A história de que a grande imprensa e o jornalismo convencional estão definitivamente ultrapassados no mundo dos smartphones e redes sociais é uma meia verdade. De fato, todos os veículos de comunicação precisaram (ou precisam) se adaptar à nova realidade para sobreviver.

Mas algumas reportagens mostram que o “jornalismo raiz”, para usar uma adjetivação atual, ainda tem lugar. A matéria de Adriana Fernandes, André Borges e Vinícius Valfré, publicada na sexta-feira, 3, no jornal “O Estado de S. Paulo”, caiu como uma bomba nas pretensões de Jair Bolsonaro (PL) e seu grupo, em liderar com alguma autoridade a oposição ao governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

O trio do “Estadão” mostrou que a gestão de Bolsonaro tentou liberar por várias vezes uma caixa (um kit) contendo joias da marca Chopart, que ficaram retidos no posto da Receita Federal no Aeroporto Internacional de Guarulhos (SP), na volta da comitiva do então ministro de Minas e Energia, almirante Bento Albuquerque, de uma viagem de negócios a Riad, a capital da Arábia Saudita, em outubro de 2021.

O conjunto tem um valor aproximado de 3 milhões de euros, ou cerca de R$ 16,5 milhões, e teria sido um “presente” do governo saudita enviado para a então primeira-dama, Michelle Bolsonaro. Ocorre que mimos desse valor precisam ser incorporados ao acervo do Estado brasileiro. A outra opção é pagar impostos no valor de 50% dos bens e, em cima desse valor, uma multa de 50% por não ter feito a declaração do conteúdo na bagagem. Ou seja, o “presenteado” teria de desembolsar cerca de R$ 12 milhões para ficar com o kit de joias.

As suítes (matérias seguintes, que desenvolveram o assunto) tornaram a coisa ainda pior para a família Bolsonaro – e também para o almirante Bento Albuquerque, envolvido até a tampa na trama de aparência não muito republicana.

A reportagem pode ter mudado os rumos da política brasileira, por ser uma espécie de quebra de paradigma de um Bolsonaro “honesto”. Um escândalo desse nível, envolvendo uma forma muito mais visível de “apropriação indébita” do que suspeitas de funcionários fantasmas e rachadinhas, seria constrangedor e intolerável para boa parte dos apoiadores e grudaria como uma “marca” no próprio ex-presidente – tal qual a questão da loja de chocolate do filho 01, o senador Flavio Bolsonaro (PL-RJ).

Por triste ironia, uma caixa de joias teria ação muito mais impactante para efeitos eleitorais do que a responsabilização pelas centenas de milhares de mortes na pandemia, em que o então presidente oferecia cloroquina, e não vacina, como solução.