Opção cultural
Crítico norte-americano é arquétipo a ser perseguido pelo jornalismo cultural — há tempos relegado aos rodapés dos periódicos e pálido em suas econômicas observações
Nos tempos da reconquista do solo ibérico aos muçulmanos, quando pequenos feudos formavam o reino de Leão, as façanhas de Valderico corriam de boca em boca. Cavaleiro descendente de guerreiros celtas e visigodos saía-se vencedor em qualquer tipo de combate ou escaramuça. Os inimigos o temiam. E tremiam ao saber de seus feitos. Granjeava admiração ou inveja de seus aliados.
Ficando a sua bravura pouco aquém do disse-que-disse — a mídia daqueles tempos —, a fama do cavaleiro acabara vazando as fronteiras asturianas. E como cruzar a ponte entre a fama e a lenda era questão de encompridar a língua, disso se encarregavam os bufões palacianos — marqueteiros medievais — sabedores de que a mente humana costuma dar pés ao que vê, e asas ao que imagina.
Enfim, os sarracenos estremeciam ao ver a soberba figura de Valderico senhoreando sua montaria, com o brial de cavaleiro e a armadura reluzente, destroçando tendas, barbacãs ou guaritas, e espalhando mortes a golpes de espada, maça, lança, ou com os próprios punhos. Naquelas liças encarniçadas, nunca um infiel sobrevivera à fúria do guerreiro asturiano. Tal bravura o tornara vassalo preferido do rei.
Mas como tudo neste mundo tem seus prós e contras, a distinção concedida a Valderico nos campos de batalha deixava o monarca pouco confortável na paz do cotidiano: cobria-o de honrarias ou concedia-lhe favores. As honrarias seguiam os ritos das justas medievais. Já os favores tomavam caminhos sinuosos, pessoais, não raro levando o rei a fazer vista grossa aos caprichos sentimentais do cavaleiro. De fato, além de temível nos campos de guerra, Valderico era rastreador compulsivo dos fetiches femininos.
Conhecido o lado glorioso do cavaleiro, forjado e temperado nos campos de batalha, passamos àquelas lides, não menos perigosas, entre as muralhas dos castelos, nem menos inocentes travadas nos redutos acortinados das alcovas, sob a pureza contestável dos lençóis.
Ouviam-se nos corredores, torres, paços, pontes, guaritas, muralhas, em todo o castelo, que raras mulheres da corte conseguiam rechaçar os assédios do herói.
Numa ocasião, havendo o rei se deslocado às terras galegas, não muito longe do que viria a ser o caminho de Santiago, coincidiu na ausência do soberano que o seu vassalo preferido retornasse antecipadamente de vitoriosa missão contra os sarracenos nas fronteiras ao sul. Mal o herói se desvencilhara das parafernálias de combate, irrompeu nos alojamentos da armaria do castelo um mensageiro real.
— Nobre cavaleiro Valderico, trago mensagem de Sua Alteza, a rainha!
Embora surpreso com a presença tempestiva do mensageiro, Valderico não se alterou. — Com que mensagem me honra Sua Majestade?
— Sua Majestade ordena-lhe comparecer aos seus aposentos reais, amanhã, uma hora antes do pôr do sol.
— Diga à Sua Majestade que o seu fiel vassalo, com grande honra, ali estará na hora aprazada. Já o mensageiro iniciava mesuras para afastar-se, quando ocorreu a Valderico perguntar-lhe.
— Aconteceu alguma coisa fora dos costumes à Sua Majestade durante a ausência do rei?Estou pouco informado, pois estava a combater o inimigo infiel além das margens do Douro.
— Nobre cavaleiro, apenas sei que Sua Majestade, a rainha, anda maldisposta nos últimos dias. Agora, se me permite…
— Vá, vá mensageiro, e confirme à rainha o que já lhe transmiti.
No dia seguinte, a natureza cobriu de beijos ensolarados o verde úmido que ainda hoje engalana os montes asturianos. Valderico preparou-se dignamente, e dois pajens deram-lhe banho numa tina adaptada ao enorme guerreiro. Sendo costume somente dois ou três banhos daquele tipo por semestre, talvez por ano, uma visita aos aposentos da rainha requeria sacrifício de imersão e esfregões extras.
O pôr do sol fugia pela encosta dos montes, quando Valderico atravessou garbosamente a ala do castelo que levava aos aposentos da rainha. O brial de cavaleiro cobria-lhe vestes palacianas. Espada curta embainhada na cinta. A guarda real reconhecendo o herói, imediatamente deu-lhe passagem nos corredores sombrios.
O mesmo ocorreu no vestíbulo que antecedia a câmara real, quando cinco aias que guardavam a entrada reconheceram Valderico. Três delas lançaram-lhe olhares tão afiados quanto cimitarras sarracenas. Talvez numa tentativa imaginária de cortar-lhe as tramas do brial, suas vestes, e ver o gigante guerreiro despido. As outras abaixaram a cabeça com reverência desconfiada, mas pensamentos suspeitos. Todas suspiraram quando, na passagem do guerreiro, recendeu o cheiro inconfundível do banho tomado. Mas na cabeça de Valderico transitou outro gênero de questão, qualquer coisa como a diferença entre montar selas ou saias.
Vencidos corredores, vestíbulos, guardas e aias, Valderico em carne, osso e brial, apresentou-se à Sua Majestade, ajoelhando uma das pernas no chão, como era reverência de praxe nas saudações aos soberanos. Estando a rainha deitada sobre grandes almofadas no leito, o guerreiro achou por bem mencionar preocupação com a sua saúde.
— Vossa Majestade ordenou que estivesse aqui uma hora antes do pôr do sol, pois bem, cá estou, em carne e osso, cavaleiro Valderico de Santullano, Valdedios, Lena, Oviedo, Naranco e Leon…, mas a minha nobre senhora parece não estar bem-disposta…
— Cavaleiro Valderico agradeço-vos a presença, mas antes de qualquer conversa, melhor saberdes que, por minha ordem, entre este pôr do sol e a aurora de amanhã, todos os meus guardas, servos, aias e camareiras vão empenhar-se em tarefas longe da câmara real, de modo que, de agora em diante, tudo o que falarmos, tudo o que aqui ocorrer, tudo o que aqui fizermos, ficará entre estas frias paredes, nós dois, e Deus, talvez. Ordeno-vos juramento à rainha!
— A ordem de Vossa Majestade será cumprida por este fiel servo mesmo que eu tenha de apressar o pôr do sol ou retardar a aurora com a espada que trago na cinta. Tem meu juramento, nobre Senhora!
— Alça-te! Era o que esperava ouvir do maior herói do reino. Pois, pois, valoroso e fiel Valderico, durante algumas horas, vamos tratar-nos de tu, e guarda a tua espada para outras causas… Sabes tu que, desde menina ouço teus feitos e glórias, e todos falam de ti, e… bem… sempre sonho contigo…
— São exageros majestade, apenas cumpro o meu dever de vassalo preferido do rei… — Tentou argumentar Valderico.
— Ouve Valderico! O rei está ausente, e pode até morrer nos campos de batalha, está ficando velho e fraco, e tu sabes que ainda não entrei na carreira dos trinta. Ora, pois, quero então saciar agora mesmo todos os meus desejos em relação a tua figura de cavaleiro e herói, quero ouvir de viva voz aquilo que mais te dá prazer nos campos de batalha, pois o tempo passa e teus feitos parecem cada vez mais assombrosos, excitam-me a imaginação, caso compreendas um pouco da alma feminina!
Estando os heróis sempre prontos a enfrentar o inusitado, Valderico pareceu não se alterar, e maior foi a dificuldade de mudar o tratamento pronominal ordenado pela rainha do que, naquele momento, apagar do pensamento a figura do rei. Então, reiniciou o discurso com eufemismos logo envolvidos pela excitação.
— Exageram minha nobre rainha, apenas luto com denodo por fidelidade aos meus senhores e à causa cristã. Verdade que herdei de meus ancestrais visigodos desejo insaciável para o combate, principalmente o corpo a corpo. E me apraz nos campos de batalha montar meu cavalo, e com a lança retesada derrubar o inimigo de sua montaria, e… bem, depois sentir o infiel estremecer por inteiro ao trespassar-lhe minha espada! E também…
Valderico falou, falou, e falou. E tanta era a vibração que instilava na voz que gotas de suor lhe escorreram da fronte e se infiltraram nas barbas. Mas como homens de ação são objetivos e não se perdem em elucubrações, logo constatou que tanta vibração não vinha da fala, mas do falo.
Enquanto o herói discursava, a rainha parecia enfeitiçada. Rito estudado, soltou os longos cabelos de ouro, livrou-se de almofadas e lençóis, içou o tronco esbelto e, com movimento estratégico preciso, deixou metade do corpo níveo cruzar as fronteiras do decoro. Em seguida, passou da estratégia à tática, apontando agressivamente na direção de Valderico dois aríetes bicudos e, claro, majestosos. De repente, a boca em arco disparou seta indefensável.
— Ordeno que tolhas o brial de cavaleiro e todas as tuas vestes, para que eu possa ver tuas origens celtas e visigodas, tuas armas naturais.
— Majestade!…
— Jurastes…
— Jurei... minha rainha...
Até então nenhuma cimitarra moura fizera zunido semelhante àquele que Valderico sentiu nos ouvidos. Estratégia por estratégia, tática por tática, fidelidade ao rei por fidelidade à rainha, vendaval desarrumou-lhe as ideias por um instante, e como a vida é feita de momentos e, às vezes, há momentos que valem a vida inteira, a arquitetura celta e visigoda do seu inconsciente desabou com um grito tribal, interior e milenar: “Guerra é guerra!” E mais rápido que o voo do falcão, tolheu o brial e despiu-se .
— Pronto minha rainha! Juramento é juramento, eis-me, em guarda, com as minhas armas naturais.
— Ordeno ao maior herói do reino que suba ao leito, e por merecimento e glória, trave com sua rainha uma contenda amorosa e real!
E foi assim que, lança em riste, sob o lusco-fusco do pôr do sol, numa atmosfera real de um lado e irreal de outro, Valderico travou com a rainha confronto amoroso privativo dos reis. Noite alta e a lua entre sombras, após o calor da luta, dos infindáveis movimentos e golpes de parte a parte, sem vencedor nem vencido, desejos saciados, torpor inevitável anunciou a trégua final. Um silêncio parecia esmagar a ambos, lado a lado. A atmosfera de sonho começou a dissipar-se. E como na vida tanto os gozos fruídos quanto os sonhos a desfrutar têm um preço, um custo, um ônus, ou que nome se queira dar, instalou-se nos amantes o pêndulo da reflexão que logo se transformou em remorso, depois em culpa, finalmente em pecado. A rainha espatifou o silêncio contra o teto.
— Valderico, cometemos tremendo pecado!
— Verdade minha rainha, traímos nosso rei, sob a lei dos homens não teremos perdão, mas eu jurei cumprir tuas ordens… — Achou melhor retornar ao antigo e respeitoso tratamento — aliás, cumpri ordens de Vossa Majestade…
— Jurastes — isso é verdade, mas eu vos provoquei… e nós dois fraquejamos. Porém, ainda podemos pedir perdão a Deus, o Senhor de todas as coisas… só Ele poderá perdoar-nos e aliviar a nossa consciência… talvez uma grande penitência, uma clamorosa contrição…, talvez um autoflagelamento…
— Que pensais Majestade?
— Tão logo amanheça, irei à abadia. Abrirei o coração ao meu abade confessor, e ele me dirá qual penitência terei de cumprir para recuperar minha pureza...
— E eu, que farei? Há anos não me confesso, e jurei que tudo o que acontecesse aqui não o revelaria a ninguém… Ficarei com este remorso o resto dos meus dias?
— Fareis o mesmo, ireis ao abade logo depois de mim. Pedireis perdão a Deus que está acima de qualquer juramento. Obviamente, quando confessardes vossos pecados ao meu padre confessor, ele já saberá o que cometemos — até será melhor — e assim somente uma voz pedirá a Deus por nós…
Valderico deixou a câmara real incógnito, pensamentos sombrios e passadas estreitas. Passadas menos silenciosas do que quanto queria, pois a culpa agrega peso invisível ao espírito. Então, o que é imponderável parece adquirir massa, matéria, peso. E surge uma espécie de incômodo corpo dentro do próprio corpo. Em seu alojamento na torre não conseguiu dormir, assaltado pelo remorso.
O sol nasceu. A luz do dia ajuda a clarear também as sombras do espírito. Valderico observou da janela da torre dois servos carregando a liteira da rainha em direção à capela da abadia. Homem de ação, ele pensou rápido, desceu da torre e dirigiu-se à capela. Ajoelhou-se atrás de uma coluna e ficou à espera. Viu quando a rainha terminou o ato da confissão e retirou-se para cuidar de sua penitência. Valderico apareceu como um raio diante do abade confessor e pediu-lhe para, também, tomar sua confissão.
— Abre o coração filho!--Disse o abade por trás da treliça de madeira.
— Tenho muitos pecados!
— Abre o coração, filho, todos somos pecadores, confessarás teus pecados a Deus, e se deleste arrependeres, o Senhor de tudo te perdoará.
— Trucidei quatrocentos e oitenta e nove sarracenos!
— Eram infiéis filho, basta fazeres o pelo-sinal e estarás perdoado.
— Afoguei cento e vinte e cinco cristãos-novos!
— Tardaram a converter-se, reza uma ave-maria e estarás perdoado.
— Tirei a vida de oitenta e dois cristãos, homens de armas!
— Jejuarás por dois dias consecutivos.
— Deitei com metade das mulheres da corte!
— Quantas?
— Acho que umas trinta…
— Quantas?
— Talvez quarenta…
— Então, durante quarenta dias não conhecerás nem deitarás com mulher, será tua penitência.
— Ia esquecendo, não reconheci dezesseis filhos bastardos!
— Dezesseis ave-marias será tua penitência.
— Deitei com a rainha no leito real!
— O quê? Pecado gravíssimo, filho! Não só aos olhos de Deus! Cometeste alta traição ao rei, e à própria rainha, mesmo tu, Valderico, sendo o maior herói do reino poderás ser enforcado e esquartejado! E tua pobre alma arderá no Inferno eternamente!
— Mas estou confessando meu pecado, e farei qualquer penitência, até mesmo me autoflagelar!
— Ouve filho, grandes pecados, exigem grandes penitências.
— Então, o que devo de fazer, meu abade confessor?
— Hoje nada farás. Vais e repousa. Mas amanhã, deves tomar um bom banho, com muitos esfregões nas tuas armas naturais. Em seguida vestirás o teu brial de cavaleiro. Ao cair da tarde, virás procurar-me, sem que ninguém perceba, em meus aposentos particulares aqui na abadia. Aliás, será melhor uma hora depois do pôr do sol.
Carlos Trigueiro é escritor
Vem a vida em sua energia secreta e natural, intraduzível e irrevelada, cozinhando devagar suas transformações de cada dia, em silêncio. Conspirando para fazer o nosso tempo passar mais devagar
Mãos ao alto! Joguem ao chão defesas, sustos, ressentimentos, maledicências. Rejeitem desconfianças de toda a ordem. O amor existe e insiste em lhe entregar uma flor
Gabriel García Márquez não precisou morrer para alcançar o posto de mito, tornou-se um ainda em vida
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Um dos aspectos pouco observados na obra do poeta e compositor Vinicius de Moraes foi o seu humor negro
“Uma Longa Queda”, adaptação cinematográfica dirigida pelo francês Pascal Chaumeil, surpreende ao retirar o essencial dos três vértices o livro de Nick Hornby: a tentativa quádrupla de suicídio, a relação dessa turma improvável de amigos com a mídia após um pacto e o desfecho piegas
Este é o espírito da obra, seu veio nutriente preenchido por histórias pessoais e por escritores de várias tendências
James Joyce narra as impressões da infância, da adolescência e da juventude de um garoto que deseja profundamente ser um artista. O protagonista do livro é o jovem Stephen Dedalus, que perderá a fé no Deus criador, terrível e onipotente e ganhará na liberdade o direito de perder-se por sua conta e risco
Alguém sugeriu despejar tequila enrustida, colocar fogo naquela coleção medonha ali mesmo e aproveitar o calor da ignorância para derreter alguns marshmallows
Paulo Lima
Na época das Grandes Navegações, quando das primeiras viagens de Portugal ao Brasil, desde a invasão até a exploração regular que durou cerca de três séculos, as condições de transporte em nada lembravam um passeio bucólico pelos bosques paulistas do Ibirapuera ou pelo Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
Você leu direito: eu falei invasão, não descoberta. Até parece que não havia ninguém na futura colônia (índios não eram gente?), sem contar que o navegador espanhol Vicente Yáñez Pinzón aportara na costa norte do Brasil três meses antes da chegada de Cabral, fora os vestígios de africanos que aqui estiveram centenas de anos antes ainda.
Continuemos. A nau do Pedrão, por exemplo, viajava a vertiginosos nove quilômetros horários, no máximo. Durante cerca de um mês, superar o enjoo do mar sem Dramim, o mau cheiro da embarcação repleta de homens fedendo a macaco morto a tapa, a vontade de desistir e pegar o caminho de volta logo a partir do segundo dia, a saudade da terrinha, não era tarefa para os fracos.
Nada de camas ou colchões. Os corpos ficavam ao chão, se revezando para descansar, uns dormitando, outros de pé no batente. Havia aqueles que dormiam ao relento, no convés.
Uma caravela tinha no máximo mais dois pavimentos inferiores, onde o ar e a luz chegavam através das fendas entre os ripados de madeira, que também deixavam passar água. Os porões estavam sempre abafados, quentes, úmidos e fétidos.
É óbvio que não havia banheiro nos navios. Mas não faltava criatividade para resolver esse pequeno problema que afetava somente algumas dezenas de homens que dividiam um espaço que deveria ser ocupado por no máximo uns vinte. Qualquer semelhança com os aposentos das penitenciárias brasileiras da atualidade é mera coincidência.
Dependendo do tipo e do ano da embarcação, como ocorre hoje nos carros e seus opcionais produzidos pelas nobres montadoras, sempre dava-se jeito. Para fazer suas necessidades mais sujas, os marujos recorriam a pequenos assentos pendurados sobre a amurada dos navios, se debruçando no costado com as calças arriadas e o traseiro voltado para o mar. O resto ficava por conta da força da cólica, da contração abdominal espontaneamente provocada ou da lei da gravidade. Talvez ambos os três.
Outra alternativa: usava-se uma longa corda cuja ponta estava sempre alguns metros dentro d’água, se lavando e desinfetando de água e sal marinhos em tempo integral. Teria a agressão ambiental ao Atlântico começado ali? Em tempo: a corda era compartilhada por todos, sem exceção. Até os capitães faziam uso do mesmo recurso...
Vale o registro: alguns mais ditosos caíam enquanto buscavam alívio e nunca mais retornavam para relatar a aventura. Outros ainda optavam por encher recipientes diversos, despejando o conteúdo no oceano ou deixando-o em qualquer canto. Por fim, havia os vergonhosos ou preguiçosos que largavam sua produção intestinal no porão mesmo. Ninguém se lavava, pois tinham que racionar água e o banho era considerado nocivo à saúde. De resto, era comum no balançar das ondas em alto mar os marujos vomitarem como quem joga uma tarrafa, sujando uns aos outros.
Oficialmente, constava que a embarcação levava carne vermelha defumada, peixe seco ou salgado, favas, lentilhas, cebolas, vinagre, banha, azeite, azeitonas, farinha de trigo, laranjas, biscoitos, açúcar, mel, uvas-passas, ameixas, conservas e queijos. Como não havia lenha e fogo, peixes e carnes eram consumidos crus.
Oficialmente. Na verdade, a dieta era basicamente composta de biscoitos de água e sal cozidos duas vezes para durar mais tempo. O restante da lista era só uma complementação esporádica, privilegiada e temporária. Cada qual recebia diariamente cerca de quatrocentos gramas do delicioso biscoito para sua farta refeição. A ração era distribuída três vezes ao dia, nunca excedendo uma porção de biscoitos, meia medida de vinho e uma de água. Depois de algumas semanas, o vinho se transformava em vinagre e a água em um criadouro de larvas. Em viagens longas, os biscoitos já estavam todos roídos por outros tripulantes não convidados: ratos e baratas. Aliás, caçar os muitos ratos presentes também era uma estratégia honrosa para driblar a fome.
Alimento fresco? Sim, às vezes seguiam a bordo alguns animais vivos, como galinhas, porcos, carneiros e cabras, brindando os embarcados com muito esterco e urina.
Estamos falando de uma viagem perfeita. Diante de imprevistos, como tempestades, danos físicos nas embarcações ― quer dizer, imperícia ― do timoneiro, a machaiada sofria com a falta de alimento e mais desconforto.
Os utensílios eram compartilhados entre os tripulantes. Lavar as colheres, as gamelas e os pratos usados? Nem pensar. Consumia muita água, produto precioso para tamanhos luxos.
Mas nem tudo era de todo ruim. O consumo de ratos, animalzinho virtuoso que sintetiza a vitamina C a partir dos alimentos que consome, diminuía sensivelmente os infortúnios vividos pelos mareantes. Sem saber, acabavam evitando o aparecimento ou agravamento do escorbuto, então chamado de “mal das gengivas” ou “mal de Luanda”. Uma enfermidade daquelas bem desgracentas que causava inchaço das gengivas e perda dos dentes, dilatações e dores nas pernas, levando o desinfeliz a uma morte lenta e dolorosa.
Infestação de piolhos era tão comum como hoje são os vírus de computador. Cabeça raspada, a solução. Nem as princesas reais escapavam da desdita. Sem a proteção da cabeleira, a cachola esquentava muito sob o sol dos trópicos, mas... Fazer o quê?
A bordo a rigidez na disciplina era comparada à dos quartéis, pois tinha de tudo: marinheiros experientes e grumetes (aprendizes), tripulantes, carpinteiros, artesãos, calafates (especialistas em tapar fendas ou buracos) e tanoeiros (responsáveis pelo conserto de tonéis e barris), soldados e religiosos, degredados e criminosos, além de canhões e peças de artilharia. Manter a ordem exigia pulso firme. Alguns desses homens eram extremamente necessários a uma viagem desse tipo. Mas evitavam levar médicos, porque os humanos presentes eram descartáveis.
Crianças e adolescentes entre 9 e 15 anos de idade eram recrutados ou alistados pelos próprios pais, que embolsavam o soldo dos meninos, coisa que hoje ainda ocorre em algumas culturas e profissões, mesmo depois de instituída a tal civilização. A molecada servia como grumetes, fazendo as piores tarefas como lavar o convés, limpar o bosteiro, costurar velas. Serviam também à sanha dos mais afoitos, pois mulheres eram proibidas durante as expedições de descobrimento. Frequentemente alguns adultos, mais enfraquecidos pelo rigor da jornada, eram arrastados para onde sua virgindade pudesse ser surrupiada. Suicídios eram comuns e aceitos pela Marinha Portuguesa como efeitos colaterais ou acidentes de percurso.
Vale lembrar que, depois que se tornaram rotineiras nos séculos 15 e 16, a presença de mulheres nas viagens à Índia e ao Brasil foi finalmente permitida. As escolhidas: órfãs e ex-prostitutas, enviadas para casar com colonos portugueses. E para a diversão durante as viagens, claro.
Por recomendação dos padres, o lazer era proibido. Apesar disso, os precavidos capitães sempre faziam vistas grossas para alguma jogatina, como cartas e dados, para aliviar a tensão interna.
Aqueles navegadores carregavam na alma medos reais e imaginários. Muitos juravam de pé junto que o oceano era povoado por monstros e dragões, buracos sem fundo e tantas outras coisas que no século 21 nem as criancinhas são capazes de fantasiar. Fora isso, havia a certeza de que, ao seguir em mar aberto, as tempestades e chuvas intensas poderiam pôr fim à fragilidade das embarcações. Por tudo isso, alucinações e depressão eram uma constante.
Contei essa história, com muito mais riqueza de detalhes, durante uma hora inteira ― a terceira da viagem São Paulo-Miami ― às minhas duas filhas adolescentes que me comprimiam no assento do meio do voo noturno e mais barato que a companhia aérea dispunha. Era nossa primeira excursão rumo à Disney. Não é fácil se posicionar em meio a um ataque de nervos de duas jovenzinhas acostumadas ao conforto das modernidades, indignadas com o desconforto da classe econômica e dos serviços precários da aviação brasileira. Mas valeu o esforço e a consulta ao Google, ainda que não pudesse comprovar a veracidade das informações postadas na controversa fonte Wikipédia.
A narrativa surtiu efeito. As cinco últimas horas foram de sossego, marcado por profundo silêncio e resignação.
Paulo Lima é escritor e publicitário.
Vi nascimentos e conheci a injustiça da morte. Descobri o amor, suas alegrias e dores, e também vivenciei a amizade, com suas traições à espreita. Entendendo pouco ou nada de tudo aquilo, buscava refúgio nos livros, que traduziam o que eu experimentava e supriam minhas deficiências
Basileu França reconstrói a beleza inspirada em novela de Mérimée e impulsiona, do teatro para a cidade, as grandes produções



