Se considerado doente mental, suposto serial killer goiano pode ficar à solta

25 outubro 2014 às 11h26

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Goiás não possui manicômio judiciário, logo, se for atribuído a Tiago da Rocha uma doença mental, ele entrará no Paili, o mesmo programa que recebeu Carlos Eduardo Sundfeld, o Cadu

Tiago da Rocha: se for considerado inimputável, o suspeito de assassinar 39 pessoas poderá receber acompanhamento psicológico em liberdade / Foto: Fernando Leite/Jornal Opção
Marcos Nunes Carreiro
Preso em Goiânia há pouco mais de uma semana suspeito de ser um serial killer, ou assassino em série, Tiago Henrique Gomes da Rocha confessou ter matado 39 pessoas, entre mulheres, homossexuais e moradores de rua. Dessas mortes, apenas oito foram confirmadas como sendo de autoria de Tiago. As outras ainda estão por averiguar. Porém, as oito mortes já confirmadas já atribuem a ele a denominação de assassino em série. Há quem duvide (veja matéria na página ao lado).
Mas a grande questão é: Tiago será julgado como criminoso, assassino, ou como doente mental, louco? Por meio das declarações e entrevistas dadas por Tiago, é possível perceber que ele já fala em “se for uma doença, eu quero me tratar”. Isso pode confirmar uma tática utilizada pela defesa do suspeito, visto que, se confirmado como portador de doença mental, é certo que ele irá cumprir pena em medida de segurança no Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator (Paili). Isso certamente ocorrerá, pois em Goiás não há manicômios judiciários, caso de outros Estados do país, como São Paulo — onde se localiza a maior instituição do tipo no Brasil, o manicômio judiciário de Franco da Rocha.

O Paili ganhou mídia depois que o assassino confesso do cartunista Glauco Vilas Boas, Carlos Eduardo Sundfeld Nunes, o Cadu, foi preso em Goiânia acusado de latrocínio — roubo seguido de morte — e participação em outro assalto. Cadu estava inserido no programa desde 2011, quando foi diagnosticado como esquizofrênico e declarado inimputável — isento de pena devido à doença mental — pela Justiça Federal, que acatou pedido da defesa e o transferiu do Paraná para Goiás, onde seu pai, Carlos Grachi Nunes, mora.
À época do episódio de Cadu, muitos profissionais questionaram a eficácia do Paili, uma vez que os pacientes em medida de segurança, isto é, aqueles que responderam por processo na Justiça por algum crime, ficam livres, seguindo apenas um calendário de acompanhamento psicológico em um dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) no Estado, sobre os quais a responsabilidade compete aos governos municipais. Em Goiânia, há oito Caps.
O grande questionamento em relação ao programa foi de que a rede de saúde que presta o atendimento não está tecnicamente preparada para a demanda de pacientes em medida de segurança. Dessa forma, mesmo que o Paili seja uma iniciativa eficaz, sendo, na avaliação de grande parte dos profissionais da área, muito melhor do que os manicômios judiciários, o resultado final sempre terá falhas se a rede não conseguir atender satisfatoriamente. Precisaria de um maior controle sobre tais pacientes, dado o risco que eles têm de voltar a cometer crimes, caso de Cadu.
Dessa forma, profissionais apontam que, se considerado inimputável, Tiago da Rocha poderá ficar entre 20 e 30 dias internado, caso haja necessidade. Depois disso, ele ficará em tratamento ambulatorial, ou seja, solto. Psiquiatras disseram, sob a segurança do off, que, seguramente, o mais provável é que Tiago seja portador de um transtorno antissocial de personalidade, que não se caracteriza como doença mental, e sim, como uma perturbação da saúde mental, o que, por sua vez, não gera inimputabilidade.
Tese semelhante já foi defendida pelo delegado titular da Delegacia Estadual de Investigação de Homicídio (DIH), Murilo Polati. Ele afirmou, no fim da semana passada, que Tiago é “frio, meticuloso, vaidoso, desafiador e, devido a isso, precisou ser sedado em determinadas situações”.
O delegado afirmou que, ao chegar ao Núcleo de Custódia do Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia (CPP), na quarta-feira 22, o suspeito quis manifestar certo poderio diante dos outros detentos: “Conforme situação repassada pelos agentes prisionais, ele disse que mataria lá dentro como matou aqui, mas foi retaliado na mesma hora pelos demais presos e não causou mais problemas”.
Para o delegado, isso mostra consciência por parte do criminoso, que chegou a confessar 39 mortes, mas já começou a negar algumas. Em um segundo depoimento, feito na semana passada, sob nova defesa, Tiago só assumiu a morte de 29 pessoas, entre mulheres e moradores de rua. “Ao lado da nova defesa, ele negou cinco mortes, não quis se manifestar a respeito de quatro, e um dos crimes ditos por ele não foi consumado.”
Especialista duvida que Tiago da Rocha seja um assassino em série
Uma das maiores especialistas em assassinos em série do país, a criminóloga Ilana Casoy, embora não se pronuncie profundamente sobre o caso do suposto assassino em série de Goiânia, já teceu alguns comentários acerca deste que pode ser o pior criminoso já preso em Goiás. Segundo ela, a classificação de “assassino em série” pode ser relativizado no caso de Tiago, visto que ele parece se encaixar em outra categoria: a do spree killer.
Este seria um assassino impulsivo. A importância na diferenciação, de acordo com a criminóloga, se dá pelo fato de que, de posse dessas informações, é possível interrogar e buscar provas melhor, pois se pode entender de maneira mais profunda a relação entre o assassino e sua vítima. O serial, mesmo que não conheça a vítima, constrói um script que deve ser seguido. O spree não. É como se a vítima estivesse no lugar errado, na hora errada. Ele é comandado pela vontade.
As características dos grandes assassinos

A humanidade já presenciou o surgimento e a queda de vários “serial killers”, termo em inglês para assassinos em série. Esse tipo de criminoso é caracterizado por cometer uma série de homicídios com vítimas que seguem um mesmo perfil e são mortas sem razão aparente. Os assassinatos ocorrem com um intervalo de tempo entre eles e só param de ocorrer, geralmente, quando o autor é preso ou morto.
De acordo com especialistas, esses assassinos começam a agir entre 20 e 30 anos, escolhendo sempre indivíduos mais fracos e que se encaixam em algum tipo de estereótipo. No geral, alguma “lembrança” da vítima sempre é levada por seu algoz. Os criminosos costumam se sentir superiores, espertos e, em sua autoconfiança, muitas vezes, traçam jogos com a polícia.
Outra característica desse tipo de pessoa trata de sua evolução. Com a execução dos crimes, é comum que o modus operandi do assassino se aprimore, dada a experiência adquirida com os assassinatos anteriores. Isso tanto dificulta o trabalho de investigação da polícia quanto o torna possível, uma vez que o criminoso começa a ficar mais audacioso. Porém, no Brasil, conta-se com um fato curioso: a criminóloga Ilana Casoy diz que a polícia brasileira tem dificuldade em aceitar a possibilidade de um assassino em série. “Isso já aconteceu inúmeras vezes no passado, com consequências nefastas”, afirma ela na introdução de seu livro “Serial killers: made in Brazil”.
Ela conta que em outros países, analisando o modus operandi, o motivo ou a falta dele, a assinatura do crime e reconstrução da sequência dos atos, é possível mobilizar rapidamente uma equipe de psicólogos e psiquiatras forenses, médicos legistas e profilers, que, juntos, conseguem diminuir o número de suspeitos e traçar estratégias eficientes na investigação.
A reportagem procurou o psicanalista Marcos Antônio Ribeiro Moraes, professor do Departamento de Medicina da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO), para saber mais a respeito do comportamento de assassinos seriais, que, geralmente, possuem características de psicopatia, isto é, certos transtornos mentais. Mas é importante dizer que quadros de psicopatia nem sempre levam o indivíduo a ser um assassino em série, uma vez que nem todos os psicopatas chegam sequer a matar alguém.
Moraes aponta que, em relação à psicopatia, existem variações de indivíduo para indivíduo, sendo que os casos mais frequentes são em homens, embora também existam mulheres psicopatas.
“Os sinais e sintomas mais típicos são: frieza emocional, ausência de culpa ou remorso; crueldade com seus semelhantes ou animais; mentiras frequentes, pautadas por uma fusão entre ilusão e realidade; ausência de culpa, arrependimento ou remorso, ou seja, sempre a responsabilidade por um erro é do outro; manipulação; egoísmo, prejuízo da noção de alteridade, em que o resto do mundo não interessa, o que, por sua vez, aponta para uma falha primária na constituição do ‘eu’ desses indivíduos e, consequentemente, a uma tendência ao ensimesmamento narcísico, à vaidade e ao isolamento; além disso, há também a impulsividade”, diz.
Em histórias de assassinos seriais sempre são relatados certos descontroles emocionais e sexuais. De que forma isso está ligado com atos de extrema violência, como assassinatos?
Cada caso deve ser analisado em suas singularidades, gerando diagnósticos diversos, o que predomina, antes de tudo, não é o descontrole emocional, mas a ausência de investimento emocional, o que leva à predominância de uma expressão sexual com características impulsivas e primitivas.
Raiva em excesso em um indivíduo é um problema que deve receber atenção mais de perto?
Na verdade todos os sinais e sintomas descritos anteriormente podem estar sinalizados em um indivíduo desde a sua infância e merecem atenção. Não seria correto diagnosticar crianças e adolescentes como psicopatas, mas é importante considerar os sinais de transtorno de conduta. O período privilegiado para a estruturação do “eu” de um indivíduo são os primeiros 18 meses de seu desenvolvimento, que concederão desdobramentos para o conjunto dos seus primeiros cinco anos de vida. A partir daí, as bases estão lançadas para o desenvolvimento da interação com o outro, da sexualidade e estruturação de seu aparato psíquico, processo que se caracteriza por uma progressiva passagem do autoerotismo — em que a energia libidinal é centrada em um corpo ainda fragmentado —, ao narcisismo primário, quando essa energia toma como objeto o próprio “eu” do indivíduo, passando por uma condição de narcisismo secundário, na qual o investimento libidinal se dá por via de um investimento no outro, na expectativa de um retorno libidinal. Neste percurso, é de suma importância o papel dos pais, como função simbólica, garantindo reservas de afeto, de limites e de interdição. Essas condições são necessárias para fundamentar a interação eu–outro, bem como na função de observadores, atentos aos sinais e comportamentos, tais como a crueldade com animais, mentiras exageradas, manipulação, frieza, indiferença ou isolamento, entre outros.
Por que os familiares de pessoas com transtornos extremos e que cometem crimes como assassinatos, geralmente não percebem ou desconfiam a prática de tais crimes?
Não são somente os familiares, mas também amigos e colegas de trabalho, ou mesmo uma equipe de recrutamento de recursos humanos. Esses sinais e sintomas podem se confundir com características individuais da pessoa. Para os pais e familiares, às vezes, assumir limites ou transtornos de um ente querido demanda encarar uma ferida narcísica e, até mesmo, a elaboração do luto de uma idealização de um filho ou familiar.
A mídia exacerbada cobrindo o caso pode gerar ainda mais vaidade sobre o suposto criminoso?
Há sempre esse risco.
Qual a forma de lidar com um assassino em série preso? Existe tratamento para esses transtornos mentais?
A partir do que encontramos na literatura, não podemos fazer muitas promessas de bons prognósticos, no que se refere, sobretudo, à intervenção em pacientes adultos, por isso a importância de diagnósticos e intervenções realizadas ainda na infância, quando constatados os sinais de transtorno de conduta. Mas acredito que, independente da idade do paciente, toda intervenção é uma aposta no sujeito.
Os criminosos seriais do Brasil

Em seu livro “Serial killers: made in Brazil”, cuja edição definitiva foi publicada neste ano, a criminóloga Ilana Casoy descreve a história de sete assassinos em série: José Augusto do Amaral, o Preto Amaral — considerado o primeiro criminoso do tipo no Brasil, atuou em São Paulo entre 1926 e 1927; Febrônio Indio do Brasil, o Filho da Luz — cometeu os assassinatos em 1927, no Rio de Janeiro; Benedito Moreira de Carvalho, o Monstro de Guaianases — cometeu crimes contra 29 vítimas, entre 1950 e 1053 em São Paulo, todas mulheres e crianças, das quais 22 eram menores de idade. Dez das vítimas foram estupradas e assassinadas.
O quarto caso analisado foi o de Francisco Costa Rocha, o Chico Picadinho — matou duas mulheres em um intervalo de dez anos, entre 1966 e 1976, em que a primeira teve o corpo dilacerado e a segunda foi esquartejada; José Paz Bezerra, o Monstro do Morumbi — matou dez mulheres em São Paulo e no Pará; Marcelo Costa de Andrade, o Vampiro de Niterói — sodomizou e assassinou 13 meninos com idades entre 5 e 13 anos; e Pedro Rodrigues Filho, o Pedrinho Matador — responsável por mais de 70 assassinatos.
Desses, Ilana entrevistou três — Francisco Rocha, Marcelo de Andrade e Pedro Rodrigues. “A importância das entrevistas com criminosos é inegável”, diz Ilana. “Conhecer suas histórias, o contexto de sua criação, sua crença, seus pensamentos. Tentar desvendar o caminho que a violência faz dentro do ser humano.” Ela relata que, após ter entrevistado dez assassinos em série, concluiu que é difícil tirar informações deles, sendo preciso construir seu perfil psicológico para, assim, estabelecer uma estratégia para que a entrevista seja eficiente. Além disso, “as entrevistas têm, em média, duração de quarenta horas e sempre são realizadas com a supervisão de um psicólogo forense.”
Descreveremos algumas das histórias narradas por Ilana em seu livro.
Pedrinho Matador

Pedro Rodrigues Filho, o Pedrinho Matador, é ainda considerado o maior assassino em série do Brasil. Em seu histórico constam “oficialmente” que ele assassinou 71 pessoas, quarenta delas dentro do sistema penitenciário. Entretanto, ele próprio calcula já ter matado mais de cem pessoas, incluindo aquelas mortas em meio às rebeliões das quais participou.
Filho mais velho de oito irmãos, Pedrinho foi criado por pais e avós, cada um com sua influência bem definida. Pedro e Manuela, os pais, estavam constantemente envolvidos em brigas, o que fez com que a violência doméstica fosse uma realidade próxima de todos os que viviam na casa. O principal motivo das brigas era o ciúme do pai, que chegou a assassinar a esposa, anos depois.
Contudo, Pedrinho também sofreu grande influência dos avós. Seu forte vínculo com armas, por exemplo, veio do avô, que o ensinou a usá-las com maestria. Ao encargo da avó, que era umbandista e iniciou o neto na religião, ficou ensinar como temperar sangue para agradar o paladar. Dessa forma, Pedrinho tinha o hábito de tomar sangue desde os 10 anos. Dizia ser bom para a saúde.
E nesse ambiente familiar acostumado com a violência física, não tardou que Pedrinho cometesse seu primeiro ato extremo: quando seu pai foi mandado embora do grupo escolar em que trabalhava, acusado de roubar merenda. Esse fato causou uma grande repercussão na família, que, sem o emprego do pai, começou a passar por dificuldades. Por consequência dessa situação, Pedrinho se retirou para o “mato” por mais de um mês para caçar macacos, dos quais vendia a pele para ajudar no sustento da família.
Após esse período de isolamento, aos 14 anos, Pedrinho voltou ao convívio familiar preparado para vingar a situação em que sua família havia se envolvido. Roubou algumas armas do avô e matou primeiro o subprefeito da cidade, a quem culpou pela demissão do pai, e depois o outro vigilante da escola em que o pai trabalhava e que era, segundo Pedrinho, o responsável pelos roubos de merenda atribuídos ao pai.
Depois disso, ele fugiu para Minas Gerais, onde logo se envolveu com uma traficante, cujo marido havia sido assassinado há pouco tempo pela polícia. Com o relacionamento, Pedrinho subiu rápido na hierarquia do tráfico, o que casou ciúmes e levou a mais assassinatos. Quando ficou sabendo que os outros homens do grupo de Botinha — a mulher com quem estava envolvido — planejavam matá-lo, se preparou: “Fui chamado para trazer um carregamento com os quatro rapazes, esperei eles cochicharem e matei todos. Dois morreu na hora e os outros dois no caminho do hospital [sic]”.
Segundo Ilana, Pedrinho costumava vestir vermelho para cometer o homicídio e preto para ir ao velório ou enterro da vítima. O motivo era, em grande parte, vingança. A maior parte dos assassinatos cometidos por Pedrinho foi dentro do sistema penitenciário: mais de quarenta, de um total de 71 mortes. Sua primeira morte dentro da cadeia é narrada pela autora:
“Ficou na inclusão pelo período determinado e, assim que foi encaminhado ao convívio, ouviu: ‘Carne nova pra mim hoje…’. Tratava-se de um temido criminoso que cumpria sua pena e que abusava sexualmente de todos os rapazes recém-chegados à Casa de Detenção. Pedro foi designado para viver na cela desse bandido, odiado por muitos e temido por todos. Logo na primeira noite, para escapar do abuso, esperou que ele dormisse e esmagou sua cabeça com uma espécie de paralelepípedo que encontrou no banheiro. Relatou o fato para o carcereiro, avisou que tiraria a vida de quem mexesse com ele. Ganhou imediatamente o respeito de todos”.
Quem o apelidou de Pedrinho Matador foi a imprensa, ao relatar que era um dos maiores assassinos dentro do Sistema Penitenciário de São Paulo. Chegou a ser “usado” para conter confusões em certa ala da prisão, visto que ninguém queria se indispor com ele.
Mas, voltando ao conceito de assassino em série descrito anteriormente, fica a pergunta: Pedrinho Matador, considerado o maior assassino em série do Brasil, é, de fato, um? A questão é esclarecida pela própria Ilana: “É possível discutir se ele é um assassino em série ‘diferente’, uma vez que a maioria dos criminosos deste tipo tem o desejo de matar sem motivo aparente e, a partir de certo momento da vida, passam da fantasia para a execução. Pedro, de forma diferenciada, comete o primeiro homicídio alicerçado num código particular de honra e justiça; só então se insere em grupo criminoso onde percebe que tem prazer nesse tipo de ação”.
Histórico social-familiar é importante na formação do indivíduo
É comum atribuir doenças mentais aos assassinos em série. Porém, a história de Pedro Rodrigues, o Pedrinho Matador, mostra que a formação social-familiar do indivíduo tem uma grande influência naquilo que a pessoa se tornará. Ilana retrata:
“Na infância, por consequência da pobreza, não frequentou escola, não sabia o que era um médico, não teve absolutamente nenhum contato com o Estado. Aprendeu ali, entre os seus, os códigos de moral e ética que regeram sua vida. Todos em sua família mataram ou quase o fizeram. A violência física era vivida ou assistida todos os dias. A revolta sempre foi presente em suas emoções”.
A violência física relatada pela pesquisadora como presente na vida de Pedrinho pode ser vista em seu próprio relato: “Minha mãe brigou com meu pai, eu já tava pra nascer, meu pai deu uma ‘pesada’ [pontapé] na barriga da minha mãe e aí eu nasci com a cabeça quebrada, tem a cicatriz até agora, pode ver [sic]”. A respeito da revolta que sentia, Pedro conta que, desde pequeno, sempre sentiu uma revolta intensa dentro de si. Odiava, sobretudo, os ricos e ateava fogo em seus carros e casas sempre que tinha uma oportunidade.
Portanto, nem sempre a violência extrema praticada por assassinos em série provém de transtornos ou desvios mentais.
Alguns dos assassinos em série brasileiros
José Augusto Amaral (Preto Amaral)

Primeiro de janeiro de 1927: “Antônio Lemes, 15 anos e compleição franzina, estava de folga do trabalho. Era operário em uma fábrica de tecidos. Saiu de casa pedindo à mãe que guardasse seu almoço. Lemes disse que chegaria mais tarde, pois iria fazer um serviço extra para uma senhora no bairro da Penha.
“Amaral, aproveitando o feriado, apostava dinheiro nos jogos de azar que se davam nas proximidades do Mercado Central. Logo avistou o garoto entre outras crianças que brincavam por ali. Levantou-se e convidou o garoto para almoçar com ele no Restaurante Meio-Dia, como fazia habitualmente. O rapaz aceitou.
“Comeram, beberam vinho e Amaral ofereceu 2$000 (dois mil réis) a ele para que o acompanhasse até a Penha. Como Antônio conhecia bem o bairro e tinha mesmo que fazer um serviço por lá, concordou de bom grado.
“Os dois seguiram para o largo do Mercado, onde tomaram o bonde. No ponto final da linha, seguiram a pé pela estrada de São Miguel. De vez em quando paravam em bares pelo caminho, para que Amaral tomasse uns tragos.
“Na altura do Km 39, Amaral pegou um atalho da estrada recém-construída. Quando se afastaram o suficiente, enlaçou fortemente o rapaz com braço esquerdo, esganando-o com a mão direita. Antônio, pego de surpresa, não resistiu. Apenas empalideceu e desmaiou. Sem querer arriscar, Amaral enrolou um cinto de brim branco de 85 cm de comprimento no pescoço de sua vítima e apertou-lhe com máxima força. Depois, jogou-o no chão, tirou-lhe a calça, rasgou-lhe a camisa e fez sexo com o cadáver. Fugiu.
“O corpo de Antônio Lemes foi encontrado no dia seguinte. Ao começarem as investigações na área do Mercado, perto de onde o rapaz morava, alguém disse tê-lo visto na companhia de um homem negro. A polícia, sem perder tempo, começou a investigar todos os homens negros com antecedentes e pederastia [prática sexual entre um homem e um rapaz mais jovem], uma vez que o garoto havia sido sodomizado. Os jornais também noticiaram o crime com alarde”.
Esse foi o último crime associado a José Augusto Amaral, o Preto Amaral, nascido em agosto de 1871 em Conquista, Minas Gerais. Era filho de escravos africanos do Congo e Moçambique, que haviam sido comprados pelo visconde de Ouro Preto. Analfabeto, inteligente, tocava instrumentos musicais e com excelente memória, Amaral morou em Minas Gerais, Espírito Santo, Bahia, Ceará, Amazonas, Pará, Bolívia, Argentina, Uruguai, Rio Grande do Sul e, finalmente, São Paulo.
Alegava ter tido alucinações depois de cometer seu primeiro crime e jamais mostrou arrependimento sobre nenhum de seus atos. Além de Antônio Lemes, foi confirmada a responsabilidade de Amaral pelas mortes de mais duas crianças e um rapaz. Porém em dezembro de 1926, ano em que o assassino começou a agir em São Paulo, outros cinco rapazes desapareceram e nunca tiveram seus casos solucionados.
Condição psiquiátrica
Doente mental. Enquanto estava preso à espera de julgamento, José Augusto Amaral foi submetido a exames físicos e psiquiátricos. Os médicos concluíram que ele era sádico, necrófilo e pederasta. Além disso, sofria de problemas sexuais devido ao tamanho descomunal de seu órgão genital. Era andarilho, isto é, solitário e sem endereço fixo. Tinha antecedentes criminais e desertou de várias instituições militares. Os assassinatos pararam após sua prisão.
Febrônio Indio do Brasil (O Filho da Luz)

Rodeado por histórias bizarras, Febrônio Indio do Brasil, vulgo Filho da Luz, levava a vida perambulando pelas ruas do Rio de Janeiro, no fim da década de 1920, com a missão “divina” de tatuar meninos para lutar contra o demônio. Ele próprio tinha uma grande tatuagem que contornava seu tórax — DCVXVI, que significava, segundo ele: Deus, Caridade, Virtude, Santidade, Vida e Ímã da Vida, um talismã para aqueles que o carregassem no corpo.
Febrônio foi acusado de vários crimes sexuais contra rapazes e crianças, tendo efetivamente assassinado dois: Alamiro José Ribeiro, de aproximadamente 20 anos e João Ferreira, o Jonjoca, de 10 anos. O primeiro foi morto no dia 13 agosto de 1927 e o segundo 16 dias depois, no mesmo lugar: Ilha do Ribeiro, no Rio de Janeiro. Os dois foram atraídos para o local da mesma maneira. Aliciados com promessas de trabalho.
No caso de Jonjoca, Febrônio enganou seus pais com uma promessa de trabalho para a criança. Quando José e Beatriz, os pais, descobriram que foram enganados, já era tarde. Enquanto o casal tentava identificar o raptor de seu filho na delegacia, “Febrônio o levava para a Quinta da Boa Vista, enchendo o menino com promessas que nunca cumpriria. Entraram pelas matas do largo do França e, já isolados, prometeu a Jonjoca um terno, caso ele se deixasse ser tatuado no peito. Sem muita alternativa e com medo do facão que o homem carregava na cintura, o garoto permitiu que ele desenhasse várias letras em seu peito com a ajuda de uma agulha, linha e tinta vermelha. O processo foi muito doloroso, mas o menino pensava que assim conseguiria sair vivo do que já se mostrava ser uma enrascada.
“Depois da sessão de tatuagem, os dois tomaram o bonde da linha Itapiru e saltaram na rua Haddock Lobo. Mais um bonde e seguiram a pé para a ilha do Ribeiro, local agora bem familiar para Febrônio. Chegaram já de noite e, antes que Jonjoca percebesse o que acontecia, Febrônio o agarrou pelo pescoço, apertando-o até que o último fio de vida se esvaísse. Depois, despiu o menino, recolheu sua roupa numa trouxa apertada e jogou-a longe do corpo.”
Febrônio foi preso e levado a julgamento. Sua defesa foi realizada pelo advogado maranhense Letácio Jansen, que fez várias críticas ao processo, tendo sua tese de defesa centrada no fato de seu cliente ser doente mental. Assim, o Filho da Luz foi absolvido no processo, mas recolhido como o primeiro paciente do Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro, criado em função de seu caso. Ele ficou “preso” no local de 6 de junho de 1929 a 27 de agosto de 1984, quando morreu em razão de uma enfisema pulmonar.
Condição psiquiátrica
O laudo médico de Febrônio do Brasil, à época de sua prisão, deu conta dos seguintes relatos — o trecho foi adaptado pela reportagem para a língua portuguesa atual: “O que impressiona na psicologia de Febrônio é a sua grande insensibilidade moral. A longa permanência deste acusado no Manicômio Judiciário deixou bem à mostra esse fato. As suas façanhas como criminoso são contadas por ele numa enorme demonstração de alegria, rindo-se das suas vítimas, vaidoso, talvez, de suas artimanhas. Toda a sua vida tem sido, como se sabe, uma série ininterrupta de reações antissociais. Ele roubou, seduziu, matou, lançando mão de todos os seus ardis; muda constantemente de nome; a cada momento falseia a verdade, sendo difícil saber quando ele é exato”.
Francisco Costa Rocha (Chico Picadinho)

Filho ilegítimo de um poderoso exportador de café do Espírito Santo, Francisco Costa Rocha nasceu no dia 27 de abril de 1942, rejeitado pelo pai e distante da mãe, que, doente, precisou deixar o filho por dois anos ao cuidado de estranhos, onde foi maltratado e quase perdeu uma das mãos depois de levar uma facada. Não reconheceu a mãe quando esta o foi buscar. Sofreu de enurese noturna — emissão involuntária de urina — até os seis anos de idade. Seu nariz sangrava constantemente, sofria de asma e de pavor noturno.
Na adolescência, sempre era o menor da turma com a qual andava e, por isso, nas “brincadeiras”, entre pauladas e pedradas, quase sempre acabava subjugado para trocar carinhos sexuais. Acabou se acostumando. Aos 15 anos tentou ser marinheiro, mas a mãe não deixou. Mudou-se para o Rio de Janeiro aos 16 anos com a mãe e o padrasto e, ao completar 18, alistou-se na Aeronáutica, logo pedindo transferência para São Paulo. Por problemas disciplinares, saiu. Mesmo motivo pelo qual não conseguiu ser policial militar.
Acabou se tornando corretor de imóveis, devido ao benefício de não ter horário fixo. Virou boêmio e na boemia conheceu sua primeira vítima, da qual não se lembra direito. O corpo de Margareth Suida, de 38 anos, foi encontrado na banheira do apartamento de Francisco, dilacerado, embora não esquartejado como o de sua segunda vítima. Mais tarde, ele contou que a matou em um impulso, estrangulada. Ele foi preso por esse crime e cumpriu pena de oito anos, sendo libertado por comportamento exemplar.
No mesmo ano em que foi solto, Francisco cometeu outros crimes de cunho sexual e conheceu sua segunda vítima fatal, Ângela de Souza Silva. Ela foi estrangulada, mas, desta vez, durante o ato sexual — Francisco gostava de morder suas várias parceiras, além de apertar com frequência seus pescoços. Exagerou na dose e acabou cometendo assassinato. Com medo de ser preso novamente, esquartejou o corpo.
Devido às características de seus crimes, ficou conhecido como Chico Picadinho.
Condição psiquiátrica
Considerável semi-imputável, isto é, não tinha plena consciência quando cometeu seus crimes. É curioso o relato de Ilana Casoy, que entrevistou Francisco Rocha entre 2003 e 2004, na Casa de Custódia de Taubaté, em São Paulo. Ela narra que esperava encontrar um “monstro sinistro”, mas acabou se deparando com “um ser humano que tem absoluta consciência de suas limitações, que não entende o descontrole de seus atos, que busca uma explicação para eles e é dono de um intelecto preservado. […] Sua linguagem é clara, as frases são bem construídas e sua bagagem cultural é enorme. Mas não pude deixar de notar a incapacidade afetiva, a falta de empatia e o extremo esforço intelectual para cobrir esse lapso.”