Barthes opera sob o primado da criação/invenção. É inclusive a ideia de um imperativo de “fabricação” o que provavelmente melhor justifica sua opção por Dante Alighieri. Pois é com o poeta inventor da Vita Nova que o curso começa

O francês Roland Barthes (1915-1980) foi um dos maiores estudiosos e teóricos da literatura do século XX

Tiago Ribeiro Nunes
Especial para o Jornal Opção

Ao longo dos anos de 1978-79 e de 1979-80, Roland Barthes trabalhava naquele que seria o seu último curso ministrado no Collège de France. Sob o título geral de A preparação do romance (São Paulo, Martins Fontes, 2005), reúnem-se duas partes de extensão desigual cujos subtítulos são, respectivamente, da vida à obra e a obra como vontade. Ao final do primeiro ano de trabalho, no resumo encaminhado para o anuário da instituição, ele escreve: “este ano começou uma interrogação, provavelmente de longa duração, sobre as condições (interiores) nas quais um escritor, hoje, pode conceber o empreendimento da preparação de um romance”. Em seguida acrescenta: “não se trata, absolutamente, de analisar de uma maneira histórica ou teórica o gênero ‘Romance’, nem mesmo de coletar informações sobre as técnicas que diferentes romancistas usaram, para preparar seus romances”. Mais adiante, arremata: “aliás, nem mesmo é seguro que se trate de ‘romance’: esse termo antigo foi escolhido por comodidade, para sugerir a ideia de uma ‘obra’ que, por um lado, tem vínculos com a literatura, e por outro, com a vida”.

Em seu curso, Barthes opta por uma abordagem da composição literária que assume para si o risco inerente a toda escrita. Seu método sugere certa afinidade com aquele do torero, “[…] cuja ação inteira funda-se sobre a ínfima, mas trágica rachadura por onde se mostra o que há de inacabado […] em nossa condição”. Afastando-se dos dados históricos e técnicos, ele acredita poder colocar as questões de escrita em termos renovados. Seu ponto de vista, não mais obrigado a ser aquele do erudito, estaria livre para ser o do próprio escritor: afinal, tal como ele propõe, “para saber o que pode ser o Romance, façamos como se devêssemos escrever um”.

Dante Alighieri (1265-1321), autor de “A Divina Comédia” e “Vita Nova”

Barthes opera sob o primado da criação/invenção. É inclusive a ideia de um imperativo de “fabricação” o que provavelmente melhor justifica sua opção por Dante Alighieri. Pois é com o poeta inventor da Vita Nova que o curso começa. Para Barthes, conforme assinala Nathalie Léger no prefácio à edição brasileira, trata-se de voltar propositalmente àquele que, na tentativa de exprimir verdadeiramente “o poder do amor e a profundidade do luto” por Beatriz, compreendeu ser imperativo fazer de sua Vita Nova uma forma literária sem precedentes: novidade “(…) fundamentada no engendramento recíproco do poema, da narrativa e do comentário”.

O exemplo do poeta florentino permite articular o advento da Vita Nova à “[…] descoberta de uma nova prática de escrita”. Todavia, essa nova prática de escrita à qual se liga uma vida nova não se oferece de modo gratuito nem aleatório. A ela não se pode chegar pela simples repetição de modelos reconhecidamente bem sucedidos. Uma nova escrita somente se produz à força: é preciso deitar a linguagem no leito de Procusto, distendê-la, amputá-la. Somente assim uma escrita em particular pode romper “[…] com as práticas intelectuais antecedentes” e se destacar “[…] da gestão do movimento passado”. Mas se o conceito é o vício inerente da língua, tal como Barthes demonstra, escrever é sempre uma luta travada contra a repetição. É exatamente por esse motivo que não convém ao texto romanesco repetir a estrutura formal daqueles outros textos que o precederam: o ineditismo de sua forma/substância performatiza aquele da existência marcada, de modo singular, por um acontecimento refratário à assimilação.

Mas se cada obra literária realiza algo único e irrepetível, o que dizer daqueles autores cujas obras não fazem senão retornar, obsessivamente, às mesmas questões? O que dizer, por exemplo, de Georges Bataille, cujos escritos, notadamente diversos entre si, não cessavam de remeter a um número bem reduzido de motivos: o sexo, a morte e as experiências extremas? Soma-se a esse exemplo, o de Octavio Paz, que, no prólogo escrito em 1967 para a primeira reedição do seu O arco e a lira (São Paulo, Cosac Naify, 2013), admite: de uma a outra edição “as perguntas da minha adolescência retornavam; não nos mesmos termos mas no mesmo sentido e com uma urgência semelhante. Eram outras e eram as mesmas. Eu morava em Délhi e minha vida tinha mudado, mas não as minhas obsessões”. A contradição, todavia, é apenas aparente. O produto é irrepetível, não aquilo que o motiva. Entre repetição e invenção há talvez mais cumplicidade do que oposição: a invenção não é apenas a negação da repetição, mas uma espécie de segundo tempo no qual aquilo que retorna pode finalmente ser suprassumido.

No momento da criação, algo inédito aflora à consciência e o eterno retorno daquilo que não-cessa-de-não-se-escrever se transfigura, ainda que momentaneamente, em inédita expressão. Primeiro repetir, e pela repetição experimentar os limites do idioma. Depois criar, arrancar a palavra de seu solo comum e já tão degradado, forçá-la para além do que lhe é habitual. Somente pela repetição se chega ao osso, àquilo que na experiência com a linguagem apresenta-se sempre como obstáculo intransponível; unicamente por meio da invenção se poderia fabricar uma passagem que levasse do impossível de escrever à escrita do impossível.

Tiago Ribeiro Nunes é professor adjunto do Curso de Psicologia da Universidade Federal de Goiás – Regional Catalão.