Opção cultural

Não é tão simples traduzir um soneto de treze versos! Sobretudo se escrito por alguém como H. P. Lovecraft e dedicado a ninguém menos que Edgar Allan Poe
[caption id="attachment_88381" align="aligncenter" width="620"] H. P. Lovecraft, mestre do gênero do horror[/caption]
Pedro Mohallem
Especial para o Jornal Opção
Edgar Allan Poe (1809 - 1849) é um daqueles casos curiosos na Literatura: ao mesmo tempo em que é venerado por escritores como Baudelaire (que via nele o arquétipo do poéte maudit) e Mallarmé (impressionado com seu virtuosismo técnico), é desprezado por outros como T. S. Eliot (que considerava sua escrita genial... para um pré-adolescente) e Henry James (que em dado momento afirmara que todo entusiasmo por Poe e seu trabalho é sinal de um nível primitivo de reflexão). Estudos analíticos do verso à parte, o que não se pode negar é a influência de seu trabalho sobre os escritores que se seguiriam, sobretudo os decadentes, dos franceses aos brasileiros. E é incrível como, na cultura pop, Poe é quase uma deidade: mesmo quem detesta poesia deixa um "NEVERMORE" bem grande gravado no plano de fundo do computador ou na capa do facebook. Dessa admiração e respeito pelo homem cujos versos amargos foram justificados pela vida ainda mais amarga, nasceram diversas homenagens -- a mais famosa, talvez, Le tombeau d'Edgar Poe, de Mallarmé:
Tel qu'en Lui-même enfin l'éternité le change,
Le Poète suscite avec un glaive nu
Son siècle épouvanté de n'avoir pas connu
Que la mort triomphait dans cette voix étrange !
Eux, comme un vil sursaut d'hydre oyant jadis l'ange
Donner un sens plus pur aux mots de la tribu,
Proclamèrent très haut le sortilège bu
Dans le flot sans honneur de quelque noir mélange.
Du sol et de la nue hostiles, ô grief!
Si notre idée avec ne sculpte un bas-relief
Dont la tombe de Poe éblouissante s'orne
Calme bloc ici-bas chu d'un désastre obscur
Que ce granit du moins montre à jamais sa borne
Aux noirs vols du Blasphème épars dans le futur.
na qual lemos, em tradução de Augusto de Campos:
Tal que a Si-mesmo enfim a Eternidade o guia,
O Poeta suscita com o gládio erguido
Seu século espantado por não ter sabido
Que nessa estranha voz a morte se insurgia!
Vil sobressalto de hidra ante o anjo que urgia
Um sentido mais puro às palavras da tribo,
Proclamaram bem alto o sortilégio atribu-
Ído à onda sem honra de uma negra orgia.
Do solo e céu hostis, ó dor! Se o que descrevo -
A idéia sob - não esculpir baixo-relevo
Que ao túmulo de Poe luminescente indique,
Calmo bloco caído de um desastre obscuro,
Que este granito ao menos seja eterno dique
Aos vôos da Blasfêmia esparsos no futuro.
[caption id="attachment_88382" align="alignleft" width="300"]
Edgar Allan Poe, autor do célebre poema "O Corvo"[/caption]
Outra menos famosa, porém não menos interessante é a que me propus traduzir, de autoria de Howard Phillips Lovecraft (1890 - 1937). A maior dificuldade encontrada nesse curioso soneto de 13 versos não foi nem a manutenção das rimas em -ore na primeira estrofe, possivelmente uma referência ao já mencionado "Nevermore" do The Raven (que traduzi em -ais/az/ás, visto que é de nosso feitio recriar a célebre fala do corvo como "Nunca Mais"), nem o fato de Lovecraft espremer um monte de significado em tão poucas sílabas, o que me obrigou a verter os pentâmetros em alexandrinos. O problema, mesmo, foi manter o bendito acróstico. Basicamente, esse acróstico é a razão de o poema ser o que é, isto é, um soneto de 13 versos. Seria no mínimo incoerente traduzir um soneto de 13 versos desprezando a principal razão de ele assim o ser. Claro, isso implicou alterações na construção de alguns versos (às vezes dava tão certo, mas a letra não batia...), e embora não haja prejuízo de sentido, cada distanciamento formal, sintático e vocabular se amenizaria sem o acróstico. Todavia, novamente, nada compensaria a perda do nome que, como um espectro, caminha sobre o poema, invisível ao olhar comum, revelado somente aos que conhecem os segredos do Verso...
Combatido o bom combate, posta minha versão na gaveta, tive contato com a tradução de Renato Suttana, que também verteu em dodecassílabos, mantendo a rima e sobretudo o acróstico. Um trabalho admirável, presente em sua antologia poética traduzida de H. P. Lovecraft, que o leitor encontrará à venda em e-book na Amazon.
Sem mais delongas...
***
IN A SEQUESTER'D PROVIDENCE CHURCHYARD WHERE ONCE POE WALK'D
Eternal brood the shadows on this ground,
Dreaming of centuries that have gone before;
Great elms rise solemnly by slab and mound,
Arch’d high above a hidden world of yore.
Round all the scene a light of memory plays,
And dead leaves whisper of departed days,
Longing for sights and sounds that are no more.
Lonely and sad, a spectre glides along
Aisles where of old his living footsteps fell;
No common glance discerns him, tho’ his song
Peals down thro’ time with a mysterious spell:
Only the few who sorcery’s secret know
Espy amidst these tombs the shade of Poe.
EM UM ERMO CEMITÉRIO DE PROVIDENCE POR ONDE POE ANDARA
Eterno é o cismar das sombras no terreiro,
Devaneando o outrora em séculos atrás;
Grave olmedal se eleva entre lousa e outeiro,
Arqueado sobre um mundo oculto que ora jaz.
Rodeando a cena, atua o lume da memória,
As folhas secas, num cicio, contam a história
Levadas por visões e sons de nunca mais.
Lastimoso e só, um espectro adeja sobre
Alas onde seus pés, vivos, deitaram pouso;
Não se avulta ante o olhar comum, embora dobre
P'lo tempo sua canção com um verso misterioso:
Os poucos a quem tal feitiço se mostrou
Entre estas tumbas veem a sombra de Edgar Poe.
(Publicado originalmente no blog Esta Pouca Cinza Fria )
Pedro Mohallem é graduando em Letras Português-Inglês pela Universidade de São Paulo (USP)

“O velho Lêdo Ivo, como certo personagem de Bergman, há muito jogava calmamente seu xadrez com a morte. O cenário, porém, não era em preto e branco, e o nórdico mar de fundo de O sétimo selo era o mar gaio de Alagoas”
[caption id="attachment_88360" align="aligncenter" width="620"] Lêdo Ivo contemplativo | Imagem da contracapa do livro "Aurora"[/caption]
Wladimir Saldanha
Especial para o Jornal Opção
Em Aurora (Rio de Janeiro: Contracapa Editora, 2016. 125 páginas), o leitor encontrará um Lêdo Ivo aparentemente límpido, muitas vezes de marcado prosaísmo; mas a facilidade esconde cerrada dimensão intratextual: “Levantou-se da terra uma roxa alvorada/ num claro desafio ao sol esbraseado/ e à nuvem emudecida que no céu passava”. Simples, à primeira vista; para certos paladares exigentes, talvez uma poesia demasiado entregue e discursiva, desde o grito epifânico do poema-título, Aurora, até uma cantante Serenata final. Mas, que amanhecer é esse, não de madrugada e, sim, sob o sol esbraseado? Lá está o adjetivo, meio imperceptível no seu contrassenso. Vejamos todo o poema – O Desafio que seu título nos propõe:
O DESAFIO
Foi em algum lugar, foi onde a relva cresce
e o mundo se dispersa e uma fogueira arde.
Foi onde o sol clareia estações desterradas
e um seio nu afronta a vontade da treva.
Onde a sombra ensombrece os dias sepultados
e no verão persiste um cheiro de jasmim
e uma abelha dourada pousa na corola
da majestosa flor que reina no jardim.
Foi onde fervilhava o rumor das charnecas
e as águas de um riacho fulgiam nas pedras
e a manhã respirava a promessa da vida.
Levantou-se da terra uma roxa alvorada
num claro desafio ao sol esbraseado
e à nuvem emudecida que no céu passava.
Roxa é a alvorada que afronta (desafia) o sol esbraseado: o poeta discretamente parece brincar com a epígrafe geral de Góngora, que fala do “paso rojo de la blanca aurora”, mas o falso cognato do espanhol, na aurora de Lêdo Ivo, é mesmo tirante a violeta, não o rubro do verso barroco. Referimo-nos a tais jogos entre o espanhol e o português na primeira parte deste estudo (link abaixo à esquerda); em outro soneto do livro, fica ainda mais evidente a apropriação: “Silenciosa e roxa e branca aurora” é o primeiro verso e, nos tercetos, sabemo-la um “derramamento de ouro e sol purpúreo,// golfo rubro no azul despetalado,/ amarelo e lilás no céu ferido,// filha da sombra, súbito murmúrio/ no silêncio do mundo despertado,/ pão de luz entre os homens repartido” (Novo Soneto da Aurora).
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Esse amanhecer de exéquias nos evoca dois livros anteriores do autor, marcados pela reflexão sobre a morte. Um é Mormaço – o último publicado em vida do poeta, no qual a proximidade da morte é associada à atmosfera acachapante, ensolarada mas sem aragem; o outro é Réquiem, o livro-poema publicado em 2008, em que Lêdo Ivo pranteia a perda da amada. Neste último, a ambiência é a localidade de Barra de São Miguel, em Alagoas, com a memória dos antropófagos caetés, dos quais descendia o poeta (o que lhe servira, durante a vida, para inúmeros motes contra os “antropófagos de papel” de 1922).
Em Réquiem se constrói a identificação entre morte e fogo, a que parece remeter o segundo verso de O desafio, passando pelo calor causticante de Mormaço: “Na noite crematória, a morte é uma fogueira”. O mar de Réquiem, mar da barra de São Miguel, exsurge como um elemento de dissolução que “apaga todos os naufrágios/ e todo fogo se extingue, todo fogo dourado/ se alastra e se extingue no silêncio do mundo”.
[caption id="attachment_88363" align="alignleft" width="150"]
Capa do livro "Mormaço"[/caption]
Isso justifica que o poeta se coloque em atitude de “espera” ante a “mesa do silêncio”, na primeira estância do livro-poema. A passagem da expectação para o convívio, podemos dizer que seria feita em Mormaço, onde, pela primeira vez na obra lediana, o signo silêncio é reiterativo. Se o “eu” lírico, retrospectivamente, confessará no Réquiem até então ter amado “o longo murmúrio nas estações ferroviárias”, em Mormaço, no poema A praça muda, vemos essa perplexidade ante o silêncio: “Ao sair do metrô/ Estação Cinelândia/ espantou-me o silêncio// que havia na cidade./ Ninguém ria ou falava./ Todos os transeuntes/ eram mudos fantasmas/ cuspidos pelo sol. [...]”. Em outro momento, a consciência poética com que arrematava sua obra é ainda mais notável:
A FALA FINAL
Já falei ao dia, hoje falo à noite.
Falei ao dia e ninguém me escutou.
Os homens passavam apressados
cada um com o seu tédio
seus embrulhos e suspiros.
Falei ao amor e era uma concha
que ressoava longe do mar.
Os anos de minha vida passaram tão rápidos
que nem sequer coube neles um vôo de pássaro.
Agora só falo à noite e às estrelas.
Só falo ao silêncio e à escuridão.
A mudança de atitude do sujeito lírico é marcada com uma grande visada na produção anterior: Lêdo Ivo, cuja poesia celebratória da vida desagradou inicialmente a alguns críticos de 1945 (não nos esqueçamos: essa é a geração do pós-guerra), agora assume o tom de pesar que lhe exigiam na juventude. Em outros poemas de Mormaço, o silêncio aparece ou é até o tema principal, alçado a título, como é o caso de O silêncio do mundo, ou de O silêncio esperado – este, claramente remissivo aos versos iniciais de Réquiem: “Aqui estou, à espera do silêncio”.
Contudo, um dos conceitos fundamentais para entender a produção lediana é a palinódia. Nosso poeta não se compraz em construir um sentido único, mas em desdizer-se e assumir múltiplas perspectivas, todas elas unificadas sob o seu mesmo nome de autor, já que abandonara a meio caminho o que seria um esboço heteronímico – Teseu do Carmo – e repudiava, talvez com certa má-vontade, a celebrada legião de heterônimos pessoanos. A Lêdo Ivo não causava nenhum incômodo a palinódia pura, o poema que retifica ou contesta outro poema – e há exemplos não só livro a livro, mas às vezes numa mesma obra. Isso, evidentemente, cria uma dificuldade a mais para sua compreensão, torna-o particularmente difícil de ser antologiado e alvo fácil daquele tipo de leitura subjetiva que vai dar na superinterpretação apontada por Umberto Eco, ou seja: é relativamente simples achar o Lêdo Ivo que nos fala mais de perto, o Lêdo Ivo de nossas próprias crenças. Difícil será aceitá-lo em sua contradição fundadora... Quanto a Aurora, eis um dos momentos que parecem rever a perspectiva anterior, de Mormaço:
O ESTALIDO
São passos furtivos na escada.
Talvez seja apenas um eco da memória, uma sombra
que se esgueira no ar como uma nuvem ou um pássaro
ou a palavra desejada que atravessa o dia lunar
como um sopro da brisa marinha.
Sempre esperei o visitante que não veio.
Deixei inutilmente a porta aberta.
Perguntei e não obtive resposta.
Agora, para mim, tudo é irrelevante.
Para que perguntar? Para que responder?
Após o estalido do fim da escada virá o silêncio
que dispensa a pergunta e a resposta.
O “silêncio” agora é diferido: o poeta está por um átimo novamente em meio a rumores, estalidos que parecem significar. Indaga-se em outra peça: “Sou um mudo entre os que falam, ou alguém que fala entre os mudos?” (poema Escutar). Já o silêncio que aguarda não é o do luto anunciado em Réquiem e maximizado em Mormaço. É silêncio de outra ordem, silêncio de quem já tateia o indizível.
[caption id="attachment_88362" align="alignleft" width="150"]
Capa do livro "Aurora"[/caption]
“Deixei inutilmente a porta aberta” – diz um dos versos do poema transcrito. Dediquemos algum espaço a essa percepção, pois outro signo de Mormaço revisto em Aurora é bem esse – o da “porta”. Há muitos exemplos, em toda a poesia do autor, de como tal substantivo se ergue à categoria de símbolo agenciador de sugestões, pedra angular de sua dicção. Não podemos, aqui, historiar todo o percurso. Fiquemos com algumas aparições de Mormaço: ali há uma “porta sem chave” que não é jamais aberta (O segredo irrevelado); uma porta que não existe ou não se sabe onde exista – é antes uma “chave sem porta/ que fulgura sozinha” (A saída); uma sombra inextinguível “junto à porta entreaberta” (A última lição); e, em certo poema de amor em meio à maioria lutulenta, diz o poeta que o “dia se abre/ como uma porta/ para que passes” (Além da noite escura).
Essa última perspectiva parece ganhar força em Aurora. Ao postar-se Atrás da porta cerrada, e aparentemente negar uma continuidade da existência depois da morte – “Não há nada atrás da porta./ Nenhum céu para que vivas/ entre os anjos radiosos” –, estaria Lêdo Ivo jogando com o nosso vocábulo português, cerrada, no sentido de porta encostada ou fechada sem tranca (cf. Dicionário Priberam), e o espanhol cerrada, correlato quase transparente de fechada?
Diante do andamento da obra, temos a nossa confirmação nesse pequeno e belo poema:
OS DOIS LADOS
No outro lado da noite alguém gritava.
No outro lado do muro eles se amavam
e espalhavam murmúrios e gemidos.
Todas as portas estavam fechadas.
A vida era um segredo, era um suspiro.
E o amor lavrava doido e revirado.
Amar de um lado só já não bastava?
Era cara e coroa, era em dois lados,
moeda que a si mesma se pagava.
Aqui se reencontram os amantes apartados em Réquiem. A porta fechada – ou apenas cerrada – agora nada interdita: protege. Já não poderia o poeta confirmar as amargas palavras de Réquiem: “O que perdi, perdi para sempre”. Aurora é mais um lance – e no particular da lírica amorosa, o último – de um longo jogo entre crença e ceticismo, que por vezes faz a obra de Lêdo Ivo identificar-se com uma postura deísta, de um Deus ausente da criação, e em outras se reaproxima do sentido cristão de seus primeiros livros, quando dizia, na Ode ao crepúsculo, em 1946: “Ó meu Deus,...// Dai-me o que não tenho, o que não posso ter/ pois em meu combate com o anjo não busco senão o inefável”.
Em busca do “inefável”, palavra cara ao vocabulário simbolista que some da obra lediana desde Cântico (1949), o poeta continuará sua perquirição, e a fronteira da vida lhe será sempre um dos temas mais caros. O velho Lêdo Ivo, como certo personagem de Bergman, há muito jogava calmamente seu xadrez com a morte. O cenário, porém, não era em preto e branco, e o nórdico mar de fundo de O sétimo selo era o mar gaio de Alagoas. Ou os manguezais que o poeta converte em símbolo da mistura de elementos, água e terra no conúbio que uma lógica binária parece repelir, como nesse outro momento de Aurora:
(...)
Venho dos pântanos.
No céu claro de Rotterdam que se recusa a aceitar a imposição do escuro
a prolongada noite de verão cobra de mim promessas não cumpridas.
Na mesa do silêncio eu deposito minha desculpa e justificação.
Só mereço perdão e tolerância.
Venho dos pântanos e dos miasmas que fervilham na água negra das lagunas
e só trouxe comigo uma pátria perdida e a lembrança de um púbis bem-amado.
(...)
O púbis, como o seio que se entrevê no poema O desafio, citado inicialmente, são metonímias do “corpo bem-amado” de Réquiem: “Fui sempre amor no leito memorável/ e agora a minha mão errante só encontra a treva/ no lugar em que estava o corpo bem-amado.” E a terra natal alagoana, cenário do livro-poema – “pátria perdida”; “água negra das lagunas” – impõe-se a Rotterdam, na malha poética de Aurora.
[caption id="attachment_88364" align="alignleft" width="150"]
Capa do livro "Réquiem"[/caption]
O poema longo e inteiriço que é Réquiem revive a inflexão das primeiras odes de Lêdo Ivo, o largo fôlego das enumerações, ali submetidas a um timbre ocluso, consentâneo com o tema que o inspira. É um dos grandes pontos de chegada, porque o amor recíproco, ansiado nas obras iniciais e celebrado a partir de Cântico, em quase sessenta anos de poesia (de 1949, fim da escritura de Cântico, até 2008, quando se publica Réquiem), foi muito mais que o “trocadilho” ressaltado pelo amigo Manuel Bandeira, ou o amor dos “acentos circunflexos”, como no vers de circonstance de Ribeiro Couto (cf. E agora adeus – correspondência passiva). Com a companheira Maria Lêda Sarmento de Medeiros, Lêdo Ivo compôs o “mundo gêmeo num só astro” de um dos seus sonetos, e pausou − para celebrar o amor vivido e correspondido − a lira de “espasmo e espanto” de suas primeiras obras, em que se debatia na busca de uma ansiada reciprocidade, àquela hora encontrando nas marés (cf. Ode e elegia, Ode à noite) o correlato imagístico de seu ir e vir.
[caption id="attachment_88361" align="alignleft" width="150"]
Lêdo e seu filho, Gonçalo Ivo[/caption]
Por tudo isso – não apenas pela datação editorial, mas pela dobra que significa na obra anterior –, a Aurora que o leitor de Lêdo Ivo tem agora diante de si é póstuma. Morre nela o sol esbraseado de Mormaço, de par com o silêncio que Réquiem anunciava: “Agora o silêncio do mundo lacra minha alma./ O róseo raio da rósea alvorada/ aponta para a noite escura”. Retirado esse lacre, o poeta aceita a aurora violácea (curiosamente crepuscular, na identidade dos signos de sua eleição). E o livro Aurora, assim como Réquiem, faz-se acompanhar de pinturas do filho do casal, o artista plástico Gonçalo Ivo, compondo, também visualmente, um cenário dialogal entre as obras. Vê-se um Lêdo Ivo flagrado em contemplação perplexa na contracapa; sem dúvida este, que tem –
OS OLHOS ABERTOS
Nas minhas mãos abertas cabe a aurora
como um fruto que amadurece na limpidez do verão.
Nos meus olhos abertos os teus seios fugitivos
se acercam e se afastam como proas de navios.
Os meus lábios fechados aboliram a morte
para que pudesses voltar quando o dia renasce
e a seiva da vida circula nas árvores e nas veias dos homens
e escorre das estrelas
e sustenta as luzes do arco-íris.
As fontes calam para que nenhum barulho perturbe o teu regresso
a tua passagem entre o nevoeiro e o sol ardente
a tua sombra que dança entre as marés
a tua voz usurpada pela noite
e o teu corpo que a escuridão não ousa esconder
de meus olhos abertos para sempre.
Entre seiva e árvore, lábio e arco-íris, o leitor desambientado dessa obra talvez se agrade mais dos seios que são proas ou da sombra entre marés, sombra “usurpada pela noite”. Veio até aqui, esse leitor presumível, acedendo ao convite de uma resenha, recolhendo para si as beautés éparses de Aurora – no caso do poema citado, sobretudo o final tão límpido quanto perturbador dos “olhos abertos para sempre” – mas, só ao cabo do volume de trinta e uma peças, terá sua paga do poeta ancião em alguns raios luminosos, poemas inteiros, ou boa monta de cintilações em versos e estrofes.
Já outro, um segundo leitor, buscará ouvir as reverberações da obra pregressa, e poderá ir mais longe. É para ele que pensamos falar, ou antes: para que o primeiro, não iniciado talvez pelos motivos que elencamos no ensaio precedente – todas as barreiras críticas erguidas ao conhecimento de Lêdo Ivo – seja convidado não apenas a ler Aurora, mas a reler alguns signos nesse livro epilogal, signos que compõem uma espécie de vocabulário poético do autor e ressurgem como em diálogo do “eu” lírico de Aurora com “eus” anteriores.
Wladimir Saldanha é poeta e tradutor. Doutor em Letras pela UFBA, com tese sobre a poesia de Lêdo Ivo.

Não é fácil cantar em português, então é preciso valorizar o esforço dos estrangeiros A língua portuguesa não facilita a vida dos artistas. Não é fácil escrever em português e, muito menos compor (de maneira decente, eu digo) nesta língua. É claro que isso não torna as músicas brasileiras de qualidade superiores às de outras línguas, afinal é difícil compor em qualquer idioma, mas agrega valor a elas, sobretudo aos ouvidos que entendem de música. Por isso, não é simples para um estrangeiro cantar em português: há dificuldades, inclusive, físicas para falar a língua. Então, é preciso valorizar o esforço. A lista tem esse propósito. Uma observação: O que reproduzo aqui está — como todas as listas — ancorado no gosto pessoal, mas não invalida a qualidade do conteúdo apresentado. Aprecie, caro leitor.
Sant Andreu Jazz Band - Águas de Março
Sou suspeito para falar de "Águas de Março", que é uma das composições mais lindas deixadas por Tom Jobim e magistralmente interpretada por ele e Elis Regina. Aqui, a Sant Andreu Jazz Band, da Espanha, faz uma belíssima interpretação desta canção, nas vozes de Alba Armengou e Rita Payes. A escolha foi difícil porque a Sant Andreu, sob direção do maestro Joan Chamorro, tem outras fantásticas versões da MPB brasileira, como "Chega de Saudade", música de Vinicius de Moraes e do velho Tom, no portuguesa cambaleante da jovem e talentosa Andrea Motis. https://www.youtube.com/watch?v=EazJHMFvQ3s&spfreload=5Beirut - Leãozinho
Beirut é uma das bandas das quais gosto muito. O primeiro CD que comprei deles foi em Uberlândia há anos atrás, que está no carro até hoje e, vez ou outra, roda de uma ponta a outra. Por isso, a interpretação de "Leãozinho", de Caetano Veloso, não poderia falta na lista. Neste vídeo há uma fala de Zach Condon sobre seu gosto pela música brasileira e também do porquê cantar a canção de Caetano — ele chega a mostrar alguns LPs e, quando chega no disco de Chico Buarque ele diz que "Roda Viva" é uma de suas músicas "favoritas de todos os tempos". E fala também de Jorge Ben... https://www.youtube.com/watch?v=6XKfi97LcqoMiriam Makeba - Chove chuva
Aliás, quem fez uma linda interpretação de Jorge Ben Jor, em 1966, foi Miriam Makeba. Ouça a beleza da voz da sul-africana cantando "Chove chuva", música de 1963: https://www.youtube.com/watch?v=F4dT7l7sWVgBrigitte Bardot - Maria Ninguém
Brigitte Bardot, a belíssima Brigitte Bardot, também tem uma interpretação de música brasileira. Trata-se de "Maria Ninguém", canção de Carlos Lyra, a qual cantou em 1964. Brigitte merece estar aqui? Claro, afinal, se "Deus criou a mulher", criou também a Bossa Nova. https://www.youtube.com/watch?v=fhIC4JzcqIoNat King Cole - Suas mãos
O inesquecível Nat King Cole cantou "Ninguém me ama". A música do compositor pernambucano Antônio Maria foi interpretada em dupla com Silvinha Telles, mas a versão que de fato marcou foi a de "Suas mãos", também de Antônio Maria em parceria com João Pernambuco. https://www.youtube.com/watch?v=bWVX3_sFpAADizzy Gillespie - "Desafinado"
Outra interpretação digna de eterno replay é vem do trompetista estadunidense Dizzy Gillespie. Em uma de suas marcantes apresentações, ele tocou esta música de Tom Jobim, empolgando a plateia da época e a quem escuta atualmente, décadas depois da gravação. Dizzy era um mestre do trompete e do jazz e sua versão de "Desafinado" deve ficar eternizada. https://www.youtube.com/watch?v=nf0_s-Ijl3AArcade Fire - O morro não tem vez
No Lollapalooza Brasil 2014, a canadense Arcade Fire resolveu mostrar para seu público uma versão muito interessante de "O morro não tem vez", da grande Elis Regina. O trecho é curto, apenas a primeira estrofe da canção de Elis, mas vale a pena ouvir. Na voz de Régine Chassagne, a banda fez um belo mash up de Elis com "It's Never Over", da própria Arcade Fire. https://www.youtube.com/watch?v=oNlEGyR9X2QEsperanza Spalding - Ponto de Areia
Essa é dica do leitor Emerson Fagundes, que é músico e compartilhou com a gente essa lindeza da contrabaixista estadunidense Esperanza Spalding. Uma bela interpretação de "Ponto de Areia", música do mestre Milton Nascimento. É para fechar com chave de ouro! https://www.youtube.com/watch?v=V7snPl8L6Zg
O carnaval da virada do século XIX para o XX tinha que cumprir rigorosamente os requisitos exigidos pela chefia de polícia, que publicava um edital impondo regras à folia
[caption id="attachment_88311" align="aligncenter" width="620"] Cena de carnaval pintada por Jean-Baptiste Debret[/caption]
Carlos César Higa
Especial para o Jornal Opção
O acervo do jornal O Estado de São Paulo é uma daquelas coisas que fazem qualquer pesquisador encher os olhos de lágrimas de emoção e não de poeira - até porque as páginas do jornal estão digitalizadas. Tem notícias de 1875 até os dias de hoje. É possível ver como era o carnaval no tempo em que era comum ter escravo no Brasil. O Estadão é tão antigo que, quando foi lançado, São Paulo nem estado era, mas sim província. Por isso, de 1875 até 1889, o jornal se chamava A Província de São Paulo. O nome só foi trocado para o atual logo após a Proclamação da República.
Se hoje o carnaval é vale tudo, como dizia Tim Maia, nem sempre foi assim. O carnaval da virada do século XIX para o XX tinha que cumprir rigorosamente os requisitos exigidos pela chefia de polícia, que publicava um edital no jornal com as regras da folia. Não se podia vestir com trajes indecentes e nem alegorias ofensivas à religião. O Estadão de 17 de fevereiro de 1901 trazia a chamada do diretor da chefia de polícia de São Paulo, João Cândido de Carvalho, atentando para os foliões não descuidarem das fantasias. Caso contrário, ia para a delegacia.
O carnaval que tivesse o diretor João Cândido em serviço poderia ter a certeza de que a lei e a ordem valeriam nos três dias de folia. Além do cuidado com as fantasias dos foliões, até mesmo brinquedos seriam fiscalizados pelo nobre diretor. Língua de sogra, bisnagas e carrapichos eram proibidos. Inocentes brinquedos que hoje usamos para comemorar o carnaval já foram casos de polícia.
Em uma crônica sobre carnaval de 1915, o Estadão trazia o relato de um japonês que esteve em nosso país durante o carnaval. No Brasil, em certa época do ano, a população é acometida subitamente de loucura. Durante três dias ficam inteiramente mentecaptos. No quarto dia, pela manhã, vão ao templo onde o sacerdote lhe faz com cinza uma cruz na testa e eles recuperam a razão. Ao contrário do que diziam os pensadores iluministas, uma cruz na testa podia sim recuperar a razão de uma pessoa.
Quem é religioso pode pular o carnaval? Na década de 1940, o Estadão tinha uma coluna chamada Movimento Religioso, na qual se reservava um espaço para que cada religião se manifestasse. A edição de 11 de fevereiro de 1945 do jornal, na parte católica do movimento, dizia que sim, o religioso poderia pular o carnaval e recordou São Paulo Apóstolo na carta aos Romanos: Sede alegre com os que estão alegres. Só que essa alegria durava pouco já que após os festejos do carnaval, o católico se resguardaria para a quaresma.
Em passeio pelo acervo do Estadão percebe-se as mudanças que o carnaval brasileiro passou ao longo dos tempos. Vemos também que muita coisa continua como a alegria de se aproveitar este tão querido feriado. Que a memória do diretor João Cândido de Carvalho garanta a segurança de quem comemora nas ruas e a paz de quem quer descansar nos três dias de folia.
Carlos César Higa é mestre em história pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e professor nas redes particular e pública de ensino na cidade de Goiânia.

William Shakespeare (1564-1516), além de ter sido um dos maiores dramaturgos de todos os tempos, foi também um poeta lírico estupendo. Os seus sonetos, em especial, são até hoje paradigmas de excelência poética

Svetlana Aleksiévitch trouxe à luz as dores e as intimidades das mulheres soviéticas que estiveram nos campos de batalha da Segunda Guerra Mundial

Mais que uma “resposta” ao “1984”, de Orwell, o livro de Burgess parte de observações pessoais, concretas, da vida política e social da Europa dos anos 1970, para mostrar a incapacidade do Ocidente de preservar a sua própria civilização

Eis mais uma Playlist Opção: temos desde a nova do Linkin Park até Massive Attack e Tricky, passando por Stone Temple Pilots, Beatles e muito mais. Confira! https://www.youtube.com/watch?v=lp00DMy3aVw https://www.youtube.com/watch?v=mdrAdcxFB9c https://www.youtube.com/watch?v=LlDC361onUs https://www.youtube.com/watch?v=Lr5ltqQf1QA https://www.youtube.com/watch?v=o0qyP1bA-ME https://www.youtube.com/watch?v=QMhkdatUUPA https://www.youtube.com/watch?v=ElvLZMsYXlo https://www.youtube.com/watch?v=usNsCeOV4GM https://www.youtube.com/watch?v=oAmnkPUFMHg https://www.youtube.com/watch?v=hNByRhoycdc https://www.youtube.com/watch?v=D5drYkLiLI8

[caption id="attachment_87979" align="aligncenter" width="620"] "A cidade onde envelheço" é o primeiro da programação | Foto: Divulgação[/caption]
A programação de carnaval dos goianienses está repleta de opções, sobretudo para quem prefere ver um bom filme ao invés de ouvir (ou pular, seja lá como se diz) as marchinhas.
Além da Mostra "o Amor, a Morte e as Paixões", que acontece no Lumière do Shopping Bouganville e que exibe uma centena de filmes (veja aqui), há também o Cine Cultura.
Veja a programação de carnaval do Cine Cultura:
"A cidade onde envelheço" - 15h (25 a 28 de fevereiro) e 16h (23 e 24 de fevereiro e 1º de março);
"Sangue do meu sangue" - 17h (25 a 28 de fevereiro) e 18h (23 e 24 de fevereiro e 1º de março);
"Belos sonhos" - 19h (25 a 28 de fevereiro) e 20h (23 e 24 de fevereiro e 1º de março).
1) A cidade onde envelheço (2017, Brasil, 99 minutos, 12 anos)
Direção: Marília Rocha
Elenco: Elizabete Francisca Santos, Francisca Manuel, Paulo Nazareth
Sinopse: Francisca, uma jovem emigrante portuguesa morando no Brasil, recebe em sua casa Teresa, uma antiga conhecida com quem já havia perdido contato. Teresa acaba de chegar e vive momentos de descoberta e encantamento com o novo país, enquanto Francisca anseia por Lisboa. O filme acompanha as aventuras de cada uma pela cidade e a profunda ligação que nasce entre elas, obrigando-as a lidar com desejos simultâneos e opostos: a vontade de partir para um país desconhecido e a saudade irremediável de casa.
2) Sangue do meu sangue (2016, Itália, 107 minutos, 16 anos)
Direção: Marco Bellocchio
Elenco: Roberto Herlitzka, Piergiorgio Bellocchio Jr., Alba Rohrwacher
Sinopse: No século XVII, Federico Mai chega a um monastério com uma missão: seu irmão cometeu suicídio e não pode ser enterrado em terreno sagrado, a não ser que sua amante, a irmã Benedetta, confesse seus pecados, salvando assim a alma do morto. Benedetta é submetida a provações e questionada pela hierarquia apostólica – enquanto Federico assiste. Nos dias de hoje, um homem russo deseja comprar o monastério onde Benedetta foi torturada. Ele encontra habitando o local um velho conde e uma mulher cujo marido desapareceu.
3) Belos Sonhos (2016, Itália, 134 minutos, 14 anos)
Direção: Marco Bellocchio
Elenco: Barbara Ronchi, Bérénice Bejo, Guido Caprino
Sinopse: Massimo tem sua infância abalada pela misteriosa morte de sua mãe, a qual ele se recusa a aceitar. Anos mais tarde, após ter coberto como jornalista a guerra em Sarajevo, começa a ter ataques de pânico e é obrigado a reviver seu passado traumático enquanto se prepara para vender o apartamento dos pais. O longa é inspirado no romance homônimo de Massimo Gramellini.
O Cine Cultura fica no Centro Cultural Marieta Telles Machado, na Praça Cívica e o ingressos podem ser comprados no local (somente dinheiro): R$ 8 a inteira e R$ 4 a meia.

[caption id="attachment_87976" align="aligncenter" width="620"] Orquestra Filarmônica de Goiás começa 2017 com novidades | Foto: Rafaella Pessoa[/caption]
A Orquestra Filarmônica de Goiás tem firmado cada vez suas apresentações na agenda dos goianienses. Em muitos concertos, quem não chega cedo, não encontra lugar, o que é excelente para a cultura, pois mostra que a música erudita tem lugar em um mundo cheio de outras atrações.
A Filarmônica de Goiás tem feito um bom trabalho ao levar sua música de qualidade à cidade, apresentando-se, por exemplo, em parques e com um repertório variado. É isso o que tem atraído cada vez mais o público e demarcado o espaço da orquestra, sobretudo em Goiânia, mas também no interior.
Assim, para se programar. A temporada começa no dia próximo dia 16, às 20h30, no Teatro Goiânia, sob a regência de Neil Thomson, que é regente titular e diretor artístico da instituição. A entrada, como sempre, é gratuita.
Neste concerto, serão apresentadas as seguintes peças: "Variations on America", do compositor americano Charles Ives; "O duende das águas", de Dvorák; "O Mandarim Maravilhoso", do húngaro Bartók e ainda "Water", do compositor e instrumentista inglês Jonny Greenwood, considerado um dos maiores guitarristas da era moderna.
A temporada deste ano tem um tema: “Música que transforma”. A ideia da Filarmônica é proporcionar ao público momentos de leveza em um mundo turbulento, repleto de incertezas e de conflitos sociais e políticos.
Além disso, neste ano, a orquestra continua com a missão de contribuir com a ampliação da música orquestral ao divulgar obras inéditas de autoria de compositores brasileiros. Tanto que a Filarmônica executará, pela primeira vez: “Música para orquestra nº 6”, do compositor goiano Estércio Marques Cunha; “Noturno”, do jovem compositor Luiz Gonçalves, vencedor da 2ª edição do Opus I, concurso promovido pela Filarmônica; e ainda a estreia de “Concerto para Sixeen e Orquestra”, da compositora Michelle Agnes.
Obras nacionais de compositores já consagrados também terão seu espaço, caso de Nepomuceno, Francisco Braga, José Maria Nunes Garcia, Villa-Lobos e Guerra-Peixe. As composições deste último, inclusive, integram o 2º álbum da Filarmônica, que será lançado em julho.
Contudo, os repertórios também contemplarão obras dos maiores compositores de música orquestral. Entre os destaques estão “A Sagração da Primavera” e “ O Pássaro de Fogo” de Stravinsky; a execução integral das suítes orquestrais de Bach; “Como una ola de fuerza e luz”, de Luigi Nono; o famoso “ Bolero” de Maurice Ravel; entre outros.
Séries
De Março à Dezembro, a temporada segue com a apresentação das séries Quinta Clássica, Concertos Especiais, Concertos para a Juventude, Concertos de Câmara, além das atividades complementares como as apresentações em parques, turnês nacional e estadual, concertos didáticos e ações profissionalizantes que visam valorizar e formar jovens músicos.
A grande novidade desta temporada é a estreia da série de apresentações “Concertos Impopulares”, que apresentará repertórios contemporâneos inovadores. Para a execução desta série, a Orquestra contará com a presença da versátil soprano polonesa Alice Zavadzki, que vem ganhando reconhecimento internacional por mesclar elementos da música clássica com o jazz e o folk.
Ao todo a Filarmônica realizará 40 concertos ao longo de 2017 e receberá 20 artistas renomados internacionalmente para participar dos concertos como solistas e regentes. Por meio de um sólido e bem definido calendário de apresentações, a Orquestra reafirma seu compromisso com a cultura goiana, proporcionando lazer, educação e cultura, por meio da música, de forma democrática.

“O homem derivado de suas águas está só e sozinho ele fala a esmo. Talvez fale movido apenas pelo prazer da errância e, por isso mesmo, ele fala como quem está literalmente à deriva"
[caption id="attachment_87924" align="aligncenter" width="620"] Escritor goiano Wesley Godoi Peres | Foto: reprodução Facebook[/caption]
Tiago Ribeiro Nunes
Especial para o Jornal Opção
Em Água Anônima (Goiânia: AGEPEL, 2002), livro de estreia de Wesley Peres, são traçados, em azul, os primeiros contornos da obsessão literária por “fixar as vertigens nas palavras”, com afirma o poeta Manoel de Barros, na quarta-capa do livro. Ao leitor dos poemas ali reunidos, não passará despercebida a assiduidade do termo. Serão dez, ao todo, as ocorrências desse significante ou de variações suas.
Ao longo das três partes que formam o livro (Água, Lábios e Lábios de Água), sua distribuição é todavia desigual: duas na primeira parte, cinco na segunda e três na terceira. Mais equilibrado é certamente o efeito expressivo das imagens que veiculam o azul. Transportado para uma frase ou para um conjunto de frases, ele coloca em contato elementos dessemelhantes ou mesmo contrários entre si. Dessa reunião inesperada resultam estranhamentos. Suprimido o princípio lógico da não contradição, as paisagens cotidianas resvalam subitamente naquilo que nunca se viu. Assim, por exemplo, o mar se volatiza em azul e a impressão desse cheiro sentido em cor se reverbera polifônica, renovando um olhar já demasiadamente habituado à repetição de todos os dias: “Há um azul cheiro de mar agora/ há um cortante e horizontal chilrar/ sobre o meu olho prenhe de manhãs”.
[caption id="attachment_87927" align="alignleft" width="300"]
"Água Anônima", livro de estreia de Wesley Peres[/caption]
Já em O infinito e seus arredores, a proliferação de imagens fluidas continua até desaguar na pergunta contida na pergunta: “quantas horas faz em você/ quando o violino de som amarelo/ flutua a concha de formas de uma mulher/ que me pergunta: Deus é azul?” (p. 95). Na imagem sonhada, o poeta viola, a um só tempo, a sintaxe comum e o mandamento religioso - infração sacrílega dos absolutos. Mais adiante, dois outros poemas e duas outras imagens escritas em azul: o curvilíneo “e azul cheiro de sal vermelho” (p. 103) da amada assim como os “peixes embolhados [que] rasgam o azul e vestem uma cordilheira de pássaros” (p. 137). Revela-se, em ambos os casos, um exercício consciente de transgressão imposto à política da percepção balizada pelos códigos cotidianos.
Com recursos emprestados principalmente da poética de Manoel de Barros, a Peres interessa fazer ressoar “o som azul da maçã” (p. 157) e apontar sutilmente o “azul da distância” (p. 161). Importa esgarçar o tecido do discurso comum a fim de “recuperar o caráter fluido e provisório da língua”, como apregoa Georges Steiner, no texto “O poeta e o silêncio”, contido em Linguagem e silêncio: ensaios sobre a crise da palavra (São Paulo: Companhia das Letras, 1988. Trad. Gilda Stuart e Felipe Rajabally, p. 46). Interesse mudado em poema, temos Arqueologia da linguagem: “Vazio/ com suas formas azuis/ de sonho decaído/ o rumo incerto da carne dos deuses/ em decomposição/ assim nasce do homem/ o centro de sua invenção/ assim nasce sua morte/ a sua infinitude/ pousada entre o vôo da matéria explodida/ e o ventre esférico dos desejos perdidos./ O homem está no contrário de seu contrário pensado” (Água anônima, op. cit., p. 35).
O poeta revolve a linguagem, exuma suas origens. Revisitada em sua aurora, a palavra revela sua força disseminadora, geradora de princípios e de transcendências. No todo da imagem que surge com o poema, nem mesmo o vazio primordial chega a ser obstáculo frente à potência proliferadora do verbo. Assim como enuncia o poeta, as formas azuis do nada primal são íntimas dos sonhos e das metafísicas religiosas. Infectado pelo verbo, o homem reage tecendo suas narrativas. Acossado pela mortalidade, é compreensível que na palavra ele queira sonhar o infinito. Tal como fica sugerido no remate do poema, o homem se faz unicamente pelo enxerto da coisa pensante na substância viva. Dessa conjunção resultam sua vocação para os engendramentos e um desejo não mais conformado aos protocolos instintuais mas condenado a errância. Por meio do gesto poético realizado em seu livro primeiro, Peres materializa literariamente o paradoxo da soberania segundo o qual, “o soberano está, ao mesmo tempo, dentro e fora do ordenamento”, já dizia Carl Schmitt: está dentro porque, tal como os outros, também o poeta encontra-se submetido ao regime geral da linguagem; encontra-se fora porque sua arte permite transgredir legitimamente as leis da palavra.
Muito embora o comparecimento do significante-mestre azul e de suas variações não obedeça a princípios estritamente uniformes em todo Água Anônima, vale ressaltar sua importância no contexto geral dessa obra cujo intuito primeiro parece ser operar sobre a linguagem a fim de restituir à palavra seu “poder de encantação”. Objetivo certamente fundado na tese segundo a qual, pelo trabalho do poeta, a linguagem poderia ser levada, como diz Octavio Paz em O arco e a lira, a reconquistar “seus valores plásticos e sonoros”, mas também “os afetivos” e os “significativos”. É para esse ponto que convergem os escritos que formam o estágio embrionário da produção de Wesley Peres, período que compreende os seus dois primeiros livros publicados, a saber: Água Anônima (2002) e Rio Revoando (2003). Ambos testemunham a mesma inquietação fundamental, a mesma necessidade imperativa de “enxertar uma nova geografia à palavra em demolição” (Rio revoando. São Paulo: Com-Arte, 2003, p. 2).
Não por acaso, aquilo que há de mais bem realizado no primeiro livro acaba reaparecendo no segundo: Água Anônima flui sem reservas para o Rio revoando. Entretanto, apesar dessa repetição, em Rio revoando realiza-se uma mudança estilística sutil, mas extremamente
importante no contexto da obra de Peres. Ali veremos aparecer, entremeados aos demais poemas, alguns aglomerados discursivos nos quais a linguagem se espessa. Tomemos o primeiro deles, Carta de um Homem Derivado de Suas Águas - naquilo que não se repete ainda o azul, nosso fio de Ariadne: “dos anjos desejo apenas os seios azuis escorrendo a língua alada salivando o pistilo da morte e da vida” (Rio revoando. Op. Cit. p. 16).
O homem derivado de suas águas está só e sozinho ele fala a esmo. Talvez fale movido apenas pelo prazer da errância e, por isso mesmo, ele fala como quem está literalmente à deriva. É possível ainda que fale para tentar vencer na palavra a monotonia dos códigos fixos, afinal, “embora não haja nada de novo sob o sol, tudo se renova e se rediz quando a realidade se repropõe, [...] a cada um de nós, indivíduos irrepetíveis que somos”, já dizia Alfredo Bosi (“Meditatio mortis: sobre um livro de Reventós, poeta catalão”. In: Entre a literatura e a história. São Paulo: Editora 34, 2013, p. 66). Fala para se visitar e, nesse percurso, descobrir-se incomunicável. “Entre um ser e um outro há um abismo, uma descontinuidade”, como quer Bataille (O erotismo. São Paulo: Arx, 2004, p. 22), entre ele e Camila, uma vertiginosa incompreensão. E se, “a palavra é uma ponte mediante a qual o homem tenta superar a distância que o separa da realidade exterior” (Paz, Octavio. O arco e a lira. São Paulo: COSAC NAIFY, 2012. Trad. Ari Roitman e Paulina Wacht, p. 43), é exatamente ao entregar-se a ela, ao fazer a experiência do discurso, que ele poderá concluir que a distância é a sua casa.
Assim afastados, os amantes esperam por um encontro que teima em não se realizar. Ambos anseiam por aquilo que insiste em não acontecer: o aguardado retorno da ausência-ela, a mínima estabilização para o caos-ele. Ainda que endereçados um ao outro, eles se vêem fadados a repetir o mesmo destino: naquilo que se procuram só fazem se perder. Seres líquidos, em contínuo fluir. Que ele falasse sobre si e sobre si apenas, ela talvez tenha lhe rogado em algum momento do passado. Ao que ele, agora, lhe responde: “Bem, Camila, pediu que eu lhe escrevesse uma carta e que, nesta, eu me dissesse. Não lhe escrevi, mas talvez a
tenha escrito ao tentar me dizer. Sei que o pedido era que eu falasse de mim e apenas de mim, sem, como você mesma expressou, usar o subterfúgio de falar também de você. Lembre-se, esta carta não é para você, porém, na verdade, a sua carta está dentro desta carta” (Rio revoando, op. cit., p. 29). Encerrada a carta, o seguinte pós-escrito: “P.S.: Seja feita a vossa vontade. A seguir, algumas poucas linhas [...]: eu falando de mim, só de mim, mesmo que eu não saiba quem fala, serei eu, falando só de mim”. Promessa cumprida ao pé da letra.
[caption id="attachment_87929" align="alignleft" width="300"]
"Rio Revoando", o segundo livro publicado por Peres[/caption]
Nas linhas que vêm em seguida ele continua à deriva, segue falando “mesmo que [esse] eu não saiba quem fala” (Idem, p. 29). No todo da carta, a voz que se desdobra recusa terminantemente o vis-à-vis imaginário (base comum para os discursos calcados na força coesiva do eu consciente) a fim de assumir-se sempre outra. Por meio dela são traçados os contornos de um Eu dessimétrico a si mesmo e, por isso mesmo, em condição de refazer em sua experiência com o discurso a descoberta de Rimbaud: “Eu é um outro” - descobrimento também transmitido em carta, remetida pelo poeta francês ao amigo Paul Demeny. Um Eu estranhamente familiar e familiarmente estranho, eutro (Lopes apud Peres. A escrita literária como autobioficção: parletre, escrita, sinthoma. Brasília: Tese de doutoramento apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília, 2012.), em cuja voz se exprime a condição singular desse animal visitado pela linguagem que é o homem.
A falta de um centro de gravidade que estabilizasse esse Eu polifônico em uma identidade fixa limita com a insanidade: “Muitos confirmam a minha loucura, Camila, mas não me orgulho disso, não aceito elogios fáceis, enlouquecer é sempre uma construção de vagar, é aceitar que o tempo é um, e para sempre, imovimento alucinado da matéria, promovendo encontros que não se repetirão, caso sejam sutis o bastante para não serem percebidos” (Rio revoando, op. cit., p. 26). Para esse homem à deriva, feita slogan, a loucura soa tão imprópria quanto qualquer outra referência identitária. Categorizada, a doença mental não passa de um otimismo do saber conceitual frente à instabilidade da vida. E, como ele bem desconfia, a vida “não se faz nem com ideias nem com palavras” (Rio revoando, op. cit., p. 22). Por isso ele insiste, requisitando coragem para “romper com todos os lastros, todas as encostas, todos os sussurros infundidos em nós” (Rio revoando, op. cit., p. 21).
Disso resulta que, para ele, esse esforço de nomeação que visa conter as invasões do instante seja visto apenas como sinal de fraqueza: “ausência de coragem, dar um nome, possuir, devo tomar cuidado, Deus começou assim e acabou sofrendo de eternidade” (Rio revoando, op. cit., p. 27). Nas águas do rio-discurso, o conceito comunica com a eternidade. Ambos visceralmente repudiados pelo homem que se sabe provisório, afinal, não lhe são indiferentes os nexos que ligam a morte ao exercício conceitual: operação em razão da qual a coisa viva e perecível se faz substituir pela palavra inerte, apesar de sempre durável. Admite-se ali apenas o paradoxo da “eternidade embrulhada no instante” (Rio revoando, op. cit., p. 27), aquela por meio da qual se poderia negar a estabilidade do conceito e dizer sim para o acontecimento imprevisto. É sem um Eu que ele fala de si, de si apenas. O polifônico signatário performatiza em seu discurso o estado de ser à deriva que é o desse corpo vivo submetido às leis da palavra, cujo derivar mostra-se irremediavelmente intransitivo.
Tiago Ribeiro Nunes é professor adjunto do Curso de Psicologia da Universidade Federal de Goiás - Regional Catalão

Auden é um dos maiores poetas modernos e, nos anos 1950, época de lançamento dos livros mais conhecidos de Tolkien, ele foi um grande entusiasta das publicações
[caption id="attachment_87915" align="aligncenter" width="620"] W. H. Auden e J. R. R. Tolkien se correspondiam e uma das cartas mais importantes do último é justamente para o primeiro e diz respeito à formação de sua obra[/caption]
“No fiction I have read in the last five years has given me more joy than ‘The Fellowship of the Ring’”. Foi assim que W. H. Auden terminou seu texto publicado no New York Times, em 31 de outubro de 1954.
Auden, que teria completado 110 na terça-feira, 21, não era apenas um notório poeta — um dos maiores poetas modernos; era também um leitor ávido e um admirador da obra de seu compatriota J.R.R. Tolkien.
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Por isso o texto no NYT: “A Sociedade do Anel”, o primeiro volume de “O Senhor dos Anéis”, livro mais conhecido de Tolkien, havia sido publicado em julho daquele ano pela Allen & Unwin.
Tolkien leu o texto, assim como todos os outros do poeta inglês sobre sua obra. Tanto que eles se correspondiam. Auden constantemente enviava cartas a Tolkien, seja fazendo comentários ou perguntas sobre seus livros.
Uma carta enviada por Tolkien a Auden, datada de 7 de junho de 1955, é especial. Auden havia recebido provas de “O Retorno do Rei”, terceiro volume de “O Senhor dos Anéis”, e escreveu a Tolkien em abril de 1955 para fazer várias perguntas surgidas do livro, mas a resposta de Tolkien não sobreviveu, pois Auden geralmente jogava cartas fora depois de lê-las.
Assim, Auden escreveu novamente em 3 de junho para dizer que haviam lhe pedido para dar uma palestra sobre “O Senhor dos Anéis” no Third Programme da BBC, em outubro daquele ano, e perguntou a Tolkien se ele gostaria de ouvir algum aspecto específico sobre sua obra e se ele forneceria alguns “toques humanos” na forma de informações sobre como o livro veio a ser escrito.
A resposta de Tolkien é longa e detalha aspectos interessantes sobre a criação do universo fictício que ambienta sua obra. Esta carta só sobreviveu porque ele guardou uma cópia em papel carbono, da qual o texto a seguir foi tirado.
A carta que o Opção Cultural reproduz aqui está publicada em “As Cartas de J.R.R. Tolkien”, livro organizado por Humphrey Carpenter — primeiro biógrafo de Tolkien — com a assistência de Christopher Tolkien, e publicado no Brasil pela Arte e Letra Editora (2006), com tradução de Gabriel Oliva Brum.
Veja:
7 de junho de 1955
76 Sandfield Road, Headington, Oxford
Caro Auden,
Fiquei feliz por ter notícias suas e contente por sentir que você não ficou entediado. Receio que você mais uma vez receberá uma carta particularmente longa; mas você pode fazer o que quiser com ela. Bato-a à máquina de modo que ela possa, de qualquer forma, ser rapidamente legível.
Realmente não creio que eu seja terrivelmente importante. Escrevi a Trilogia¹ como uma satisfação pessoal, levado a isso pela escassez de literatura do tipo que eu queria ler (e o que havia com freqüência estava pesadamente adulterado). Um grande trabalho; e como o autor da Ancrene Wisse diz no final de sua obra: “Eu preferiria, Deus é minha testemunha, partir a pé para Roma do que começar de novo o trabalho!” Porém, ao contrário dele, eu não teria dito: “Leia um pouco deste livro no seu tempo livre todos os dias; e espero que, se você o ler com freqüência, ele mostre-se muito útil a você; do contrário, terei gasto minhas longas horas de má forma.” Eu não estava pensando muito na utilidade ou no prazer dos outros, embora ninguém possa realmente escrever ou criar algo de maneira puramente particular.
Contudo, quando a BBC emprega alguém tão importante quanto você para falar publicamente sobre a Trilogia, não sem referência ao autor, o mais modesto (ou, de qualquer forma, o mais reservado) dos homens, cujo instinto é o de ocultar tal conhecimento sobre si próprio conforme o possua, e tais críticas da vida tal como ele a conhece, sob uma vestimenta mítica e lendária, não pode deixar de pensar sobre isso em termos pessoais — e achar interessante, e difícil também, expressar-se tanto breve como precisamente.
O Senhor dos Anéis, como uma história, foi terminado há tanto tempo atrás que agora posso ter uma visão amplamente impessoal dele e considerar as “interpretações” bastante divertidas; mesmo aquelas que eu mesmo posso fazer, que em sua maioria são post scriptum: tive pouquíssimas intenções particulares, conscientes e intelectuais em mente em qualquer ponto*. Exceto por algumas críticas deliberadamente depreciativas — tais como a do Vol. II no New States-man², onde nós dois fomos açoitados com termos como “pubescente” e “infantilidade” —, o que os leitores apreciativos apreenderam da obra ou viram nela parece bastante justo, mesmo quando eu não concordo com isso. Excetuando sempre, é claro, quaisquer “interpretações” no modo de simples alegoria: isto é, a particular e tópica. Em um sentido mais amplo, suponho que seja impossível escrever qualquer “história” que não seja alegórica em proporção conforme “ganha vida”, uma vez que cada um de nós é uma alegoria, incorporada em um conto particular e vestido com os trajes do tempo e do lugar, da verdade universal e da vida eterna.
De qualquer forma, a maior parte das pessoas que apreciaram O Senhor dos Anéis foi afetada por ele primeiramente como uma história emocionante; e é desse modo que ela foi escrita. Embora, é claro, não se escape da pergunta “ela é sobre o quê?” por essa porta dos fundos. Seria como responder a uma pergunta estética ao falar de uma questão de técnica. Suponho que se alguém fizer uma boa escolha sobre o que é “boa narrativa” (ou “bom teatro”) em um determinado ponto, também será visto ser o caso de que o evento descrito será o mais “significante”.
* Pegue os Ents, por exemplo. Não os inventei conscientemente de maneira alguma. O capítulo chamado “Barbárvore”, desde a primeira observação de Barbárvore na p. 66, foi escrito mais ou menos como se encontra, com um efeito sobre mim (exceto pelas dores do trabalho) quase como o de ler a obra de outra pessoa. E gosto dos Ents agora porque eles não parecem ter algo a ver comigo. Suponho que algo estivesse acontecendo no “inconsciente” por algum tempo, e isso esclarece meu sentimento do começo ao fim, especialmente quando empacado, que eu não estava inventando, mas relatando (imperfeitamente) e às vezes tinha de esperar até que o “que realmente havia acontecido” viesse à tona. Mas olhando para trás analiticamente, devo dizer que os Ents são compostos de filologia, literatura e vida. Devem seu nome a eald enta geweorc³ do anglo-saxão e à sua ligação com as pedras. A parte deles na história deve-se, creio eu, ao meu amargo desapontamento e desgosto dos dias de colégio com o pobre uso feito em Shakespeare da chegada da “Grande floresta de Birnam à alta colina de Dunsinane”: eu ansiava por desenvolver uma ambientação na qual as árvores pudessem realmente marchar para a guerra. E nisso inseriu-se uma simples porção de experiência, a diferença da atitude “masculina” e da “feminina” em relação a coisas selvagens, a diferença entre o amor não-dominador e a jardinagem.
Para voltar, se eu puder, aos “toques humanos” e à questão de quando eu comecei. É como perguntar ao Homem quando começaram os idiomas. Foi um desenvolvimento inevitável, embora condicionável, do nascimento. Tem estado sempre comigo: a sensibilidade para o padrão lingüístico que me afeta emocionalmente como as cores ou a música; e o amor apaixonado pelas coisas que crescem; e a resposta profunda a lendas (por falta de palavra melhor) que possuem o que eu chamaria de temperamento e temperatura norte-ocidentais. De qualquer forma, se quiser escrever uma história desse tipo, é preciso consultar suas raízes, e um homem do noroeste do Velho Mundo colocará seu coração e a ação de sua história em um mundo imaginário daquela atmosfera e daquela situação: com o Mar Sem Praias de seus inumeráveis ancestrais ao Oeste e as terras intermináveis (das quais os inimigos na maioria das vezes vêm) ao Leste. Além disso, porém, seu coração pode lembrar-se, mesmo se tiver sido isolado de toda a tradição oral, dos rumores ao longo das costas a respeito dos Homens vindos do Mar.
Digo isso sobre o “coração”, pois tenho o que alguns podem chamar de um complexo de Atlântida. Possivelmente herdado, embora meus pais tenham morrido jovens demais para que eu soubesse tais coisas sobre eles, e jovens demais para transmitir tais coisas em palavras. Herdado de mim (suponho) apenas por um de meus filhos4, embora eu não soubesse isso sobre meu filho até recentemente, e ele não sabia disso sobre mim. Refiro-me ao terrível sonho recorrente (que começa com a lembrança) da Grande Onda, elevando-se e vindo inevitavelmente sobre as árvores e os campos verdes (Transmiti-o a Faramir). Não acho que eu o tenha tido desde que escrevi a “Queda de Númenor” como a última das lendas da Primeira e Segunda Eras.
Sou um habitante das West Midlands pelo sangue (e vi o antigo inglês médio das West Midlands como uma língua conhecida assim que coloquei meus olhos nele), mas talvez um fato da minha história pessoal possa explicar em parte por que a “atmosfera norte-ocidental” me atrai como um “lar” e como algo descoberto. Na verdade, nasci em Bloemfontein e, portanto, aquelas impressões implantadas profundamente, lembranças fundamentais da primeira infância que ainda estão disponíveis de forma pictórica para inspeção são para mim aquelas de um país quente e árido. Minha primeira lembrança de Natal é a de um sol abrasador, de cortinas abertas e de um eucalipto inclinado.
Receio que esta carta esteja se tornando um terrível fastio e alongando-se demais, mais longa, de qualquer maneira, do que “esta pessoa desprezível diante de você” merece. No entanto, é difícil parar uma vez estimulado por um tópico tão absorvente como si próprio. Quanto ao condicionamento: estou ciente mormente do condicionamento lingüístico. Fui para o Colégio King Edward’s e passei a maior parte do meu tempo aprendendo latim e grego; mas também aprendi inglês. Não Literatura Inglesa!
Com exceção de Shakespeare (que eu cordialmente não gostava), os principais contatos com a poesia eram quando alguém tinha de traduzi-la para o latim. Não é um modo ruim de introdução, ainda que um pouco casual. Quero dizer, a algo da língua inglesa e de sua história. Aprendi anglo-saxão no colégio (e também gótico, mas isso foi um acidente sem muita relação com o currículo, apesar de decisivo — descobri nele não somente a filologia histórica moderna, que recorria ao lado histórico e científico, mas pela primeira vez o estudo de um idioma por puro amor: quero dizer, pelo intenso prazer estético derivado de um idioma por si só, não apenas livre de ser útil, mas livre até mesmo de ser o “veículo de uma literatura”).
Há dois ou três elementos. Um fascínio que os nomes galeses exerciam em mim, mesmo que vistos apenas em caminhões de carvão na minha infância, é um deles, embora as pessoas me dessem apenas livros que eram incompreensíveis para uma criança quando eu pedia informações. Não aprendi nada de galês até me tornar um estudante universitário, e encontrei nele uma duradoura satisfação lingüística-estética. O espanhol foi outro: meu guardião era metade espanhol, e no início da minha adolescência eu costumava roubar seus livros para tentar aprender o idioma — o único idioma românico que me dá o prazer em particular do qual estou falando — não é exatamente a mesma coisa que a mera percepção da beleza: percebo a beleza, digamos, do italiano ou, falando nisso, do inglês moderno (que está muito distante do meu gosto pessoal) — é mais como o apetite por um alimento necessário. O mais importante, talvez, depois do gótico, foi a descoberta, na biblioteca da Faculdade Exeter, quando eu deveria estar lendo para o Bacharelado, de uma gramática de finlandês. Foi como descobrir uma adega completa repleta de garrafas de um vinho estupendo de um tipo e sabor jamais provados antes. Em muito me embriagou; e desisti da tentativa de inventar um idioma germânico “não-registrado”, e meu “próprio idioma” — ou uma série de idiomas inventados — tornou-se pesadamente afinlandesado em padrão e estrutura fonéticos.
É claro que isso já é passado. O gosto lingüístico muda como tudo mais conforme o tempo passa; ou oscila entre pólos. O latim e o tipo britânico de céltico possuem-no agora, com o belamente coordenado e padronizado (ainda que padronizado de forma simples) anglo-saxão bem próximo e mais além o nórdico antigo com o vizinho, porém alienígena finlandês. Não se poderia dizer britânico-romano? Com uma forte, porém mais recente infusão da Escandinávia e do Báltico. Bem, suponho que tais gostos lingüísticos, com o devido desconto pelo revestimento escolar, sejam testes de ancestralidade tão bons quanto ou melhores do que grupos sangüíneos.
Tudo isso apenas como pano de fundo para as histórias, embora os idiomas e os nomes sejam para mim inextricáveis das histórias. Eles são e foram, por assim dizer, uma tentativa de fornecer um pano de fundo ou um mundo no qual minhas expressões de gosto lingüístico pudessem ter uma função. As histórias foram comparativamente tardias no surgimento. Tentei escrever uma história pela primeira vez quando eu tinha cerca de sete anos. Era sobre um dragão. Não me recordo de coisa alguma sobre ela, exceto um fato filológico. Minha mãe nada disse sobre o dragão, mas observou que não se podia dizer “um verde dragão grande”, mas que se devia dizer “um grande dragão verde”. Perguntei-me por que, e ainda o faço. O fato de que me lembro disso possivelmente é significante, já que acho que nunca mais tentei escrever uma história por muitos anos e me ocupei com idiomas.
Mencionei o finlandês porque ele deu o pontapé inicial na história. Fui imensamente atraído por algo na atmosfera do Kalevala, mesmo na fraca tradução de [William Forsell] Kirby. Jamais aprendi finlandês bem o suficiente para fazer algo mais do que penar através de um pouco do original, como um aluno com Ovídio, ocupando-me principalmente com seu efeito no “meu idioma”.
Contudo, o início do legendário, do qual a Trilogia é parte (a conclusão), foi uma tentativa de reorganizar algumas partes do Kalevala, em especial o conto de Kullervo, o infeliz, em uma forma de minha própria autoria. Isso começou, como eu disse, no período do Bacharelado; quase que desastrosamente, visto que cheguei muito perto de ter minha bolsa de estudos tirada de mim, se não expulso. Digamos de 1912 a 1913. Conforme se desenvolvia, na prática escrevi-a em verso, apesar de a primeira verdadeira história desse mundo imaginário quase totalmente formado conforme aparece agora ter sido escrita em prosa durante a licença por motivo de doença no final de 1916: A Queda de Gondolin, a qual tive a insolência de ler para o Clube de Ensaios da Faculdade Exeter em 19185. Escrevi muito mais em hospitais antes do fim da Primeira Grande Guerra.
Prossegui depois de retornar; mas não fui bem-sucedido quando tentei fazer com que alguma parte desse material fosse publicado. O Hobbit originalmente não possuía muita relação, embora ele tenha sido inevitavelmente atraído para a circunferência da construção maior; e, na ocasião, modificado. Ele realmente foi pretendido de modo infeliz, pelo que me consta, como uma “história para crianças”, e como na época eu não possuía senso erudito, e meus filhos não eram velhos o suficiente para me corrigir, ele possui algumas das bobagens de costumes adquiridas irrefletidamente do tipo de material que me servia, tal como Chaucer podia pegar um refrão de menestrel. Arrependo-me profundamente delas. As crianças inteligentes também.
Tudo que me lembro sobre o início de O Hobbit é de sentar para corrigir provas para o Certificado Escolar no cansaço interminável daquela tarefa anual imposta sobre acadêmicos sem dinheiro e com filhos. Em uma folha em branco rabisquei: “Numa toca no chão vivia um hobbit.” Não sabia e não sei por quê. Não fiz nada a respeito por um longo tempo, e por alguns anos não fui além da produção do Mapa de Thror. Porém, tornou-se O Hobbit no início dos anos trinta, e foi finalmente publicado não por causa do entusiasmo dos meus próprios filhos (embora tenham gostado o suficiente dele*), mas porque o emprestei para a então Rev. Madre de Cherwell Edge quando ela teve uma gripe, e ele foi visto por uma ex-aluna que naquela época estava no escritório da Allen and Unwin. Ele foi, creio eu, analisado por Rayner Unwin; se não fosse por ele, quando adulto, acho que jamais conseguiria ver a Trilogia publicada.
* Não mais, creio, do que The Marvellous Land of Snergs, Wyke-Smith, Ernest Benn 1927. Vendo a data, devo dizer que esse provavelmente foi um livro de fonte inconsciente! para os Hobbits, não de algo mais.
Uma vez que O Hobbit foi um sucesso, foi exigida uma continuação; e as distantes Lendas Élficas foram recusadas. O leitor de um editor disse que elas estavam repletas do tipo de beleza celta que enlouquecia os anglo-saxões em uma dose grande. E muito provável que estivesse certo. De qualquer modo, eu mesmo vi o valor dos Hobbits, ao colocar terra debaixo dos pés do “romance” e ao fornecer questões para o “enobrecimento” e heróis mais dignos de elogios do que os profissionais: nolo heroizari é obviamente um começo tão bom para um herói quanto nolo episcopari é para um bispo. Não que eu seja um “democrata” em qualquer um de seus usos correntes; exceto que, suponho, para falar em termos literários, somos todos iguais diante do Grande Autor, qui deposuit potentes de sede et exaltavit humiles6.
Ainda assim, eu não estava preparado para escrever uma “continuação”, no sentido de outra história para crianças. Estive pensando sobre “Contos de Fadas” e sua relação com as crianças — alguns dos resultados eu coloquei em uma palestra em St Andrews e eventualmente ampliei e publiqueia-a como um Ensaio (entre aqueles listados na O.U.P. como Essays Presented to Charles Williams e agora permitido de maneira muito vil a ficar esgotado). Como eu havia expressado a opinião de que a ligação no pensamento moderno entre crianças e “contos de fadas” é falsa e acidental, e estraga as histórias em si mesmas e para as crianças, eu queria tentar escrever uma história que não fosse destinada a crianças de modo algum (como tal); eu queria também uma grande tela. Naturalmente muito trabalho esteve envolvido, visto que eu tive de criar um elo com O Hobbit; mas ainda mais com a mitologia do pano de fundo.
Esta também teve de ser reescrita. O Senhor dos Anéis é apenas a parte final de uma obra quase duas vezes maior7 na qual trabalhei entre 1936 e 1953. (Eu queria fazer com que tudo fosse publicado na ordem cronológica, mas isso se mostrou impossível.) E foi necessário lidar com os idiomas! Se eu tivesse considerado meu próprio prazer mais do que os estômagos de um possível público, haveria muito mais Élfico no livro. Mas mesmo os fragmentos que lá estão necessitariam, para que tivessem um significado, duas gramáticas e fonologias organizadas e uma grande quantidade de palavras.
Teria sido uma grande tarefa sem mais nada; mas tenho sido um administrador e professor moderadamente consciencioso, e troquei de cátedra em 1945 (descartando todas as minhas antigas aulas). E, é claro, durante a Guerra freqüentemente não havia tempo para qualquer coisa racional. Fiquei preso durante muito tempo no final do Livro Três. O Livro Quatro foi escrito como um folhetim e enviado para meu filho que estava servindo na África em 1944. Os dois últimos livros foram escritos entre 1944 e 1948. Isso obviamente não significa que a idéia principal da história foi um produto da guerra. A idéia apareceu em um dos primeiros capítulos ainda em existência (Livro I, 2). Ela é realmente fornecida, e apresentada em formação, desde o início, embora eu não tivesse uma noção consciente do que representava o Necromante (a não ser o mal sempre recorrente) em O Hobbit, nem a sua ligação com o Anel.
No entanto, se você quisesse continuar a partir do final de O Hobbit, acredito que o anel seria sua escolha inevitável como o elo. Se então você quisesse uma história grande, o Anel adquiriria na mesma hora uma letra maiúscula, e o Senhor do Escuro apareceria imediatamente. Como ele o fez, sem ser convidado, na lareira em Bolsão tão logo cheguei naquele ponto. Assim, a Busca essencial começou imediatamente. Porém, encontrei várias coisas no caminho que me surpreenderam. Tom Bombadil eu já conhecia; mas eu nunca havia estado em Bri. Passolargo sentado no canto da estalagem foi um choque, e eu não tinha mais idéia de quem ele era do que Frodo. As Minas de Moria tinham sido um simples nome; e sobre Lothlórien notícia alguma havia chegado aos meus ouvidos mortais até que eu lá chegasse. Longe dali eu sabia que havia os Senhores dos Cavalos nos confins de um antigo Reino dos Homens, mas a Floresta de Fangorn foi uma aventura inesperada.
Jamais havia ouvido falar da Casa de Eorl nem dos Mordomos de Gondor. O mais inquietante de tudo, Saruman jamais havia se revelado a mim, e fiquei tão perplexo quanto Frodo com o fracasso de Gandalf em aparecer em 22 de setembro. Eu nada sabia sobre os Palantíri, apesar de que, no momento em que a pedra de Orthanc foi arremessada da janela, eu o reconheci e soube o significado da “rima da tradição” que havia estado perambulando na minha mente: sete estrelas, sete pedras e uma árvore branca. Essas rimas e nomes surgirão, mas nem sempre explicam a si mesmos. Ainda tenho de descobrir alguma coisa sobre os gatos da Rainha Berúthiel8. Mas eu sabia mais ou menos tudo sobre Gollum e seu papel, e sobre Sam, e eu sabia que o caminho era guardado por uma Aranha. E se isso tiver algo a ver comigo sendo picado por uma tarântula quando eu era uma criança pequena9, as pessoas podem pensar o que quiserem (supondo o improvável, que alguém esteja interessado). Só posso dizer que não me lembro de nada sobre o fato e não saberia sobre ele se não tivessem me contado; e não tenho aversão a aranhas a ponto de entrar em pânico, e não tenho impulsos para matá-las. Geralmente resgato aquelas que encontro na banheira!
Bem, agora estou ficando realmente gárrulo. Espero que você não fique terrivelmente entediado. Também espero vê-lo novamente alguma hora, quando talvez poderemos falar sobre você e seu trabalho e não sobre o meu.
De qualquer maneira, seu interesse em mim é um encorajamento considerável.
Com os melhores votos.
Sinceramente,
J. R. R. Tolkien.
Notas do organizador:
- Auden usou o termo “trilogia” em sua carta; para a aversão de Tolkien à palavra aplicada a O Senhor dos Anéis, vide as cartas n° 149 e 165.
- O crítico, Maurice Richardson, escreveu: “É tudo que posso fazer para evitar que eu grite.... ‘Adultos de todas as idades! Unam-se contra a invasão infantil.’ .... O Sr. Auden sempre foi cativado pelo mundo pubescente da saga e da sala de aula. Há passagens em The Orators [“Os Oradores”] que não são diferentes de partes da hobbitice de Tolkien.” (18 de dezembro de 1954)
- Do poema anglo-saxão The Wanderer [“O Vagante”], 87: “eald enta geweorc idlu stodon”, “as antigas criações dos gigantes [i.e. construções antigas, erigidas por uma raça anterior] permaneceram desoladas”.
- O segundo filho de Tolkien, Michael.
- “A Queda de Gondolin” na verdade foi lida para o Clube de Ensaios da Faculdade Exeter não em 1918, mas em 1920, conforme está registrado no livro de atas do clube: “... na quarta-feira, 10 de março, às 8:15 p.m.....o presidente passou para assuntos públicos e chamou o Sr. J. R. R. Tolkien para ler seu ‘Queda de Gondolin’. Como uma descoberta de um novo cenário mitológico, o assunto do Sr. Tolkien foi extraordinariamente esclarecedor e evidenciou-o como um fiel seguidor da tradição, um tratamento sem dúvida à maneira de românticos típicos tais como William Morris, George Macdonald, de Ia Motte Fouqué etc... A batalha das forças opostas do bem e do mal, conforme representada pelos Gongothlim [sic, para Gondothlim, o nome para o povo de Gondolin no “Queda de Gondolin” original; vide Contos Inacabados p. XVII] e pelos seguidores de Melco [sic, para Melko, um nome antigo para Melkor] foi contada de modo muito gráfico e surpreendente.” Entre aqueles na reunião estavam Nevill Coghill e Hugo Dyson.
- Latim, “que depôs os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes”; do Magnificat.
- Uma afirmação potencialmente equivocada. Enquanto estava escrevendo O Senhor dos Anéis, Tolkien trabalhou na revisão e reescrita de grande parte de O Silmarillion. Por outro lado, O Silmarillion existia antes de 1936, e não pode ser considerado como tendo sido originado entre esse ano e 1953.
- “- É mais provável ele encontrar o caminho de casa numa noite cega do que os gatos da Rainha Berúthiel.” (Aragorn sobre Gandalf em O Senhor dos Anéis, Livro II, Capítulo 4.) Vide Contos Inacabados p. 513.
- Um episódio da infância de Tolkien em Bloemfontein; vide Biography p. 13.

Wystan Hugh Auden, mais conhecido como W. H. Auden, nasceu em York, Inglaterra, em 21 de fevereiro do 1907. Auden é um dos maiores poetas modernos e o Opção Cultural não poderia deixar de homenageá-lo. Portanto, posto abaixo o poema This lunar beauty, seguido da tradução de José Paulo Paes (Poemas. São Paulo: Cia das Letras, 2013. Org. João Moura Jr). This lunar beauty This lunar beauty Has no history, Is complete and early; If beauty later Bear any feature It had a lover And is another. This like a dream Keeps other time, And daytime is The loss of this; For time is inches And the heart’s changes Where ghosts has haunted, Lost and wanted. But this was never A ghost’s endeavour Nor, finished this, Was ghost at ease; And till it pass Love shall not near The sweetness here Nor sorrow take His endless look. April 1930 Lunar, esta beleza Lunar, esta beleza É primeva, inteira, Não tem nenhuma história. Se a beleza mais tarde Exibe algum traço, Foi porque teve amante, Já não é como antes. Nisto, qual em sonho, Vige um outro tempo, Perdido se o dia De tudo se apropria. O tempo são centímetros E mudanças de alma Que espectro assombrou, Perdeu e desejou. Mas isto, por certo, Não foi coisa de espectro, Nem espectro, ela finda, Sentiu-se a gosto, ainda, E enquanto persista, Nem se chega amor A tal doçura e a dor Tampouco lhe vem dar Seu infinito olhar

O pesquisador canadense Jean-Pierre Sirois-Trahan, da Universidade de Laval (Quebec), descobriu um vídeo datado de 14 de novembro de 1904 em que aparece o escritor francês Marcel Proust, autor de uma das obras mais importantes da literatura universal, “À la recherche du temps perdu” (“Em busca do tempo perdido”). Proust foi filmado no momento em que estava descendo os degraus de uma escadaria. O escritor havia acabo de assistir ao casamento da aristocrata Elaine Greffulhe, e aparece entre 34 e 38 segundos do vídeo em questão, que pode ser acessado abaixo. https://www.youtube.com/watch?v=51COHIgjbYU

A Aurora do poeta alagoano há de ser póstuma. É do outro lado do Atlântico que nos chega sua voz solar, da Espanha, onde faleceu. Mas, em vida, por que não lhe foi dado o merecido lugar ao Sol, em sua terra natal?
[caption id="attachment_87820" align="alignleft" width="620"] Lêdo Ivo | Foto: acervo ABL[/caption]
Wladimir Saldanha
Especial para o Jornal Opção
Lêdo Ivo (1924-2012) terá sido, talvez, um neossimbolista, em meio à reação ao Modernismo – lida “em bloco” como neoparnasiana – que foi a Geração de 45. O equívoco parte de José Guilherme Merquior, em ensaio fundador no qual excetua João Cabral de Melo Neto e, mais pontualmente, José Paulo Moreira da Fonseca; contudo, o próprio Merquior admitiria depois a necessidade de rever o julgamento do “malsinado parnaso”, em texto reunido no seu livro O Elixir do Apocalipse, no qual cita nominamente o caso de Lêdo Ivo: “Hoje teria que discriminar muito mais”.
Entre o primeiro e o segundo tempo, o crítico participou da organização de uma antologia de poetas brasileiros em que pôs em prática a própria lição – deixou de fora a maior parte dos poetas de 45 – o que rendeu uma resposta, agora sim, em bloco, dos dois grupos da Geração – o de São Paulo, reunido em torno da Revista Brasileria de Poesia, tendo à frente Péricles Eugênio da Silva Ramos e Domingos Carvalho da Silva – e o do Rio de Janeiro, que publicara com intermitência a Revista Orfeu, da qual participou Lêdo Ivo. Na antologia-resposta,
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José Guilherme Merquior faleceu antes de fazer uma prometida revisão de sua crítica aos poetas da "Geração de 1945"[/caption]
organizada por Fernando Ferreira de Loanda, dita da Moderna Poesia Brasileira, Silva Ramos ironiza Merquior no prefácio, enquanto Lêdo Ivo assina um dos ensaios que lhe valeriam a proscrição: um Epitáfio do Modernismo no qual sistematiza críticas aos que viam, na Geração de 45, uma “continuadora” de 1922 – tese que, se hoje parece absurda, era então defendida por parte dos críticos e poetas, no sentido de ser uma geração de “extensão de conquistas”, como deixou dito o insuspeito João Cabral de Melo Neto.
Ao tempo da Moderna Poesia Brasileira, estamos falando da década de 1960, e já então se conhecia o Itinerário de Pasárgada, publicado por Manuel Bandeira em 1954, com o capítulo da revisão de seu papel em 1922, quando esclarece que o poema Os sapos se dirigia a parnasianos menores como Goulart de Andrade. Ali repudia o poema-piada, dizendo-o apenas um episódio da reação modernista, sem maior importância na poética dos que lhe praticaram, à exceção de Oswald (por ser algo da própria natureza desse autor). O leitor que tiver a curiosidade de conhecer o Epitáfio do Modernismo, de Lêdo Ivo, verá que o poema-piada é um dos pontos contra os quais investe o ensaísta, somando-se a isso, entre outras coisas, o projeto paulistano de “inaugurar” uma modernidade como se esta não já viesse por influxos diversos, e por diversos portos, como os do Simbolismo, não sendo acontecimento situável numa data – a Semana de 1922 – e num lugar – São Paulo.
Acalmados os ânimos da juventude, infelizmente Merquior morreria em 1991, sem fazer a revisão anunciada anos antes, em 1983. Àquela altura, a semente redutora já tinha germinado fácil na terra onde, em se plantando, tudo que é erva daninha sempre dá: grandes nomes da teoria e da crítica, ao tratar em ensaios ou obras monográficas da poesia de João Cabral, reforçaram a tese da “incômoda convergência cronológica”: de Benedito Nunes a João Alexandre Barbosa, de Luiz Costa Lima a Haroldo de Campos. Lêdo Ivo, um daqueles a “discriminar muito mais”, prosseguiria na sua obra múltivoca, de poesia, romance, ensaio, crônica, conto – cada vez mais se distanciando do palco reativo de 45, no reagenciamento dos signos informativos de sua poética. Pelo menos desde o final da década de 1940, com a segunda seção de Linguagem, a geografia da terra natal alagona é reapropriada em clave aberta, pela qual mangues, lagoas e penínsulas, longe de uma referencialidade, falam de sua cosmovisão dual.
O estigma da Geração, porém, iria grudar-se a seu nome como sinal de nascença. Seria lembrado, muito mais, como o poeta que “quis atirar uma pedra na vidraça de Drummond”, imagem recortada de um texto de algumas páginas, publicado na revista gaúcha A província de São Pedro e tido como ataque insofismável ao grande mineiro, via paródia com o poema da pedra no meio do caminho. Não é bem isso que lá está, na velha brochura esquecida, onde um Lêdo Ivo de vinte anos vê a geração precedente – não só Drummond, mas Murilo Mendes, Jorge de Lima etc. – como um muro contra o qual teriam forçosamente que investir.
Não se perca de vista: a Geração de 45 é a que se segue à de Drummond, chamada inicialmente de “Poetas de 1930”; de quinze em quinze anos, como diz Ortega y Gasset, as coisas “cambiam” significativamente. Ora, quem estude com o mínimo de honestidade a questão das gerações literárias, a própria forma textual da paródia (vide Yuri Tynianov) e o
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João Cabral foi eleito "borgeanamente" pelos poetas concretos, como o seu precursor[/caption]
particular da relação de influência em poesia (vide Harold Bloom), não deveria dar muito seguimento a isso, ou pelo menos deveria descer às fontes primárias, antes de repercutir a citação da citação. Mais acadêmico foi o próprio Drummond, que nunca levou a sério tal pedra na vidraça, tanto assim não lhe ter recolhido entre as paródias e pastiches da Biografia de um poema, livro sobre a recepção da “pedra no meio do caminho”, no qual só uma reedição mais recente faz lembrar, em prefácio acrescido, da pelota de Lêdo Ivo.
Outro equívoco será o do papel do poeta alagoano na própria Geração de 45: embora tenha sido um dos editores do primeiro grupo da Orfeu, não foi o autor paradigmático que se alardeia, tendo sido, inclusive, criticado por Domingos Carvalho da Silva nas páginas da Revista Brasileira de Poesia, quando da publicação do Acontecimento do Soneto. Note-se que seria o mesmo Carvalho da Silva quem, tendo objetado a Lêdo Ivo o uso de sibilações e rimas toantes, faria ressalvas a João Cabral de Melo Neto por usar palavras “apoéticas”, tais como “cachorro” (em vez de “cão”) ou “fruta” (em vez de “fruto”). Em bom tempo tudo isso foi repelido por um crítico do porte de Sérgio Buarque de Holanda – que a Lêdo Ivo, muito mais que a Cabral, chamava de “ponto de fuga” da Geração de 45, por não vê-lo pactuar com duas pedras-de-toque dos grupos, ao contrário do pernambucano: a contenção da linguagem (com repúdio ao verso longo) e o chamado rigor, a clareza e a racionalidade na criação literária. Era a Geração do culto a Ungaretti, a Valéry, e o “malsinado parnaso”, para usar a expressão de Merquior, nada tinha a ver, nesse particular, com a produção já muito divergente de Lêdo Ivo, onde abundava o que chamou de verso “respiratório”, de matriz whitmaniana, e um sentido intuitivo ou irracional da criação, mais próximo dos surrealistas (indo mais longe: dos simbolistas e românticos).
Se a Lêdo Ivo, como aos colegas de Geração, o poema-piada e a busca de uma “gramática brasileira” repugnavam, as analogias param por aí. Domingos Carvalho da Silva, que de um lado atacava o Acontecimento do Soneto e, do outro, O cão sem plumas, seria o autor da polêmica tese Há uma nova poesia no Brasil, esta de matriz claramente neoparnasiana, que rendeu intensos debates em 1948, no I Congresso de Poesia de São Paulo (!), quando Oswald de Andrade acusava, junto à companheira Pagu, ter sido a “revolução traída”, entenda-se: a revolução modernista, a despeito do vocabulário marxista da invectiva (ou por isso mesmo).
A roda girou mais uma vez contra Lêdo Ivo, e seria ele, não Carvalho da Silva – de resto esquecido e também carecedor de revisão –, o antípoda de Oswald, no imaginário crítico-acadêmico brasileiro, o que em parte se deve ao Epitáfio do Modernismo e à inimizade dos
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Lêdo Ivo demonstrou diversas vezes a sua aversão por Oswald de Andrade[/caption]
dois escritores, que data da juventude de Lêdo. Conta no livro memorialístico Confissões de um poeta a sua versão para o desentendimento, segundo a qual Oswald lhe teria pedido a cabeça no emprego que arrumara na redação de um jornal, pelo fato de que ele, Lêdo Ivo, dissera aos colegas que o velho modernista apressara um lauto almoço no Copacabana Palace para terminar um “romance proletário”.
Verdade ou meia-verdade, fato é que Lêdo Ivo detestava Oswald de Andrade e sua poesia, e o disse muitas vezes, a última em entrevista a uma rede nacional televisão. No país do silêncio murmurante, na Pindorama do tapinha nas costas, isso é imperdoável – e mais em se tratando de um corifeu do “novo”, do “moderno” e da “ruptura”.
O prosseguimento do discurso crítico de exceção, cristalizado na “incômoda convergência cronológica” de João Cabral, teria uma sobrevida muito robusta, sobretudo quando os poetas concretos o elegeram borgeanamente como precursor. Se a crítica anterior, ocupando nas universidades o espaço dos rodapés no meio literário depois da cruzada de Afrânio Coutinho, procurava o poeta ideal para substituir o “impressionismo” pelo “método”, no momento mesmo da criação dos institutos de Letras no Brasil, uma vanguarda da década de 1950 – coisa aliás unicamente brasileira – e nascida nas páginas da mesma Revista Brasileira de Poesia do grupo de Péricles Eugênio da Silva Ramos, ao tomar a cena da poesia e da tradução reinvidicava para si o “pai” João Cabral, geômetra engajado, como o chamaria Haroldo de Campos. Quanto a Cabral, é fato que participou da Geração de 45, tendo inclusive colaborado com traduções de quinze poetas catalães para aquela mesma revista, quando recomendava, em nota, que a “...posição materialista diante da criação poética” daqueles autores talvez devesse “ser considerada por parte de outros idiomas não-ameaçados”, como o português.
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Gilberto Mendonça Teles é autor de um dos poucos estudos de fôlego sobre a poesia de Lêdo Ivo [/caption]
Sustenta Gilberto Mendonça Teles, em um dos poucos ensaios de fôlego sobre a poesia de Lêdo Ivo, que seria ele o distoante e Cabral o paradigmático em relação a 45; a tese parece ecoar um pouco o artigo de Sérgio Buarque de Holanda, mas vai mais longe. Não pensamos que Cabral seja paradigmático da Geração; contudo, sem dúvida o é de alguns aspectos dela – precisamente aqueles que, com alguns pontos de contato com o Parnaso, a que não era alheia a objetividade (o banimento do “eu” romântico), passavam longe da convenção literária de “palavras poéticas” e assimilavam a assim chamada antilira – precisamente aquilo que repudiava Domingos Carvalho da Silva. E é este viés objetal e antiliríco, até materialista, que, bebendo em fontes estrangeiras, como Valéry ou Marianne Moore, e servindo-se dos metros tradicionais ibéricos, iria engendrar a obra cabralina. A visualidade da imagem, radicalizada pelos concretos, pode ser lida em tal linhagem, porém se articula com uma dimensão, não propriamente parnasiana, mas simbolista da pesquisa poética – um Simbolismo de experimentos, entendido na sua mais ampla acepção europeia, como aqui só houve episodicamente, em autores que os próprios concretos também cuidaram de revificar, como é o caso de Pedro Kilkerry.
Hábeis na construção de seu cânone, traduzindo em ritmo acelarado e publicando autores até então lidos apenas no original ou mesmo desconhecidos, os filhos bastardos da Geração de 45 logo apagariam essa naturalidade de seus registros de nascimento, fariam sua própria revista e se voltariam contra a mesma Geração que lhes deu à estampa pela primeira vez.
Aí estão alinhavadas, tanto quanto o permite este espaço, as razões pelas quais se pode entender o silenciamento em que caíram nomes como Péricles Eugênio da Silva Ramos, Darcy Damasceno, Fernando Ferreira de Loanda, José Paulo Moreira da Fonseca (este, apesar do aplauso inicial de Merquior), Afonso Félix de Sousa ou o próprio Lêdo Ivo. Quanto ao último, foi sem dúvida o mais resistente de todos, aquele que ultrapassou, pela única força de sua palavra literária, todas as barreiras criadas pelo não-dito, pelos apodos jocosos – “lêdo ivo engano” etc. –, pelas citações propositamente mal recortadas, pela valorização de eventos da vida literária em detrimento da literatura. Publicou, ganhou prêmios importantes, foi traduzido e, para um poeta, nos padrões do Brasil, não se pode dizer que tenha caído em ostracismo.
Contudo, em quase setenta anos de atividade literária, assusta pensar que a universidade brasileira produziu pouquíssimo conhecimento em relação à sua obra. Assusta pensar que seja nome quase impronunciável em programas de pós-graduação, e que o único perfil jornalístico feito dele, quando do seu falecimento, tenha preferido ressaltar o anedotário da Academia Brasileira de Letras à sua volumosa poesia: quase mil e cem páginas em uma edição de 2004, a que faltam alguns livros posteriores.