A Aurora do poeta alagoano há de ser póstuma. É do outro lado do Atlântico que nos chega sua voz solar, da Espanha, onde faleceu. Mas, em vida, por que não lhe foi dado o merecido lugar ao Sol, em sua terra natal?

Lêdo Ivo | Foto: acervo ABL

Wladimir Saldanha
Especial para o Jornal Opção

Lêdo Ivo (1924-2012) terá sido, talvez, um neossimbolista, em meio à reação ao Modernismo – lida “em bloco” como neoparnasiana – que foi a Geração de 45.  O equívoco parte de José Guilherme Merquior, em ensaio fundador no qual excetua João Cabral de Melo Neto e, mais pontualmente, José Paulo Moreira da Fonseca; contudo, o próprio Merquior admitiria depois a necessidade de rever o julgamento do “malsinado parnaso”, em texto reunido no seu livro O Elixir do Apocalipse, no qual cita nominamente o caso de Lêdo Ivo: “Hoje teria que discriminar muito mais”.

Entre o primeiro e o segundo tempo, o crítico participou da organização de uma antologia de poetas brasileiros em que pôs em prática a própria lição – deixou de fora a maior parte dos poetas de 45 – o que rendeu uma resposta, agora sim, em bloco, dos dois grupos da Geração – o de São Paulo, reunido em torno da Revista Brasileria de Poesia, tendo à frente Péricles Eugênio da Silva Ramos e Domingos Carvalho da Silva – e o do Rio de Janeiro, que publicara com intermitência a Revista Orfeu, da qual participou Lêdo Ivo. Na antologia-resposta,

José Guilherme Merquior faleceu antes de fazer uma prometida revisão de sua crítica aos poetas da “Geração de 1945”

organizada por Fernando Ferreira de Loanda, dita da Moderna Poesia Brasileira, Silva Ramos ironiza Merquior no prefácio, enquanto Lêdo Ivo assina um dos ensaios que lhe valeriam a proscrição: um Epitáfio do Modernismo no qual sistematiza críticas aos que viam, na Geração de 45, uma “continuadora” de 1922 – tese que, se hoje parece absurda, era então defendida por parte dos críticos e poetas, no sentido de ser uma geração de “extensão de conquistas”, como deixou dito o insuspeito João Cabral de Melo Neto.

Ao tempo da Moderna Poesia Brasileira, estamos falando da década de 1960, e já então se conhecia o Itinerário de Pasárgada, publicado por Manuel Bandeira em 1954, com o capítulo da revisão de seu papel em 1922, quando esclarece que o poema Os sapos se dirigia a parnasianos menores como Goulart de Andrade. Ali repudia o poema-piada, dizendo-o apenas um episódio da reação modernista, sem maior importância na poética dos que lhe praticaram, à exceção de Oswald (por ser algo da própria natureza desse autor). O leitor que tiver a curiosidade de conhecer o Epitáfio do Modernismo, de Lêdo Ivo, verá que o poema-piada é um dos pontos contra os quais investe o ensaísta, somando-se a isso, entre outras coisas, o projeto paulistano de “inaugurar” uma modernidade como se esta não já viesse por influxos diversos, e por diversos portos, como os do Simbolismo, não sendo acontecimento situável numa data – a Semana de 1922 – e num lugar – São Paulo.

Acalmados os ânimos da juventude, infelizmente Merquior morreria em 1991, sem fazer a revisão anunciada anos antes, em 1983. Àquela altura, a semente redutora já tinha germinado fácil na terra onde, em se plantando, tudo que é erva daninha sempre dá: grandes nomes da teoria e da crítica, ao tratar em ensaios ou obras monográficas da poesia de João Cabral, reforçaram a tese da “incômoda convergência cronológica”: de Benedito Nunes a João Alexandre Barbosa, de Luiz Costa Lima a Haroldo de Campos. Lêdo Ivo, um daqueles a “discriminar muito mais”, prosseguiria na sua obra múltivoca, de poesia, romance, ensaio, crônica, conto – cada vez mais se distanciando do palco reativo de 45, no reagenciamento dos signos informativos de sua poética. Pelo menos desde o final da década de 1940, com a segunda seção de Linguagem, a geografia da terra natal alagona é reapropriada em clave aberta, pela qual mangues, lagoas e penínsulas, longe de uma referencialidade, falam de sua cosmovisão dual.

O estigma da Geração, porém, iria grudar-se a seu nome como sinal de nascença. Seria lembrado, muito mais, como o poeta que “quis atirar uma pedra na vidraça de Drummond”, imagem recortada de um texto de algumas páginas, publicado na revista gaúcha A província de São Pedro e tido como ataque insofismável ao grande mineiro, via paródia com o poema da pedra no meio do caminho. Não é bem isso que lá está, na velha brochura esquecida, onde um Lêdo Ivo de vinte anos vê a geração precedente – não só Drummond, mas Murilo Mendes, Jorge de Lima etc. – como um muro contra o qual teriam forçosamente que investir.

Não se perca de vista: a Geração de 45 é a que se segue à de Drummond, chamada inicialmente de “Poetas de 1930”; de quinze em quinze anos, como diz Ortega y Gasset, as coisas “cambiam” significativamente. Ora, quem estude com o mínimo de honestidade a questão das gerações literárias, a própria forma textual da paródia (vide Yuri Tynianov) e o

João Cabral foi eleito “borgeanamente” pelos poetas concretos, como o seu precursor

particular da relação de influência em poesia (vide Harold Bloom), não deveria dar muito seguimento a isso, ou pelo menos deveria descer às fontes primárias, antes de repercutir a citação da citação. Mais acadêmico foi o próprio Drummond, que nunca levou a sério tal pedra na vidraça, tanto assim não lhe ter recolhido entre as paródias e pastiches da Biografia de um poema, livro sobre a recepção da “pedra no meio do caminho”, no qual só uma reedição mais recente faz lembrar, em prefácio acrescido, da pelota de Lêdo Ivo.

Outro equívoco será o do papel do poeta alagoano na própria Geração de 45: embora tenha sido um dos editores do primeiro grupo da Orfeu, não foi o autor paradigmático que se alardeia, tendo sido, inclusive, criticado por Domingos Carvalho da Silva nas páginas da Revista Brasileira de Poesia, quando da publicação do Acontecimento do Soneto. Note-se que seria o mesmo Carvalho da Silva quem, tendo objetado a Lêdo Ivo o uso de sibilações e rimas toantes, faria ressalvas a João Cabral de Melo Neto por usar palavras “apoéticas”, tais como “cachorro” (em vez de “cão”) ou “fruta” (em vez de “fruto”). Em bom tempo tudo isso foi repelido por um crítico do porte de Sérgio Buarque de Holanda – que a Lêdo Ivo, muito mais que a Cabral, chamava de “ponto de fuga” da Geração de 45, por não vê-lo pactuar com duas pedras-de-toque dos grupos, ao contrário do pernambucano: a contenção da linguagem (com repúdio ao verso longo) e o chamado rigor, a clareza e a racionalidade na criação literária. Era a Geração do culto a Ungaretti, a Valéry, e o “malsinado parnaso”, para usar a expressão de Merquior, nada tinha a ver, nesse particular, com a produção já muito divergente de Lêdo Ivo, onde abundava o que chamou de verso “respiratório”, de matriz whitmaniana, e um sentido intuitivo ou irracional da criação, mais próximo dos surrealistas (indo mais longe: dos simbolistas e românticos).

Se a Lêdo Ivo, como aos colegas de Geração, o poema-piada e a busca de uma “gramática brasileira” repugnavam, as analogias param por aí. Domingos Carvalho da Silva, que de um lado atacava o Acontecimento do Soneto e, do outro, O cão sem plumas, seria o autor da polêmica tese Há uma nova poesia no Brasil, esta de matriz claramente neoparnasiana, que rendeu intensos debates em 1948, no I Congresso de Poesia de São Paulo (!), quando Oswald de Andrade acusava, junto à  companheira Pagu, ter sido a “revolução traída”, entenda-se: a revolução modernista, a despeito do vocabulário marxista da invectiva (ou por isso mesmo).

A roda girou mais uma vez contra Lêdo Ivo, e seria ele, não Carvalho da Silva – de resto esquecido e também carecedor de revisão –, o antípoda de Oswald, no imaginário crítico-acadêmico brasileiro, o que em parte se deve ao Epitáfio do Modernismo e à inimizade dos

Lêdo Ivo demonstrou diversas vezes a sua aversão por Oswald de Andrade

dois escritores, que data da juventude de Lêdo. Conta no livro memorialístico Confissões de um poeta a sua versão para o desentendimento, segundo a qual Oswald lhe teria pedido a cabeça no emprego que arrumara na redação de um jornal, pelo fato de que ele, Lêdo Ivo, dissera aos colegas que o velho modernista apressara um lauto almoço no Copacabana Palace para terminar um “romance proletário”.

Verdade ou meia-verdade, fato é que Lêdo Ivo detestava Oswald de Andrade e sua poesia, e o disse muitas vezes, a última em entrevista a uma rede nacional televisão. No país do silêncio murmurante, na Pindorama do tapinha nas costas, isso é imperdoável – e mais em se tratando de um corifeu do “novo”, do “moderno” e  da “ruptura”.

O prosseguimento do discurso crítico de exceção, cristalizado na “incômoda convergência cronológica” de João Cabral, teria uma sobrevida muito robusta, sobretudo quando os poetas concretos o elegeram borgeanamente como precursor. Se a crítica anterior, ocupando nas universidades o espaço dos rodapés no meio literário depois da cruzada de Afrânio Coutinho, procurava o poeta ideal para substituir o “impressionismo” pelo “método”, no momento mesmo da criação dos institutos de Letras no Brasil, uma vanguarda da década de 1950 – coisa aliás unicamente brasileira – e nascida nas páginas da mesma Revista Brasileira de Poesia do grupo de Péricles Eugênio da Silva Ramos, ao tomar a cena da poesia e da tradução reinvidicava para si o “pai” João Cabral, geômetra engajado, como o chamaria Haroldo de Campos. Quanto a Cabral, é fato que participou da Geração de 45, tendo inclusive colaborado com traduções de quinze poetas catalães para aquela mesma revista, quando recomendava, em nota, que a  “…posição materialista diante da criação poética” daqueles autores talvez devesse “ser considerada por parte de outros idiomas não-ameaçados”, como o português.

Gilberto Mendonça Teles é autor de um dos poucos estudos de fôlego sobre a poesia de Lêdo Ivo 

Sustenta Gilberto Mendonça Teles, em um dos poucos ensaios de fôlego sobre a poesia de Lêdo Ivo, que seria ele o distoante e Cabral o paradigmático em relação a 45; a tese parece ecoar um pouco o artigo de Sérgio Buarque de Holanda, mas vai mais longe. Não pensamos que Cabral seja paradigmático da Geração; contudo, sem dúvida o é de alguns aspectos dela – precisamente aqueles que, com alguns pontos de contato com o Parnaso, a que não era alheia a objetividade (o banimento do “eu” romântico), passavam longe da convenção literária de “palavras poéticas” e assimilavam a assim chamada antilira – precisamente aquilo que repudiava Domingos Carvalho da Silva. E é este viés objetal e antiliríco, até materialista, que, bebendo em fontes estrangeiras, como Valéry ou Marianne Moore, e servindo-se dos metros tradicionais ibéricos, iria engendrar a obra cabralina. A visualidade da imagem, radicalizada pelos concretos, pode ser lida em tal linhagem, porém se articula com uma dimensão, não propriamente parnasiana, mas simbolista da pesquisa poética – um Simbolismo de experimentos, entendido na sua mais ampla acepção europeia, como aqui só houve episodicamente, em autores que os próprios concretos também cuidaram de revificar, como é o caso de Pedro Kilkerry.

Hábeis na construção de seu cânone, traduzindo em ritmo acelarado e publicando autores até então lidos apenas no original ou mesmo desconhecidos, os filhos bastardos da Geração de 45 logo apagariam essa naturalidade de seus registros de nascimento, fariam sua própria revista e se voltariam contra a mesma Geração que lhes deu à estampa pela primeira vez.

Aí estão alinhavadas, tanto quanto o permite este espaço, as razões pelas quais se pode entender o silenciamento em que caíram nomes como Péricles Eugênio da Silva Ramos, Darcy Damasceno, Fernando Ferreira de Loanda, José Paulo Moreira da Fonseca (este, apesar do aplauso inicial de Merquior), Afonso Félix de Sousa ou o próprio Lêdo Ivo. Quanto ao último, foi sem dúvida o mais resistente de todos, aquele que ultrapassou, pela única força de sua palavra literária, todas as barreiras criadas pelo não-dito, pelos apodos jocosos – “lêdo ivo engano” etc. –, pelas citações propositamente mal recortadas, pela valorização de eventos da vida literária em detrimento da literatura. Publicou, ganhou prêmios importantes, foi traduzido e, para um poeta, nos padrões do Brasil, não se pode dizer que tenha caído em ostracismo.

Contudo, em quase setenta anos de atividade literária, assusta pensar que a universidade brasileira produziu pouquíssimo conhecimento em relação à sua obra. Assusta pensar que seja nome quase impronunciável em programas de pós-graduação, e que o único perfil jornalístico feito dele, quando do seu falecimento, tenha preferido ressaltar o anedotário da Academia Brasileira de Letras à sua volumosa poesia: quase mil e cem páginas em uma edição de 2004, a que faltam alguns livros posteriores.

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A Aurora de Lêdo Ivo, como em paralelo do título sobre que falaremos em um próximo artigo (link à esquerda), há de ser póstuma: “Estou vindo da sombra,/ do mistério da noite,/ escuto jubiloso/ a voz inumerável/ da promessa do dia”. É do outro lado do Atlântico que nos chega sua voz solar, da Espanha onde faleceu e onde seu nome conta com a simpatia de jovens poetas e um tradutor fiel – Martín López-Vega; ali recebeu homenagens em vida, e sua memória ainda as recebe. Por imposição contratual e desde o volume Mormaço, o último publicado pelo autor, os poucos inéditos saem em espanhol antes do português – e isto a ponto de Aurora jogar aqui e ali com a semelhança léxica entre as duas línguas, como veremos em breve. Que os exílios se façam pródigos na poesia é uma das desforras da palavra poética.

Wladimir Saldanha é poeta e tradutor. Doutor em Letras pela UFBA, com tese sobre a poesia de Lêdo Ivo.