No carnaval brasileiro sempre “valeu tudo”?
27 fevereiro 2017 às 09h46
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O carnaval da virada do século XIX para o XX tinha que cumprir rigorosamente os requisitos exigidos pela chefia de polícia, que publicava um edital impondo regras à folia
Carlos César Higa
Especial para o Jornal Opção
O acervo do jornal O Estado de São Paulo é uma daquelas coisas que fazem qualquer pesquisador encher os olhos de lágrimas de emoção e não de poeira – até porque as páginas do jornal estão digitalizadas. Tem notícias de 1875 até os dias de hoje. É possível ver como era o carnaval no tempo em que era comum ter escravo no Brasil. O Estadão é tão antigo que, quando foi lançado, São Paulo nem estado era, mas sim província. Por isso, de 1875 até 1889, o jornal se chamava A Província de São Paulo. O nome só foi trocado para o atual logo após a Proclamação da República.
Se hoje o carnaval é vale tudo, como dizia Tim Maia, nem sempre foi assim. O carnaval da virada do século XIX para o XX tinha que cumprir rigorosamente os requisitos exigidos pela chefia de polícia, que publicava um edital no jornal com as regras da folia. Não se podia vestir com trajes indecentes e nem alegorias ofensivas à religião. O Estadão de 17 de fevereiro de 1901 trazia a chamada do diretor da chefia de polícia de São Paulo, João Cândido de Carvalho, atentando para os foliões não descuidarem das fantasias. Caso contrário, ia para a delegacia.
O carnaval que tivesse o diretor João Cândido em serviço poderia ter a certeza de que a lei e a ordem valeriam nos três dias de folia. Além do cuidado com as fantasias dos foliões, até mesmo brinquedos seriam fiscalizados pelo nobre diretor. Língua de sogra, bisnagas e carrapichos eram proibidos. Inocentes brinquedos que hoje usamos para comemorar o carnaval já foram casos de polícia.
Em uma crônica sobre carnaval de 1915, o Estadão trazia o relato de um japonês que esteve em nosso país durante o carnaval. No Brasil, em certa época do ano, a população é acometida subitamente de loucura. Durante três dias ficam inteiramente mentecaptos. No quarto dia, pela manhã, vão ao templo onde o sacerdote lhe faz com cinza uma cruz na testa e eles recuperam a razão. Ao contrário do que diziam os pensadores iluministas, uma cruz na testa podia sim recuperar a razão de uma pessoa.
Quem é religioso pode pular o carnaval? Na década de 1940, o Estadão tinha uma coluna chamada Movimento Religioso, na qual se reservava um espaço para que cada religião se manifestasse. A edição de 11 de fevereiro de 1945 do jornal, na parte católica do movimento, dizia que sim, o religioso poderia pular o carnaval e recordou São Paulo Apóstolo na carta aos Romanos: Sede alegre com os que estão alegres. Só que essa alegria durava pouco já que após os festejos do carnaval, o católico se resguardaria para a quaresma.
Em passeio pelo acervo do Estadão percebe-se as mudanças que o carnaval brasileiro passou ao longo dos tempos. Vemos também que muita coisa continua como a alegria de se aproveitar este tão querido feriado. Que a memória do diretor João Cândido de Carvalho garanta a segurança de quem comemora nas ruas e a paz de quem quer descansar nos três dias de folia.
Carlos César Higa é mestre em história pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e professor nas redes particular e pública de ensino na cidade de Goiânia.