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Vermeer: o pintor do silêncio ou a metafísica do momento

 A simplicidade e facilidade que emana da sua obra se deve a um trabalho em filigrana, os pormenores estão trabalhados até à exaustão e a aparente banalidade temática, no fundo, esconde uma grande profundidade estética e humana [caption id="attachment_95278" align="aligncenter" width="620"] "Moça com brinco de pérola", um dos mais famosos quadros de Johannes Vermeer
[/caption] Frank Wan Especial para o Jornal Opção Dizia-se que a Holanda se banhava numa alegre e feliz mediocridade, os pregadores protestantes, sempre virulentos contra a posse de bens, iam ajudando a desnudar as casas e os lugares públicos. O protestantismo bom:  o iconoclasta, o anti-arte, anti-imagem. Dizia-se ainda que os holandeses viviam franciscanamente despojados. De alguma forma, os artistas estragam sempre alguma alegre festa burguesa: os pintores mostraram que essa imagem que se tinha dos holandeses é falsa. As igrejas foram vítimas de iconoclastia, mas as casas particulares, os pintores holandeses deixaram esse testemunho para a posteridade, mantinham uma cornucópia visual. A explosão de cor, que antes ficavam apenas nos domínios da corte e do clero, tinha-se transferido para as habitações. A pintura de temática religiosa vai-se transferir paulatinamente para as “cenas do quotidiano”, uma espécie de reality show avant la lettre, em que os retratados são as pessoas comuns e as cenas de gestão normal da vida corrente se tornam o foco do olhar dos pintores. Porque gostamos tanto dos “pintores holandeses”? As respostas a esta pergunta são diversas e são dadas de diferentes perspectivas. Às grandes cenas abertas de conjunto da pintura anterior, os holandeses respondem com um foco nos detalhes em detalhe. O zoom do detalhe confere maior proximidade, humanidade e identificação pessoal ao espetador.  A pintura holandesa é humana, graciosa, leve, aparentemente simples e, quase, conseguimos ver a nós mesmos nas cenas retratadas.  Temos uma experiência estético-solidária: repare-se que é irresistível ver um quadro desses e não nos imaginarmos vivendo naquela época, com aqueles trajes, naquele local e sentimos ainda que, se isso acontecesse, seríamos felizes – como na audição de grande parte de Mozart, sentimos sempre abrir-se uma bolsa de serenidade dentro de nós  logo nos primeiros compassos. Esta experiência está bem retratada na aparente boutade de Woody Allen “quando ouço Wagner, me dá vontade de invadir a Polônia”. Os objetos do quotidiano levam-nos de volta à natureza, mãe de todas as coisas. Johannes Vermeer (1632-1675) é acompanhado na sua época por Gerard Dou, Nicolas Maes, Jan Steen, Gerard Ter Borch, Gabriel Metsu, Pieter De Hooch. A estranha sensação de suspensão do tempo em Vermeer vem dada pela visão  tríptica: troca de olhares, circulação do ar e fluidez da luz. O pintor fixa a pintura num ponto e, com isso, educa-nos o olhar: vemos tudo “a partir” de um ponto. [caption id="attachment_95282" align="alignleft" width="300"] "Mulher de azul lendo uma carta"[/caption] Note-se que temos sempre a sensação de estar a ouvir uma conversa sem dela ser participantes: Vermeer transforma-nos em “voyeurs”. Os retratados são graves e “vaporosos” e nós sentimos apenas a vibração que  exala  destes dois extremos. Parece que surpreendemos pessoas comuns num momento inopinado e passamos a saber um segredo grave sobre a vida delas, como em tudo na vida, um fato privado posto a público é sempre, de alguma forma, comprometedor. A vida dos retratados fica “comprometida” pela captura do nosso olhar: o que pesa de tão importante a mulher da balança? O que diz a carta que a jovem vestida de azul lê? Porque bebe vinho, àquela hora, aquele casal? Eis a magia de Vermeer: capta um momento  e, simultaneamente, todo o ritmo da vida pessoal. Entre duas capturas estéticas torna-nos participantes da cena, cúmplices, invasores mesmo. Sobre a vida pessoal de Vermeer, para além de dados administrativos,  mais nada se sabe. Quando tentamos interrogar a sua obra, Vermeer responde-nos pintando o silêncio. Um silêncio em filigrana, leve como o algodão e suave como uma música de câmara. Hegel, referindo-se aos pintores holandeses da época, afirma que estes pintaram aquilo que era totalmente idiossincrático de cada objeto e situação, “o grau de verdade e de perfeição” é inultrapassável. Para o filósofo alemão, os objetos abandonam-se despreocupadamente o que permite captar o momento ideal. É, na sua belíssima expressão, “o Domingo da vida que tudo iguala e que afasta toda a ideia de mal”. Schopenhauer destaca a captura do tempo. A dita “captura”, segundo Schopenhauer,  dá-se através de uma “redução” do tempo que corre a um único momento. Ao surpreender esse momento, os holandeses dão-nos acesso, por indução, a todo o tempo. Uma vez que, para Schopenhauer, o tempo “em movimento”, passe o pleonasmo, não é capturável. O ato de escrever uma carta, e esta em si, depende totalmente da intenção e conteúdo e varia diretamente com o momento em que aquele que a escreve, bem como o seu destinatário, vivem, basta “deslocar”  ligeiramente o tempo para que um texto mude de sentido. Numa época em que a troca de informação é substancialmente mais lenta, qualquer carta desencadeia um quadro de sensações que perdurarão no tempo – Vermeer procura  espargir o ar circundante com as sensações que decorrem da leitura. É todo esse conjunto que Vermeer procura captar. Tenho sempre a sensação que os leitores de Vermeer não leem cartas, mas releem cartas: aquele ar concentrado de quem procura reverificar se o que leu é o que está a pensar. Élie Faure, na sua histórica “História da Arte”, chama a Vermeer o pintor holandês  que tem todas as qualidades médias de todos os outros. Mais que Rembrandt, é bem possível que Vermeer seja a tal “média perfeita” por diversos motivos, alguns óbvios, que não cabem neste espaço. Faure afirma brilhantemente que Vermeer “não tem imaginação”, limita-se a aceitar a vida totalmente como ela é, despoja-se de tudo o que se interpõe entre ele e o objeto e rende-se-lhe, limitando-se a trazê-lo aos nossos olhos. Para Faure, Rembrandt e Vermeer são dois polos da estética da época. Defenderemos, noutro trabalho de caráter diferente do presente, a escandalosa tese de que Rembrandt “não é holandês”. [caption id="attachment_95283" align="alignleft" width="300"] Fluidez da luz observável no quadro "Oficial e moça sorridente"[/caption] Não posso deixar de mencionar a tese famosa e profunda de Théophile Thoré, segundo a qual, Vermeer não pinta objetos, pinta a luz que passa, isto é, pinta quase sempre a luz dos fins de dia e é por isso que uma estranha “sensação de tempo” exala dos quadros. Todos os quadros são um dia e a eternidade é a soma dos dias finitos e respectivos momentos de luz. Remeto os leitores para outro artigo meu mais técnico onde procuro dar conta da listagem dos quadros “autênticos” de Vermeer. Para não maçar os leitores aqui, direi apenas que é consensual que existem trinta e quatro quadros “autênticos” de Vermeer, apenas vinte e três estão assinados e três perfeitamente datados. Tudo o que sobra é discutível. Pode-se dizer que Vermeer é um dos maiores mistérios da história da pintura:  há poucos pintores sobre os quais se saiba tão pouco. Todo o escritor tem sempre uma concepção/visão do que é a Literatura e a sua obra é o resultado dessa visão: ou se inscreve numa dada linha e a sua obra respira a sua escola, ou é um pioneiro que procura desbravar na Literatura um novo caminho ainda não percorrido – mutatis mutandis, passa-se o mesmo com os pintores. A pintura, no entanto, é muito mais limitadora: tem um caráter mais artesanal, o trabalho e aprendizagem são feitos em coletivo e, muitas vezes, a própria produção é coletiva ou em ambiente coletivo. Espantosamente, não se sabe quem foi o mestre de Vermeer e nem se consegue perceber qual é a sua concepção de pintura. Esse é, talvez, um dos grandes segredos de Vermeer: não tem qualquer concepção do que é a pintura e limita-se a captar momentos com técnicas “normais” para a sua época. Vermeer não tem mestre, não tem discípulos, não mantêm um diário como Delacroix, nem escreveu cartas como Van Gogh e nem sequer pintou um autorretrato. A ideia que o personagem da esquerda do “De Koppelaster” (Gemäldegulerie Alte Meister, Dresde, Alemanha), traduzido normalmente como “L'entremeteuse” e “The procuress”, é um autorretrato é muito frágil para os especialistas, mas muito agradável ao grande público. Em grande parte, a ideia fez escola com as publicações de André Malraux. Não só não é um autorretrato, como, provavelmente, nem o quadro é de Vermeer. A gigantesca maioria dos especialistas recusa a autenticidade do quadro liminarmente,  a ser autêntico, como afirma, por exemplo, Pieter Svillens, seria mais um estudo-ensaio-tentativa do que “uma obra”, mas como em tudo, e sem entrar em detalhes técnicos,  há, no outro extremo, nomes como o de Eduard Trautscholdt que afirmam que não só é autêntico, como é mesmo o início do verdadeiro e mais pujante Vermeer. [caption id="attachment_95285" align="alignleft" width="300"] Outro dos quadros mais famosos de Vermeer, "Moça com chapéu vermelho"[/caption] Vermeer cai praticamente no esquecimento e vai ter de esperar pelos seus dois salvadores: Téophile Thoré e  Marcel Proust. Até ao início do século XIX, público e diktat acadêmico, faziam prevalecer as cenas grandiosas, cenas históricas e a arte de temática religiosa. Vermeer reaparece pela mão de Etienne-Joseph-Théophile Thoré, conhecido como William Bürger, num artigo da famosa revista “Gazette des beaux-arts”. Teóphile Thoré era advogado e crítico de arte, fundou o “La vrai République” (A verdadeira república) que foi imediatamente interditado pelo governo do general Cavaignac. Fruto de sangrentas perseguições, Téophile Thoré refugiou-se em Bruxelas e é aí que toma o pseudónimo de William Bürger. Só reentra em França em 1859. Théophile Thoré desde o início da carreira de crítico de arte tinha sempre defendido o “realismo” em pintura, as suas grandes referências eram Jean-François Millet e Gustave Courbet. Em 1866, numa série de três artigos brilhantes publicados na “Gazette des beaux-arts” dá conta de (re)descobreta de Vermeer. Thoré tinha visitado La Haye em 1842 e, através de um catálogo ocasional, vê o totalmente desconhecido nome de Vermeer. O quadro que está em exposição é o “Gezicht op Delft” (Vista de Delt). Em coleções particulares Thoré tem a oportunidade de ver o agora famoso “a leiteira”. Thoré dedica grande parte da sua vida à procura de obras de Vermeer. Na época, muitas obras se confundiam com as obras de Pieter de Hooch e Théophile Thoré tenta separar as águas. Thoré atribui setenta obras a  Vermeer, mas as técnicas científicas desenvolvidas posteriormente e as técnicas de análise contemporâneas extremamente sofisticadas fazem esse número cair para uma lista de quarenta obras. É a Thoré que se deve a descoberta de quase dois terços das obras de Vermeer.  Pode-se dizer que o mundo deve Vermeer ao extraordinário Théophile Thoré. [caption id="attachment_95286" align="alignleft" width="300"] Marcel Proust, um dos "salvadores" de Vermeer[/caption] O outro “salvador” de Vermeer é Marcel Proust. Vermeer não é apenas uma referência estética para Marcel Proust, Vermeer está no centro de toda a concepção Proustiana de arte e do que é um escritor, chegando mesmo Proust a lançar a boutade, através de Bergotte, “escrever como Vermeer”. Não me alongo aqui sobre o assunto e remeto o leitor interessado neste eixo Vermeer-Proust para o meu ensaio no nº 2 da revista Scripsi “Proust e Vermeer”. A fama de Vermeer pelo mundo é também devida, em grande parte, à posição maior que ocupa a La Recherche du Temps Perdu [Em Busca do Tempo Perdido] na literatura universal. Relembro que um dos personagens principais, Swann, é, na obra, um especialista em pintura e que, durante a acção, escreve um trabalho sobre Vermeer. A presença de Vermeer é total se nos lembrarmos que Bergotte, a grande referência de Marcel,  personagem da Recherche, morre contemplando  a “Vista de Delft”. Se é verdade que, na literatura, a facilidade de leitura é proporcional ao trabalho do autor, em Vermeer também se pode dizer que a simplicidade e facilidade que emanava da sua obra se deve a um trabalho em filigrana, os pormenores estão trabalhados até à exaustão e a aparente banalidade temática, no fundo, esconde uma grande profundidade estética e humana. Frank Wan vive em Portugal. É ensaísta, poeta, tradutor e professor

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Laurence Sterne: o arauto do caos

O sucesso absoluto de "Tristam Shandy" pode ser explicado pela nossa necessidade inerente de ver o mundo às avessas, de liberar, para usar uma expressão do professor Luiz Costa Lima, o imaginário de suas amarras morais e temporais [caption id="attachment_94736" align="aligncenter" width="620"] Edição de "Tristam Shandy", em nove tomos[/caption] “O mais maleável dos autores, ele também transmite ao seu leitor um tanto dessa maleabilidade. Sim, ele troca inadvertidamente os papéis, e logo é tanto leitor como autor; seu livro semelha um espetáculo dentro do espetáculo, um público teatral ante um outro público teatral. Há que se render incondicionalmente ao capricho de Sterne – podendo-se esperar que ele será clemente, bastante clemente. ” — Nietzsche, “Humano, demasiado humano” Alex Sugamosto Especial para o Jornal Opção Em 1759, um clérigo irlandês chamado Laurence Sterne lançava o primeiro volume daquele que seria considerado por muitos intelectuais e artistas como um dos mais brilhantes e inovadores romances já publicados: “A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy”. Admirado por Nietzsche — que não era lá um sujeito de elogiar muita gente — e Stendhal, Laurence Sterne é conhecido no Brasil por ter sido mencionado no célebre prólogo da quarta edição de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. Segundo Machado de Assis, Sterne influenciou o seu Brás Cubas no uso da forma livre e na temática das viagens. Certamente, Machado se referia ao livro “Uma viagem sentimental” em que o autor irlandês narra viagens — reais e imaginárias — pela França e pela Itália. Livro divertidíssimo e desafiador, “A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy” foi traduzido no Brasil por José Paulo Paes e lançado pela Companhia das Letras (o volume, no entanto, está esgotado há muito tempo e o exemplar usado é vendido a preços altíssimos por livreiros). [caption id="attachment_94735" align="alignleft" width="286"] Laurence Sterne, por Joshua Reynolds[/caption] Mas, afinal, qual é a grande inovação de Laurence Sterne e do que se trata esse romance praticamente desconhecido no Brasil? O enredo elementar do livro é bastante simples: um homem chamado Tristram Shandy narra suas memórias e a origem dos modos e dos haveres, intelectuais e materiais, que adquiriu ao longo da vida. No entanto, essa intenção narrativa é desmontada logo nas primeiras páginas do "Shandy": o narrador inicia sua prosa com uma série de peripécias que vão desmontando a estrutura linear do romance, a organização lógica das memórias e a própria tessitura do sujeito que as enuncia. Não por menos, Laurence Sterne parece ter influenciado, direta ou indiretamente, os experimentos de Joyce e Beckett-- autores que, coincidentemente, também são irlandeses. As artimanhas de Sterne, entretanto, não se restringem apenas aos usos da estrutura do romance. Durante o livro, deparamos como páginas em branco, trechos aleatórios, parágrafos riscados... segundo o próprio Laurence Sterne, um dos capítulos foi suprimido por ser bom demais, o que acabaria prejudicando o equilíbrio geral da obra. No cerne do “Tristam Shandy”, parece habitar aquela centelha que levou Rabelais a parodiar todos os elementos respeitáveis da alta cultura de seu tempo. O próprio título da obra, “A Vida e as Opiniões”, é, na verdade, uma troça com uma certa categoria de livros mui grandiloquentes que eram publicados à época com intuito de disseminar determinadas filosofias morais entre a população letrada. O sucesso absoluto do livro de Sterne pode ser explicado pela nossa necessidade inerente de ver o mundo às avessas, de liberar, para usar uma expressão do professor Luiz Costa Lima, o imaginário de suas amarras morais e temporais. Deixemos que o próprio autor explique seus ensejos:

 “(...) portanto, meu caro amigo e companheiro, se me julgardes algo parcimonioso na narrativa dos meus primórdios,  tende paciência comigo, e deixa-me prosseguir e contar a história à minha maneira: ou, se eu parecer aqui e ali vadiar pelo caminho, ou, por vezes, enfiar na cabeça um chapéu de doido com sinos e tudo, durante um ou dois momentos de nossa jornada, não fujais, mas cortesmente dai-me o crédito de um pouco mais de sabedoria do que a aparentada pelo meu aspecto exterior; e à medida que formos adiante, aos solavancos, ride comigo ou de mim, em suma, fazei o que quiserdes, mas não percais as estribeiras.
Alex Sugamosto é professor de Literatura e consultor na empresa El-Kouba

Programação mais difícil de acompanhar, segundo dia foi de mulheres no palco

Terça-feira (9/5) foi o dia em que seis showcases do evento foram realizados praticamente no mesmo horário, o que reduziu a cobertura a apenas um deles, o que faz parte

Intimismo e densidade emocional marcam abertura do Bananada

Roteiro na primeira noite do festival incluiu o Teatro Sesc Centro com shows de João Lucas e Bruna Mendez, a Rock nas apresentações de Niela e Sarah Abdala e acabou no Retetê

“Pisando nos astros, não tão distraído”: Resenha de PARSONA, de Adriano Scandolara

Tiração de sarro com a poesia parnasiana, o livro do poeta curitibano se revela uma aguda reflexão crítica sobre os limites do experimentalismo pós-moderno, convertido num formalismo que ecoa, de algum modo, o princípio da arte pela arte daquela poesia [caption id="attachment_94625" align="aligncenter" width="620"] Adriano Scandolara, autor do livro de poesias PARSONA[/caption] Emmanuel Santiago Especial para o Jornal Opção Adriano Scandolara, poeta curitibano e tradutor, é autor de um surpreendente livro de estreia, Lira de lixo (Patuá, 2013). Quatro anos depois, vem a público seu segundo volume de poesia, PARSONA (Kotter). Trata-se de uma obra, digamos assim (com medo de espantar os leitores), “experimental”. Scandolara apropria-se dos 35 sonetos da “Via Láctea” de Olavo Bilac — segunda seção de Poesias —, desmembrando-os e os reconfigurando em novos arranjos, que correspondem aos poemas do livro, dividido em cinco partes. Temos, portanto, uma ambígua autoria em que os significantes da poesia bilaquiana adquirem novos significados no contexto enunciativo da nova obra. Ao final da parte quinta, encontramos a seguinte advertência: Na parte primeira de PARSONA (anagrama de “Parnaso”), intitulada “tempo desvairado”, explica-nos o autor: “em que mutilo sem dó os sonetos”. O que temos é uma fragmentação do discurso bilaquiano, restando — como ruínas dos poemas originais — palavras pulverizadas ao longo da página, rompendo-se com a ordem sintática. O novo significado emerge da utilização da parataxe, isto é, da justaposição de morfemas, imprimindo um caráter constelar ao conjunto (o que remete ao título da seção de Poesias dos quais os textos originais fazem parte). Em muitas das peças aqui reunidas, a decorosa sensualidade (às vezes nem tanto) do lirismo da “Via Láctea” converte-se numa caricatura debochada de si mesma devido à ênfase que a montagem empresta à conotação erótica dos termos utilizados por Bilac. Eis que o soneto XIX da “Via Láctea”... Sai a passeio, mal o dia nasce, Bela, nas simples roupas vaporosas; E mostra às rosas do jardim as rosas Frescas e puras que possui na face. Passa. E todo o jardim, por que ela passe, Atavia-se. Há falas misteriosas Pelas moitas, saudando-a respeitosas... É como se uma sílfide passasse! E a luz cerca-a, beijando-a. O vento é um choro Curvam-se as flores trêmulas... O bando Das aves todas vem saudá-la em coro... E ela vai, dando ao sol o rosto brando, Às aves dando o olhar, ao vento o louro Cabelo, e às flores os sorrisos dando... ... transforma-se em: O verbo no gerúndio “dando”, reincidente no último quarteto do texto bilaquiano, adquire conotação sexual, contaminando-se com a atmosfera de sensualidade explícita criada pela ênfase nos aspectos eróticos do poema original. Por meio de uma montagem que tem um quê de cubista, Scandolara cria uma versão pornô do soneto de Bilac. Na parte segunda, “ascende como se livre (em que o olho une estrelas e traça constelações)”, há um “amálgama” entre os poemas da primeira parte, seguindo um plano previamente estabelecido (que não convém esmiuçar aqui), o que resulta  numa série de 28 novos poemas. Os morfemas bilaquianos são articulados numa nova trama, gerando contextos semânticos inéditos. Na parte terceira, “tortura de exílio e atritos vazada no eterno (em que a força gravitacional elimina os espaços vazios)”, os amálgamas da seção anterior são fundidos e reeditados, dois a dois, em novos poemas que já vão se aproximando — às vezes imperfeitamente — da forma de um soneto tradicional, com seus quatorze versos divididos em dois quartetos e dois tercetos, compondo variações em torno do metro decassílabo. Para ficar num único exemplo: hoje o livro o passado talvez so- -nhasse aos raios em que céus em que sombria lembrança as estrelas trêmulas infinita escada moita flor noite luares? partindo e olhava degrau vives trêmulo olhar estas aquelas um anjo a harpa súplicas, feria das estrelas sombra corta umas vós também ilusões tua virgindade de pudor a armadura neve das capelas um bando de sombras meu amor guardando montanhas coral vi olhar celeste erguendo a alvura neve cobre os flancos desnudo seio Começam a emergir, do aparente caos combinatório, alguns vestígios de coesão e coerência textuais, o que, em vez de atenuar, apenas reforça a impressão de estranhamento. O insólito das imagens criadas e o jogo que alterna uma sugestão e a desconstrução da ordem sintática dão um aspecto dadaísta ao conjunto, aliado, no entanto, a uma lógica formal rigidamente construtivista, que se impõe por meio do procedimento da montagem: o aleatório e o arbitrário se confundem e se interpenetram. Na parte quarta “lixívia (em que damos uma olhada no que foi jogado fora)”, os fragmentos dos sonetos de Bilac excluídos nas partes anteriores são reunidos em seis parágrafos, formando um simulacro de prosa poética que lembra alguma coisa da escrita automática surrealista (um efeito, mais uma vez, obtido por meio da lógica construtivista da montagem). Já na parte quinta — e última — do livro, “sagitário a* (enfim o cerne de todo esse trabalho sem sentido)”, forma-se o derradeiro soneto do volume, tomando-se um verso de cada um dos poemas da parte terceira. Não exponho o resultado aqui, que mereceria uma análise mais detida, mas posso dizer que há uma estranha e surpreendente beleza lírica nele. Se pensarmos no livro todo como um processo cujo resultado é o soneto final, então a própria ideia de cinco “partes” é enganosa, pelo que sugere de estático e estratificado. Mais preciso, talvez, fosse falar das cinco fases de um processo. Ao final do livro, temos um posfácio, “faça você também o seu próprio PARSONA”, no qual, parodiando uma receita culinária, o autor explica, passo a passo, os procedimentos que resultaram no volume. Repleto de autoironia, ele deve ser visto como um componente fundamental do conjunto. Como dito anteriormente, há uma ambiguidade na autoria do livro: por um lado, existe a impessoalidade dos poemas, que apenas esboçam — em traços gerais e elípticos — o eu lírico dos sonetos bilaquianos; por outro, há uma consciência autoral por trás de todo o processo, atuando, por meio da montagem, como uma espécie de editor. Nos subtítulos de cada parte, em que há uma sintética explicação do procedimento que lhe deu origem, tal consciência se materializa como voz poética; é essa mesma voz que se faz ouvir no posfácio. Da tensão entre o discurso bilaquiano, esquartejado e reconstruído, e a consciência composicional que lhe empresta novos significados, constitui-se a autoria do volume. É possível definir o princípio formal que rege a confecção de PARSONA como uma apropriação irônico-alegórica dos sonetos da “Via Láctea”. Em Origens do drama barroco alemão, Walter Benjamin aponta como, no período barroco, a alegoria — ao contrário do símbolo, entendido pela estética romântica como a manifestação sensível da Ideia — representa um modo aproximativo, imperfeito, de ilustrar um conteúdo transcendente, que escapa à expressão humana, daí seu caráter cumulativo: quanto mais alegorias, maior a ilusão de que seja possível emprestar forma comunicável ao inefável (o que, porém, apenas aumenta o aspecto fragmentário do conjunto). A alegoria barroca, assim, é um caco, um fragmento, uma ruína de uma totalidade semântica inexprimível. Peter Bürger, em Teoria da vanguarda, utiliza-se da descrição benjaminiana da alegoria para explicar a natureza da obra de arte vanguardista por oposição à obra de arte clássica. Enquanto esta seria “orgânica”, com seus elementos articulando-se num todo coerente e inteligível, remetendo a um significado definido, aquela teria um aspecto compósito, fragmentado. Na arte alegórica, o material utilizado não possui um significado inerente, cabendo ao artista emprestar-lhe arbitrariamente um significado qualquer. Dessa maneira, podemos compreender os poemas de PARSONA como versões alegóricas dos sonetos bilaquianos, em que fragmentos dos originais têm seu significado subvertido, por isso podemos caracterizá-las como irônicas (lembrando que ironia é uma figura de linguagem em que se diz uma coisa querendo sugerir algo diverso). Nos arranjos poéticos de Scandolara, criam-se contextos inéditos nos quais as palavras de Bilac adquirem uma carga semântica outra, gerando, não raro, efeito humorístico por conta de associações imprevistas de vocábulos. [caption id="attachment_94628" align="aligncenter" width="620"] Alberto de Oliveira, Raimundo Correia e Olavo Bilac, o trio do Parnasianismo brasileiro[/caption] Há tempos não se via na poesia brasileira uma obra tão provocativa. Sua primeira provocação, a mais óbvia, é em relação à solenidade que a poesia parnasiana (juntamente com seus admiradores) arrogava a si mesma. Scandolara dessacraliza o lirismo cósmico da “Via Láctea” bilaquiana, tomando seus sonetos como um brinquedo de montar e dando às suas palavras significados nada sublimes, ou seja: pode-se dizer que o autor destrói a “aura” (conceito também benjaminiano) dessa poesia. Até aí, nada demais, pois o modernismo de 1922 e seus continuadores já destruíram o prestígio do parnasianismo junto ao público. Tal provocação seria chutar cachorro morto. O deboche implacável, porém, não deixa de ser uma forma de levar a sério e, paradoxalmente, a derrisão irônica de Scandolara contra os sonetos de Bilac consiste também num resgate, numa revitalização. Assim, a provocação se volta contra o establishment literário brasileiro, que prescreve uma profilática distância dos restos mortais parnasianos. A maior provocação do livro, porém, expressa-se por meio da ironia. A todo momento, o autor rebaixa o próprio trabalho, definindo-o, por exemplo, como “sem sentido”. No posfácio, esse recurso é explicitado na instrução de número oito: “complete o quadro com um prefácio e um posfácio, ambos de um tom cômico nervoso, o primeiro mais assertivo e o segundo com um leve quê de autodepreciação”. Entretanto, tal “autodepreciação” se reverte contra os procedimentos utilizados na composição do livro e contra seu caráter experimental: “finja que os resultados não são uma imitação muito tardia do concretismo”; “finja que os resultados não são uma imitação tipo camelô da oulipo”; “não queira criar carreira como poeta conceitual. você pode acabar tentando imprimir a internet”. A voz autoral, portanto, acusa a frivolidade e a pouca originalidade de todo o empreendimento. Na verdade, o que temos é uma denúncia irônica da convencionalização dos procedimentos das vanguardas e, sobretudo, das neovanguardas, que, devidamente integrados ao cânone, perderam seu potencial inovador e de crítica à literatura institucionalizada. É isso o que Iumna Simon chama de “retradicionalização da poesia”: “Retradicionalizar significa incorporar as tradições modernas, traduzir o teor originalmente crítico delas em formas convencionais e autorreferidas, mediante o trabalho de linguagem e sob o amparo do ‘rigor de construção’, paradoxalmente assumidos como princípios capazes de preservar a autonomia estética e o ofício do verso”. Assim, a poesia incorre num formalismo em que os procedimentos formais — destituídos de qualquer dimensão crítica — bastam por si mesmos e asseguram à obra um aspecto up-to-date. As experimentações com a linguagem verbal, um legado concretista,  tornaram-se carne de vaca e, passando rapidamente os olhos sobre a maior parte do que hoje é chamado de poesia experimental, constatamos variações intermináveis em torno dos mesmos procedimentos, agora estabilizados pela tradição literária. [caption id="attachment_94626" align="alignleft" width="339"] Capa do livro PARSONA (Kotter, 2017, 136 páginas)[/caption] PARSONA, de Adriano Scandolara, desvela os impasses do experimentalismo contemporâneo, assumindo-os criticamente. A voz autoral, fazendo uso da ironia, obriga-nos a tomar um distanciamento reflexivo em relação ao processo criativo e a seus resultados, por isso o posfácio é um componente essencial à compreensão do conjunto. Percebemos o quanto de arbitrário há na empreitada, o que devemos estender à produção poética atual, principalmente na vertente que encontra no make it new poundiano seu principal  mandamento. Não quero sugerir que há em Scandolara, como poderia ficar subtendido, uma intenção de se colocar à margem de tais tendências, o que daria ao livro um caráter meramente paródico. Na verdade, o autor se propõe a fazer poesia experimental a sério, mas sem ignorar as contradições dessa proposta e as tomando como caminho de autorreflexão para o discurso poético. Eis a última e mais consequente provocação do livro, fazendo dele uma espécie de ouroboros autocrítico a devorar o próprio rabo. Tiração de sarro com a poesia parnasiana, PARSONA se revela uma aguda reflexão crítica sobre os limites do experimentalismo pós-moderno, convertido num formalismo que ecoa, de algum modo, o princípio da arte pela arte daquela poesia (duas pontas soltas de nossa tradição literária que o autor, engenhosamente, une). Se o trajeto de Scandolara em seu livro aponta uma nova senda ou um beco sem saída à produção contemporânea, isso apenas o tempo poderá dizer. O que se pode dizer com segurança é que não há nada de inofensivo neste livro, que, a despeito de sua feição debochada, demonstra um elevado grau de maturidade estética e confirma a posição de Adriano Scandolara como um dos autores mais interessantes da novíssima geração. Emmanuel Santiago é poeta, tradutor e professor de literatura. ______________________________________ Referências bibliográficas BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. Tradução João Barreto. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. Tradução José Pedro Antunes. São Paulo: Cosac Naify, 2008. SCANDOLARA, Adriano. PARSONA. Curitiba: Kotter Editorial, 2016. SIMON, Iumna. “Situação de sítio”. In: PEDROSA, Celia; ALVES, Ida (orgs.). Subjetividades em devir: estudos de poesia moderna e contemporânea. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008, pp. 133-47.

“A consoada”, um belo soneto de Wladimir Saldanha para ser lido no Dia das Mães

“A consoada” foi publicado na segunda parte do livro Natal de Herodes, do poeta baiano Wladimir Saldanha, lançado pela editora Mondrongo, de Itabuna (BA), em 31 de março deste ano.  É dedicado à estudiosa de literatura russa, poetisa e mãe Lorena Miranda Cutlak (autora do livro de poesias O Corpo Nulo, lançado em 2015 pela mesma Mondrongo). Apreciem!

A consoada

Para Lorena Miranda Cutlak O menino põe tudo na boca: põe na boca o fio de feno, põe na boca o grão de incenso, ouro e mirra põe na boca, Mal nasceu, deixa a mãe louca! Não pode ser já venha dente coçando na gengiva, crente da Palavra que dirá tal boca... Será engraçado contar-lhe num dia sagrado, dia de jejum, como a criança era esfomeada: como quase comeu, bicho, o feno; humano, o ouro; místico, o incenso e a mirra; e quão total, a consoada.