Edição do livro do santo católico que viveu no século 12, na Baixa Idade Média, representa, mais que uma mera publicação para especialistas e eruditos, um ato pedagógico

São Bernardo de Claraval (1090 – 1153)

Adalberto de Queiroz
Especial para o Jornal Opção

Em abril, foi lançado o livro “As Heresias de Pedro Abe­lardo” (É Realizações, 120 páginas, tradução de Carlos Nougué e Renato Romano), livro em edição bilíngue latim-português, de alto valor tanto para os fiéis e os estudiosos da obra de São Bernardo de Claraval, bem como para aqueles que mesmo não partilhando da fé católica, prezam a verdade e estão interessados nos pensadores da Idade Média. Depois de publicar Duns Scot, Clemente de Alexandria e Santo Tomás de Aquino, com títulos raros ou disponíveis apenas em edições portuguesas, a editora É Realizações, sob a coordenação do medievalista Sidney Silveira, presta um grande serviço ao leitor brasileiro interessado no pensamento dos filósofos e teólogos medievais. “Este lançamento representa um ato pedagógico”, resume Sidney Silveira.

Com a publicação deste livro, Sil­veira coloca à disposição, em nosso idioma, um documento fundamental do cristianismo, que antes se podia ler em latim, inglês ou francês – com relevantes esclarecimentos para os mais de dois séculos de historiografia de “meias-verdades ou autênticas mentiras” sobre Bernardo de Claraval e, mais especificamente, sobre a polêmica deste com Pedro Abelardo.

Uma dessas meias-verdades ou autênticas mentiras sobre São Bernardo diz respeito à censura que lhe fazem certos acadêmicos, tachando São Bernardo como “homem de horizontes limitados”, aquela pessoa que era apenas monge e não tinha interesse senão pela religião, alguém que teria até mesmo um desprezo pelo saber humano, pelos estudos, pela Universidade. Inclusive, em estudo já classico sobre Bernardo de Claraval, Ailbe J. Luddy desmente esta meia-verdade sobre o homem avesso a promover o acesso à educação e ao conhecimento.

É sabido que são Bernardo apela ao famoso Sermão 36 do Cântico dos Cânticos para a busca do conhecimento que sirva a apoiar o pleno exercício do sacerdócio, citando o profeta Oséias – “por haveres repudiado o conhecimento, repudiar-te-ei, para que não exerças as funções do meu sacerdócio” (Os. 4:6) – isto é uma defesa explícita da inteligência católica. O santo também recorre ao profeta Daniel: “os instruídos brilharão como o resplendor do firmamento; e os que instruírem muitos na justiça, como estrelas para toda a eternidade” (Dan. 12:3), mas adverte para a sentença do apóstolo São Paulo “o conhecimento infla”, complementando com a sabedoria do Eclesiastes: “Quem aumenta o conhecimento, aumenta as penas” (Ecl. 1:18), o que se opõe em tudo ao academicismo do “inflado” Pedro Abelardo, que se houvera inflado com o saber puro.

Ora, diz o historiador Daniel-Rops, que longe de desprezar a inteligência e as suas atividades, dizia ele [Bernardo] com bom humor: “Não convém que a esposa do Verbo seja estúpida!” Acontece, porém, que na ordem das faculdades do conhecimento, São Bernar­do deixava essas atividades da inteligência em segundo plano. Para ele, não era nem pela dialética nem pela ciência que se pode atingir o único objeto do conhecimento que merece ser atingido. Tal como o seu amigo Guilherme de Saint-Thierry (um de seus biógrafos), pensava que “o amor humilde de um coração puro vale mais do que a razão e as suas pesquisas sutis”. Antes de compreender e explicar o dogma, é preciso vivê-lo… Esta é a essência do seu tratado “Sobre o Co­nhecimento de Deus”.

Longe, pois, de lhe imputar a pecha de ter sido homem que “coloca cadeias no intelecto humano”, de que é acusado São Ber­nar­do por alguns acadêmicos, ele deve ser apresentado como um patrono assaz generoso da erudição, ele próprio discípulo do Trivium; e que procurou, para os literatos indigentes, meios e oportunidades de prosseguirem seus estudos em Paris, a metrópole intelectual do século 12. No entanto, o princípio sobre o qual não transigia o monge cisterciense que sintetizou o século 12 era, pois, “o de que a fé vivida é superior a todo esforço da inteligência” e foi para defendê-lo que entrou em conflito com as heresias de Pedro Abelardo.

Em uma Audiência Geral, realizada no Vaticano, em 21 de outubro de 2009, o papa Bento XVI voltou a recordar a importância da defesa da fé cristã feita por São Bernardo, chamando-o de “o último dos Padres” (fundadores da Igreja), porque, no século 12, mais uma vez, renovou e tornou presente a grande teologia dos pais da Igreja. Das quase quinhentas cartas deixadas pelo santo, o papa Bento XVI ressaltou aquela que se transformou num tratado (“De Consideratione”) que escrevera a seu ex-aluno, Bernardo Pignatelli, que fora eleito Papa adotando o nome de Eugénio III.

De dois aspectos centrais da rica doutrina de São Bernardo, Bento XVI retirou para a reflexão daquela audiência a sua solicitude pela participação íntima e vital do cristão no amor de Deus em Jesus Cristo, configurando “o teólogo com o contemplativo e com o místico”. Só Jesus – insiste Bernardo diante dos complexos raciocínios dialéticos de seu tempo – só Jesus é “mel para os lábios, cântico para os ouvidos, júbilo para o coração”. Precisamente daí, resume Bento XVI, vem a referência ao título de “Doutor Melífluo”, pois de seus sermões sempre convincentes surgia um louvor ao Cristo como palavras das quais se escorre o mel. O segundo aspecto ressaltado na audiência que celebrava a memória do Dou­tor da Igreja, São Bernardo, Bento XVI ressalta que o Abade descreve de for­ma apaixonada a íntima participação de Maria no sacrifício redentor do Filho.

Não por acaso, um século e meio depois da morte de São Bernardo, o­cor­rida em 20 de agosto de 1153, Dante Alighieri, no úl­timo canto da “Di­vina Comédia”, colocará nos lábios do “Doutor Melífluo” a sublime oração a Maria: “Ó Virgem Mãe, filha do Fi­lho teu, /humilde e mais sublime cri­atu­ra,/pedra angular do desígnio do Céu”.

A disputa de São Bernardo no Concílio de Sens, diz-nos Carlos Nougué, que assina a apresentação do livro, sucedeu-se a dois encontros havidos entre ele e Pedro Abelardo, sendo que no segundo destes, Pedro Abelardo prometeu ao santo que corrigiria não só seus escritos, mas também o conteúdo de suas aulas ministradas em Paris. Logo, porém, retrocedeu e decidiu não se retratar de nada; e escreveu uma carta ao arcebispo de Sens, na Borgonha, para pedir participação no concílio que ali se realizaria (em 1140), e diante de São Bernardo, ele se “pudesse defender-se das acusações de heresia.”

Consente ao pedido, o arcebispo convida São Bernardo para o concílio, tendo este em princípio se negado a participar, por considerar-se “uma criança” diante do oponente, “um guerreiro adestrado desde a adolescência” para os debates e o uso da dialética. Além disso, a São Bernardo “parecia indigno provar a solidez da fé mediante pobres raciocínios humanos, quando nos consta que a fé se apoia numa verdade certa e imutável”. Depois de muitas instâncias de negociação, São Bernardo decidiu comparecer ao concílio. O que se passa é uma espécie de milagre da violência da Fé e do Amor sobre o monge contra o inflado balão acadêmico que se tornara Pedro Abe­lardo. São Bernardo inquiriu-o de pronto e decididamente, o que fez Abe­lardo levantar-se abruptamente: já não queria ouvir mais nada e, contradizendo sua postura anterior, afirmou diante de todos que não aceitaria por juiz senão ao Papa e retirou-se do local do concílio.

Ausente Pedro Abelardo, o Concílio examinou em sessão plenária os capítulos referidos como contendo treze pontos em que se destacavam pregações heréticas e decidiu que não treze, mas 19 dos artigos eram contrários à fé e à verdade. “Os mistérios de iniquidade da obra do Mestre Abelardo” foram combatidos com a força da fé, tendo o amor fraternal entre os monges promovido a conciliação posterior entre o vencedor e o vencido, patrocinada pelo Abade Pedro, o Venerável (da Abadia de Cluny), provando que a contenda se encerra bem para o futuro da Igreja e para a glória da fé.

Bento XVI ressalta que a lição que se tira de uma polêmica como esta é que o amor a Cristo e a defesa da fé cristã são necessárias, principalmente, para proteger a fé dos mais humildes fiéis, dos mais simples, que nem sempre atingem os píncaros do conhecimento dialético que um Pedro Abelardo atingira.

Adalberto de Queiroz é poeta. Autor do livro “Destino Palavra”.

Foto: Divulgação

As Heresias de Pedro Abelardo
Autor:
São Bernardo de Claraval
Tradução: Carlos Nougué e Renato Romano
Páginas: 120
Editora: É Realizações Editora|