turvar a transparência do cosmo e do homem. A sagrada missão do Estado Único é proteger a qualquer preço o radiante facho de Plástico Transparente que habita cada um de nós.} Fechar as bocas, todas as bocas, o poder central e a felicidade geral da nação exigem bocas fechadas, interromper também os olhos e os ouvidos, que cidadão algum fale, veja e ouça o que não deve ser falado-visto-ouvido. {Que estropício espalhou que neste mundo haveria pão e circo, bem-estar e dignidade pra todos?} “Quando falta material hospitalar, quando faltam leitos e médicos, o cidadão reclama demais, pára o trânsito, queima pneus, um horror.” “A repressão policial já não está dando conta da situação, muito menos a repressão religiosa, a censura artística, científica.” {Que estafermo propagou a noção estapafúrdia de liberdade-igualdade-solidariedade?} “Quando falta material escolar, quando faltam salas de aula e professores, o cidadão também reclama demais, volta a parar o trânsito, queimar pneus, um horror.” “A repressão do jornalismo também não está dando conta da situação, muito menos a repressão dos costumes, a pressão da tradição, da moral.” “Basta de blablabá. O presidente já avisou que não tolerará outro fracasso. Chega desse chove não molha. Sua excelência quer detalhes da solução final. Tragam o inventor.” {Que palerma avisou aos enxadristas que peões e cavalos merecem os mesmos privilégios da nobreza e da realeza?} Entra o inventor, escoltado-arrastado por dois agentes do serviço secreto. “Senhor Gideão, após muito deliberar, decidimos patrocinar seu projeto.” “Mas eu não pedi nada…” “Esta sagrada comissão e nosso abençoado presidente entendemos que sua invenção encerra um alto potencial civilizatório.” “Mas eu não pedi…” “Trata-se, como o senhor sabe, de uma questão de segurança nacional.” “Mas eu não…” “É verdade que dinheiro não há, vivemos tempos difíceis, a balança comercial, a previdência social, o déficit no orçamento, o senhor compreende.” “Mas eu…” “Tudo o que podemos oferecer ao senhor é a honra de prestar um grande serviço ao país e a perpétua satisfação do dever cumprido.” “Mas…” “Muito melhor que a prisão perpétua, o senhor não concorda?” {Gostar de poesia é fácil, quero ver gostar dos poetas.} O inventor é convidado a assinar o contrato de cessão total do direito de produção e difusão de sua admirável invenção, sem ônus para o Estado. {Gostar de ciência é fácil, quero ver gostar dos cientistas.} O inventor recusa-se a assinar. Os dois agentes do serviço secreto socam seu rosto, seu abdome. O inventor recusa-se a assinar. Os dois agentes do serviço secreto arrancam seus dentes, suas unhas. {Gostar de religião é fácil, quero ver gostar dos religiosos.} O inventor recusa-se a assinar. Os dois agentes do serviço secreto enfiam sua cabeça numa tina de água. O inventor recusa-se a assinar. Os dois agentes do serviço secreto introduzem um cabo de vassoura em seu ânus, dão choque em seus testículos. {Gostar de política é fácil, quero ver gostar dos políticos.} [relacionadas artigos=" 95058 "] O inventor recusa-se a assinar. O chefe da comissão ameaça prender a mulher e as filhas do inventor, que finalmente assina o contrato. Acima das manchas de sangue surge uma garrafa de champanha e muitas taças. Brindam à saúde do abençoado presidente de nossa gloriosa social-sensacional-democracia. {Riem a bandeiras despregadas.} Os dois agentes do serviço secreto escoltam-arrastam o inventor pra fora do salão. {O fio de Ariadne esta noite é vermelho.} Resolvidos os detalhes contratuais, a invenção de Gideão logo se torna o mais precioso presente de nosso abençoado presidente a seu amado eleitorado. Cirurgiões de jaleco corporativo vão de casa em casa suturando a solução final primeiro em crianças e jovens bastante cooperativos, depois em adultos agora nada conspirativos. Fechar as bocas, todas as bocas, o poder central e a felicidade geral da nação exigem bocas fechadas, interromper também os olhos e os ouvidos, que cidadão algum fale, veja e ouça o que não deve ser falado-visto-ouvido. É claro que o cidadão pode escolher a cor e a textura das fitas de tecido, é claro que o cidadão pode escolher o design e o metal do cursor e do puxador, dos dentes e da parada. Afinal vivemos numa gloriosa social-sensacional-democracia, esqueceram que nosso lema é ordem, liberdade e progresso? {Ah, que lindo de admirar, mais ainda de fotografar e filmar, boca-olhos-ouvidos fechadinhos, ah, que lindo, Arlindo, a população sem voz-visão-audição zanzando por avenidas-escolas-estádios sem ódios, por labirintos enfim pacificados.} F I M Fim o caralho, a cabaça, ó meus irmãos, que a revolução está só começando, ride ridentes, sorride sorridentes, quem manda nesta História sou eu, se a realidade política contradiz a fantasia poética, pior pra realidade política, neste espaço eu faço e desfaço, fim a cabaça, o caralho, ó minhas irmãs, contra o mal-mau eu convoco o bem-bom, estão percebendo o tremor de terra, a dança da pajelança-criança, ride ridentes, sorride sorridentes, do fundo do mato-virgem vem Macunaíma, herói de nossa gente, trazendo a pandemia-utopia, rejeitando o voto e o serviço militar obrigatórios, levando ao colapso o Estado centralizado, do fundo do mato-virgem chegam o curupira e o mapinguari, vêm abrir as bocas, todas as bocas, também os olhos e os ouvidos, pra que todos falem, vejam e ouçam o que deve ser falado-visto-ouvido, ride ridentes, sorride sorridentes, a liberdade levanta voo, o vento espalha nosso delírio, acaricia nossa lucidez, que reluz, tremeluz, feliz, chega de ladrões, chega de usurpadores, não existem homens nobres por isso livres, existem homens livres por isso nobres, quem manda nesta História sou eu, então fecho, encerro, reverbero, com alegria, alegria, carnavalizando o mal-mau europeu, convocando o bem-bom tropical, a propriedade particular é pornográfica, a propriedade pública é erótica, o curupira e o mapinguari querem menos Pornos e mais Eros, trazendo a pandemia-anarquia vem Macunaíma, vem no centro do rodamoinho, transferindo a solução final pra botas e calças e jaquetas e quinquilharias outras, fim o caralho, a cabaça, ó meus irmãos, vejam só: o herói de nossa gente liberta o inventor e prende o presidente, os ministros, os assessores e os agentes do serviço secreto, enfia todas as autoridades neste cárcere bidimensional chamado papel, nesta máquina chamada livro, que é pra jamais voltarem a azucrinar a nossa paciência, que é pra jamais voltarem a nos pentelhar sem fiscalização, que a revolução está só começando e quem manda nesta História sou eu. Luiz Bras é crítico literário e escritor. *** [caption id="attachment_96508" align="alignleft" width="300"]
De códigos genéticos e pães franceses
Homenagem a William Gibson Santiago Santos Especial para o Jornal Opção A lembrança da turbulência do voo ainda irritava o estômago sensível de Nilesh enquanto seguia Manu pelas vielas do Coophamil. Fome, a mãe sagrada de todas as necessidades. Fome de vida, no caso, uma vida de rei em Singapura desperdiçada pelo equilíbrio mal calculado entre blackjack, puteiros e uísque. A Louva-Deus Sagrado o colocou pra correr sem muito mais que a roupa do corpo e os dentes na boca. Antes da fuga, uma parada no laboratório da Myrage, onde gastou a maior parte dos últimos 12 anos, para uma série de injeções no próprio corpo e uma maleta com os últimos protótipos da pesquisa. A reescrita CRISPR teve como efeito colateral apenas a sensibilização aguda do seu estômago, o que explicava por que nos últimos quatro dias nada parava dentro dele. Por outro lado, seu código genético já não era mais o mesmo, nem seu suor, nem suas digitais, nem suas pupilas, o que lhe permitia usar a lente de realidade aumentada sobre elas, conectando à rede sem se preocupar com os escaneamentos que a Myrage exigiria dos governos e agências de inteligência quando descobrisse que seu bioquímico mais cobiçado havia desaparecido com uma maleta de propriedade roubada. − Oi, sou a Manu. Me pediram pra te buscar − ela disse, em inglês. Aguardava sua chegada no trevo da entrada do Coophamil, onde o táxi do aeroporto o deixou. Logo adentraram a configuração de ruas com tendas e barracas onipresentes sobre o asfalto quebrado, carcaças de carros transformados em estufas, gambiarras elétricas nos postes irrigando casas e prédios pequenos com fios esticados, uma multidão colorida e acalorada de um lado pro outro. Seu prometido refúgio. A Djorúbo, uma organização ainda desconhecida, recrutava especialistas dos mais diversos campos. Não a escolheria como porto seguro contra a caçada da Myrage não fosse por Harini, uma antiga amiga cientista da própria Myrage. Estava instalada em Cuiabá há alguns meses e fez a ponte entre Nilesh e a Djorúbo, interessada na tecnologia CRISPR. Manu seguiu até topar com uma escadaria de degraus lascados que dava em um corredor que parecia escavado na terra, com várias portas. Nilesh apertou o indicador com força no polegar, acessando o menu de realidade aumentada em seu campo de visão, sobreposto ao que enxergava, e o localizador de GPS: pensão Pequi Roído, dizia a legenda ao lado do seu ponto no mapa translúcido. Entraram em uma das portas. Harini estava sentada na cama. Ela o abraçou e conversou com ele em malaio, o que o deixou mais confortável. Manu aguardou até que terminassem a conversa e os guiou pelo corredor até outra porta. Dentro, um homem de rastafári o cumprimentou em um inglês de dicção perfeita, com sotaque jamaicano. Estendeu-lhe a mão. − Seja bem-vindo a Cuiabá, doutor Suryavanshi. Sou Alek e falo em nome de Butau-Curi-Répa, que não pôde estar presente. Temos um apartamento pronto pro senhor, próximo à residência de Harini. Sei que deve estar exausto da viagem. Manu vai levá-lo até lá. Eu queria cumprimentá-lo pessoalmente. Amanhã conversaremos sobre os pormenores da sua colaboração. Nilesh agradeceu e voltou a seguir Manu pelo bairro, com Harini ao lado. O Coophamil seria uma casa bastante diferente da sua querida Singapura, expoente tecnológica do mundo pós-névoa; Cuiabá era capital da maior região exportadora de commodities das Américas e seguia a cartilha urbana do novo capitalismo extrativista: periferias de condomínios ricos ultrafechados e um centro pobre. Estava no centro. Chegaram a um prédio de dois andares e subiram a escadaria. Manu abriu um dos apartamentos. Do lado interno da porta, reforços na madeira e vários trincos de combinação. As janelas tinham o mesmo tipo de tranca. Nilesh largou a maleta em uma cama de solteiro arrumada. O lugar estava todo mobiliado, pronto para morar. Manu abriu um armário cheio de roupas. − Compramos com base nas suas preferências. Espero que sirvam. A geladeira também está cheia. Pode liberar o meu acesso? Manuela 7043V − ela tocou em algo no ar e empurrou na sua direção. No campo de visão de Nilesh apareceu um mapa de imagem de satélite cheio de pontos de referência com legendas ocultas. Eram os arredores do prédio. − A vizinhança, com recomendações de lugares para comer ou beber algo, se quiser. Enquanto estiver no bairro, não há problema em circular. É claro que recomendamos cautela. Mas sei que o senhor está ciente disso. Ela disse que alguém entraria em contato no dia seguinte e saiu. Nilesh ficou à sós com Harini. Ela o abraçou novamente. Ele se deixou abraçar, depois se deixou largar no piso do banheiro sob o chuveiro gelado enquanto ela fazia café na cozinha. Esfregou o corpo todo três vezes. Fez a barba com uma gilette nova na pia. Quando saiu, ela o esperava na mesa, um saco de padaria aberto. − Pão francês − ela disse −, que é o pão brasileiro, na verdade. Acho que você vai gostar. Comendo um sanduíche, falou com ela sobre seus últimos dias em Singapura e sobre os avanços na pesquisa. Os nanocomponentes que trazia na maleta eram um estoque experimental de CRISPR, nucleotídeos capazes de editar linhas do genoma humano, como os que injetou no próprio corpo. Por enquanto as alterações eram singelas, mas já podiam curar certas doenças e alterar assinaturas corporais. Faltava expandir suas possibilidades. As apostas em Singapura eram de que a tecnologia se tornaria comerciável em até dez anos. E ali estavam os caríssimos protótipos de pesquisa da Myrage. Harini foi embora depois do lanche para deixá-lo descansar. Nilesh sentou de frente pra janela do apartamento, observando a nova vista, o calor empapando as axilas. Vasculhou o armário da cozinha até achar o Old Parr 18 anos. Fizeram um bom trabalho de pesquisa. Encheu o copo, voltou a sentar. Do uísque não largaria. Dos puteiros, com muito esforço, talvez. O blackjack era um proibitivo. Um proibitivo contundente. Não queria ter que contar com a sorte pra achar outro refúgio e adicionar outro inimigo poderoso à lista. Bebeu, levantou e vomitou tudo. Deitou-se enfim para desfrutar do sono revigorante dos sobreviventes. Santiago Santos é escritor, tradutor e jornalista. Estreou em livro com a coletânea de contos Na eternidade sempre é domingo, lançada em 2016.
Desde a manhã de quinta-feira (1º/6), fãs do grupo formado em Seattle se dividem na internet entre os que gostaram e os que acharam chata a canção Run

Teses do historiador, presentes em livros como “A Consciência Conservadora no Brasil”, são fundamentais para se entender a razão de nomes como o de Nelson Jobim e o de FHC serem aventados neste momento de crise institucional

Resta em nossa educação um misto de preconceito e prepotência acerca do que é “cultura de qualidade” ou “cultura superior”. A resistência às literaturas africanas é reflexo dessa educação colonizada

Quase 15 meses depois do show que parecia uma despedida, quinteto goiano anuncia volta, músicas novas, shows e a entrada de um novo guitarrista

[caption id="attachment_96205" align="alignleft" width="156"] Marcos Fayad[/caption]
O diretor de teatro Marcos Fayad, que montou recentemente o espetáculo “Cerimônia Para Personagens Estranhos: Miniaturas Grostescas”, baseado em historietas do escritor russo Daniil Kharms, estreará na rádio Executiva FM, de Goiânia, com o programa “Indicador Cultural”. Marcos produzia e apresentava este formato de programa, com o mesmo nome, na rádio CBN. Agora, na Executiva, o formato ganhará três inserções diárias.
Em breve, o Opção Cultural divulgará os horários das pautas diárias do programa.

Acompanhado dos mais do que talentosos Curumin, Chico Salem, André Lima e Betão Aguiar, músico paulistano encerra turnê do disco Já É e revisita toda sua carreira ao vivo

Compositor, cantor e poeta paulistano volta à capital goiana às 19h30 no Flamboyant In Concert para show especial antes de começar a divulgar o CD e DVD Ao Vivo em Lisboa

Um dos mais prestigiados eventos do gênero no país tem mais de R$ 70 mil em prêmios em diversas categorias

“Nenhum leitor de poesia na Espanha duvida de que Lêdo Ivo seja um dos poetas mais importantes da poesia universal do século XX. Ficaria muito triste de saber que o Brasil não reconhece isso. Triste não por Lêdo, mas pelo Brasil mesmo”

As teses do intelectual fluminense sobre nossas liberdades civis e políticas podem nos ensinar a “ler” melhor a situação crítica pela qual passamos, sobretudo porque subsiste em nosso “DNA civilizacional” um abismo entre as elites políticas e os cidadãos