Opção cultural

Um filme até pode “não ser para todos os gostos”, mas essa não pode ser sua ambição original, sob pena de ter que sofrer as consequências por tal opção alternativa, que pode ser genuína, mas raramente fica bem em um blockbuster

Estando na Galeria do Uffizi, foi possível esquecer o que deixara na Lombardia, ao sair de Milão; no acervo tão procurado, eu estava na verdade à espera ansiosa de dois quadros pelos quais tenho uma paixão secular – as musas visitam a Primavera e o Nascimento de Vênus de Sandro Boticelli
[caption id="attachment_107155" align="alignleft" width="620"] "Nascimento de Vênus", pintura de Sandro Botticelli[/caption]
Sabe-se que a crônica de viagem tem uma tradição e estudá-la, como de resto a todos os clássicos, é um dever do cronista (e do escritor em geral), segundo o velho Machado de Assis: “estudar-lhes as formas mais apuradas da linguagem, desentranhar deles mil riquezas, que, à força de velhas se fazem novas, não me parece que se deva desprezar. Nem tudo tinham os antigos, nem tudo têm os modernos; com os haveres de uns e outros é que se enriquece o pecúlio comum”, para concluir que “escrever como [Miguel Eanes] Azurara ou Fernão Mendes seria hoje um anacronismo insuportável. Cada tempo tem o seu estilo.[i] ”
Insisto, no entanto, em um ponto que já estivera presente na crônica de Machado (Notícia da atual literatura brasileira, 1873) – se à época, “feitas as exceções devidas não se leem muito os clássicos no Brasil ”; hoje, passados 143 anos, simplesmente, não se lê no Brasil – simples assim; tendo a preguiça de ler levado os cronistas ao texto telegráfico à la Twitter – ao que, prefiro os clássicos e os antigos – retroativo até mesmo ao Eanes e sua Crônica da conquista da Guiné, celebrada por Cristóvão Tezza, no romance “O professor”.
Portanto, parafraseando Machado, concedo “Ao leitor, as batatas...” e também os cafés, os molhos, as massas finas, os quadros vistos, as iguarias todas, todos os vinhos não bebidos pelo cronista – que apesar de não degustá-los mais, é capaz de imaginá-los, estando abstêmio, capta seu frescor, suas notas frutadas e seus aromas; ao leitor, o sumo dos livros lidos na língua de Giacomo Leopardi, o cansaço de longas caminhadas e o repouso merecido, a sombra e o sol da Toscana, todas as “mágicas que a Graça do Senhor faz são Poesia” (Jorge de Lima) – poesia de que a Toscana foi grande beneficiária; os campos, os ciprestes italianos; tudo, enfim, da Beleza que inunda os mágicos caminhos dessa pródiga região italiana. Que estes, no entanto, sejam servidos à moda italiana.
Antipasto: esta crônica é como um campo arado à espera de chuva na Toscana, o espaço pronto para receber as sementes – as ideias, as provocações. Esta crônica é o espaço em que se misturam o Sagrado e o profano como um cantuccio que deve ser saboreado embebendo-o no vino santo – mas isso já seria a conclusão, não nos adiantemos no tempo da crônica e da refeição.
Respirando o ar da Toscana, refaço a subida da estradinha de chão, ladeada por ciprestes que nos levava, minha mulher e eu a ser recebidos com fidalguia pelo casal Giuseppe e Antonella, na propriedade agrícola San Fedele, próximo à cidade de Siena. A Toscana, que já apresentara suas cartas em Milão e Florença, deveria ter em Siena apenas um rito de passagem, mas que passagem saborosa, como um antepasto a uma bela refeição regional. Os ciprestes verdes em contraste com a terra amarela da região nos fazem viajar duplamente, pois que espiritualmente regamos o canteiro das memórias para a chegada de novas sensações e sabores – o que incluiu a coleta de funghi porcini na floresta quatrocentona da San Fedele.
Primo piato: porque o ato de viajar é algo que envolve o desconforto dos deslocamentos (principalmente os intercontinentais), mas também muita alegria espiritual, é preciso se preparar para a viagem. Em geral, chega-se faminto ao (e do) destino. Neste ponto, eu me ponho em desacordo com Xavier de Maistre, no isolamento (obrigatório no caso dele), mas concorde à sua conclusão quando pontua que “Minha alma é de tal modo aberta a toda sorte de ideias, de gostos e de sentimentos; recebe tão avidamente tudo o que se lhe apresenta! […] Não há gozo mais atraente, no meu entender, do que o de seguir a pista das próprias ideias (…) ”
O grande problema começa quando me salta à memória a frase de José Guilherme Merquior, para quem o homem comum é capaz de uma ou duas ideias originais. Assim, pois, há que se dar atenção aos que se instruem no rapto das ideias – o roubo da Beleza, louvado por Ortega y Gasset, para quem “Deus pôs a beleza no mundo para que fosse roubada. ”
Secondo piato. Ora, por não se tratar de rapto de mulher, coisa mais complexa e atemporal, declaro-me submisso a Ortega, e sua taxativa citação: “a beleza foi feita para ser roubada” – título da bela seleta de ensaios do pensador espanhol organizada pelo professor Ricardo Araújo, da UnB; o que fica bastante bem provado no estudo de caso de Machado de Assis, como um plagiário, estudo este organizado pelo professor João Cezar de Castro Rocha, que nos provou com sua seleta de textos em torno de Machado de Assis que não há vilania no autor como um plagiário[ii].
Nossa ideia inicial para esta viagem era fixar-nos em uma região e percorrê-la nos dias disponíveis com a mais sincera abertura a descobrir-lhes as pistas do gozo deste prolongado período “sabático” que vivemos.
Naturalmente, quem vai à Toscana, tem o mandatório encontro marcado com Boticelli e Leonardo. Ao primeiro, compareci embevecido e saí ainda mais emocionado apreciador.
Com o segundo, fiquei ainda mais bem impressionado com as lições que ele tão bem aprendeu como discípulo do mestre Andrea del Verrocchio. Abandonei a um canto o meu Ortega e seu ensaio sobre Leonardo e a Mona Lisa, receoso de que isso levaria a crônica a outro destino. E como não cogitava de rapto de mulher, mas de sabores, de momentos tão voláteis eis que me não me aventurava a reescrever o ensaio do mestre espanhol. Simplesmente, ia como caminhante, pelos campos da Toscana, na companhia de Santa Caterina de Sena e de outro espanhol – o poeta Antonio Machado.
Não compareci ao que Milão mais me prometera, por anos a fio. Infelizmente, as medidas de restrição de acesso que limitam os visitantes a no máximo vinte e cinco (por período de visitas), me impediram de ver a “Santa Ceia” de Leonardo, na histórica parede do antigo refeitório dos frades, na igreja Santa Maria da Graça em Milão, cuja recuperação recente era anunciada com entusiasmo (afinal exigira 22 longos anos!), isso tudo depois das que fizeram Bellotti (1720) e Mazza (1770).
A obra do mestre Leonardo não morreu, como previra Ortega, tampouco foi “perdida como uma pérola ferida” como queria Gabriel D´Annunzio em “Ode per la morte di un capolavoro”.
E porque havia Boticelli e a Galeria do Uffizi, com sua arte maior e sua coleção inesquecível, foi possível esquecer o que deixara na Lombardia, ao sair de Milão; no acervo tão procurado, eu estava na verdade à espera ansiosa de dois quadros pelos quais tenho uma paixão secular – as musas visitam a Primavera (ou A Primavera) e o Nascimento de Vênus de Sandro Boticelli.
Dessas duas importantes obras, estive bem próximo e me emocionei ao lembrar de uma conversa que mantive com Pietro Maria Bardi, a quem tive a honra de conhecer e conviver durante a avaliação do acervo da Pinacoteca da Caixa Econômica Federal, no Museu da entidade, em Brasília, nos idos dos anos 1980.
Ele, Bardi, que me presentou com o seu “Sodalício com Assis Chateaubriand”, teria dito sobre Boticelli o que não me apresso a reescrever: “Este pintor é uma expressão típica do ambiente em que viveu: católico e pagão a um tempo, ocioso e asceta, gozador da fantástica mesa dos Médici e chorão da humilde seita de Savonarola, apreciador de disputas teológicas e pintor de Vênus muito nuas e, ao mesmo tempo, das mais castas madonas, Botticelli carrega no seu íntimo a crise de seu século. Pensai que Botticelli teria podido pintar “A Primavera” e a “Adoração dos Reis Magos” fora de Florença, fora da cidade em que as orgias principescas formavam um todo com a alegria popular, a luta religiosa acirrada, a poesia no seu auge, o espírito da renascença borbulhante? Cada um dos florentinos do século XV ofereceu a Botticelli, pelos caminhos milagrosos ao longo dos quais o espírito se manifesta nos seus tecidos misteriosos, algo de imperceptível: as recordações evanescentes estranhas da tonalidade duma cor, o sentido duma forma, de uma atmosfera, de uma atitude, de uma fisionomia, de uma melodia, percepção dos limites que na natureza separam o necessário do supérfluo. A obra de arte na nasce por si mesma como fato egoisticamente íntimo (…) "
Pois bem, ele, Bardi, me dissera que sobre este quadro um estudo das espécies florais retratadas pelo pintor toscano recenseara mais de duas centenas. Não o comprovei nem vi prova que o refute. Fico, pois, com esse número na memória, até que encontro a referência de cinco centenas!
Dolce & Café. Come-se muito bem na Toscana – come-se muito e o paradoxo francês parece aplicar-se aos toscanos, pois são na sua maioria esbeltos. O cronista volta com uma esposa pronta a repetir as receitas aprendidas na Scuola de Cucina de Lella (Siena) e um apetite voraz de alguém que quer manter a forma de sexagenário magro.
Depois de três semanas longe de casa, volto ao lar onde me esperam livros diversos – dois Eças; um Borges, um Camilo e o livro de poemas “A estante” – de Felipe Fortuna. Aguardam-me os campos ressecados do cerrado goiano e as rotinas que foram suspensas com a viagem, recebem-me com afagos os que nos amam: filhas, genros e netos. Eu e minha mulher felizes com os afetos, não nos sentindo mais “em férias”, mas sim no gozo de um “ano sabático” que se deseja permanente.
As novidades da volta, os aspectos oníricos que embalam quase toda viagem, se esvanecem quando se confrontam com a realidade. Se a arte de viajar – como eu disse alhures, repetindo Xavier de Maistre consistisse em viajar em torno do próprio quarto (ou à roda do meu quarto, na tradução de Marques Rebelo), pois bem, fosse isso verdade absoluta – mesmo para os punidos com a prisão domiciliar (no caso de Maistre por conta de um duelo!), ainda assim, repito o que disse há dois anos atrás, as companhias aéreas estariam em maus lençóis e os guias de viagem seriam desnecessários e nós, amantes da viagem, em grande perda espiritual, mas isso já é assunto para a próxima quinta-feira aqui neste espaço.
Dito isso, deixo meus cinco leitores com um trecho da tradução Italo Eugênio Mauro para dois trechos dos Cantos IV e V do Paraíso de Dante n´ A Divina Comédia [iii]que adaptados me parecem a esse manjar que não se troca por outros bens.
“Entre dois pratos iguais, atraentes
e a igual distância, antes morreria
de fome, um homem, de lhes pôr os dentes;
e entre dois lobos não se moveria
um cordeiro, temendo o duplo apuro,
e, dois chacais, um cão estacaria.
Por meu silêncio assim não me censuro,
ante as dúvidas minhas colocado,
nem me louvo por tê-lo mais seguro.
Calava eu, mas, do meu afã, pintado
tinha no rosto o semblante fiel,
mais quente que se fora pronunciado.
E fez Beatriz o que usara Daniel,
Nabucodonosor livrando da ira
que injustamente o tornara cruel.
[...]
“Do principal estás ora informado,
mas, pois que a Igreja nisso dá dispensa,
o que ao meu dito soa desencontrado,
ainda é essencial à mesa a tua presença,
porque o farto manjar que hás ingerido
ajuda quer pra que seu ganho vença.
Abre ora a mente pra o que te elucido,
e o guarda, que não faz erudição,
sem o reter, ter somente entendido.
[...]
“Pensa, leitor, se o que ora delineio
não procedesse, quão te iria causar,
por mais saber, angustioso anseio. ”
NOTAS
[i] ASSIS, Machado de. Machado de Assis: crítica, notícia da atual literatura brasileira. São Paulo: Agir, 1959. p. 28 - 34: Instinto de nacionalidade. (1ª ed. 1873).
[ii] The Author as Plagiarist. The case of Machado e Assis (Center for Portuguese Sudies and Culture, University of Massachusetts Dartmouth, 2015). Link consultado em 07/10/17: https://www.academia.edu/26051439/The_Author_as_Plagiarist_-_The_Case_of_Machado_de_Assis
[iii] ALIGHIERI, Dante. “A divina comédia: paraíso”. Tradução e notas de Italo Eugenio Mauro. São Paulo; Ed. 34, 1998. Cantos IV e V, p. 31; 38 e 41.

Os contos “Crostinhas de leite” e “Meu quintal” apresentam os elementos típicos do universo infantil, com atmosferas específicas de experiências pelas quais as crianças passam, seja o simples ato de beber leite ou de brincar no quintal de casa

Novo filme de Aronofsky é um exercício semiótico, que se configura em diversas camadas e chaves de leitura. Uma obra que se desdobra em várias. É o tipo de trabalho, vindo de um grande estúdio, que não víamos brotar desde diretores do calibre de Kubrick

Há um veio poético praticamente em todos os capítulos. A autora cita o “vozeirão” de Tim Maia na música “Primavera”, ao falar desta estação, e faz trocadilho com “floridinha, mas ordinária”, para insinuar a primavera à Nelson Rodrigues

Com 11 músicas, primeiro álbum da banda goiana será distribuído pela Falante Records por meio de divulgação nas plataformas digitais a partir desta sexta-feira (6/10)

"Quando não estava de fato apreciando a Fonte Branda ou um monumento da bela histórica cidade de Sena, estava em presença da poesia do espanhol Antonio Machado ou das cartas da Doutora de Igreja Santa Catarina de Sena"
[caption id="attachment_106799" align="aligncenter" width="620"] Cataria de Siena, no centro da imagem, retratada por Pierre Subleyras[/caption]
Escrever sobre a viagem enquanto se percorre o caminho – esse o desafio do cronista. Ao longo de três semanas, passo por lugares que sempre desejei conhecer e no fundo de minha alma aparece uma pontinha de déjà-vu. Quando se prepara para a viagem, tem-se mais certo o que se vai encontrar pelo caminho, mas vem a realidade e nos faz cair do cavalo, como com Saulo de Tarso.
Na Toscana, programamos nos deslocar daqui para ali, sem fixar-nos muito tempo em um lugar do destino escolhido, mas vem o Sobrenatural a me guiar e o hotel que minha esposa reservou e que ficava bem próximo ao Santuário de Santa Catarina de Sena deu-me o sinal para ficar mais em Siena.
A diferença é que em lugar de prorrogar nossa permanência no hotel estabelecido num antigo convento (Alma Domus), conseguimos prorrogar a estada em um hotel fazenda, na pequena localidade de Montalbuccio. Portanto, em um dia, saímos de um edifício construído no ano 1300 para uma propriedade rural que, há 400 anos, pertence à mesma família que hoje administra o local como um aprazível hotel-fazenda, lugar por demais apropriado às leituras e meditações, sob o sol da Toscana.
Desde a minha saída de Goiânia, venho folheando dois livrinhos extraordinários que ocuparam agora todo o tempo na fazenda. Quando não aproveitava a paisagem toscana, refugiava-me nos “Campos de Castela”; e quando não estava de fato apreciando a Fonte Branda ou um monumento da bela histórica cidade de Sena, estava em presença da poesia do espanhol Antonio Machado ou das cartas da Doutora de Igreja Santa Catarina de Sena.
Viajo por terras toscanas, mentalmente alçando um voo “Por terras de Espanha” (em tradução de Sérgio Marinho [Caminhos, 2017]):
“O homem destes campos que incendeia os pinhais
e seu despojo aguarda como um troféu de guerra,
antanho já raspara os negros azinhais,
talhara já os robustos carvalhos da alta serra.
Vê hoje os pobres filhos fugindo de seus lares,
o temporal levar o limo de sua terra
pelos sagrados rios até os largos mares,
e em páramos malditos trabalha, sofre e erra.
É filho de uma estirpe de rudes caminhantes,
pastores que conduzem suas hordas de merinos
à Estremadura fértil; rebanhos transumantes
que mancha o pó e doura o sol pelos caminhos.
(...)
Pronto, dispara o coração deste cronista, originário da mesma “estirpe de rudes caminhantes” (de origem lusitana), voltado ao ano 1912, quando foi publicada a primeira edição de “Campos de Castilla” que, pasmem, teve que esperar mais de um século para ter uma boa tradução em nosso país – que se nos é dada por jovens editores de Goiânia e um tradutor goiano que vive em Porto Alegre (RS): o jovem Sérgio Marinho[i]. Uma preciosidade que me acompanha nesta viagem tem suas cortesias e suas mágicas de tradutor deste “livro regional, ainda que em hipótese alguma provinciano” – como ele mesmo adverte na Nota do Tradutor.
Ocorre, pois, que por obra do Sobrenatural em Siena se unem as presenças literárias do ateu Antonio Machado e da mística católica Santa Catarina de Sena. Do “Machado republicano, ateu, anticlerical, inimigo das barbas apostólicas” (conforme à descrição de Otto Maria Carpeaux) juntam-se as “gotas de sangue jacobino” (de Machado), ao “sangue do Senhor”, que marcou a vida de Catarina de Sena; juntas no coração do cronista a “angústia e o pessimismo terreno de Machado”, o visionarismo e a esperança febril da santa senense.
[caption id="attachment_106800" align="alignleft" width="316"]
Poeta espanhol Antonio Machado[/caption]
No entanto, o autor dos “Provérbios e cantares”, do qual o de número XXIX tornou-se o mais famoso em nossa língua, tem qualquer coisa além do chão, um salto meditativo que à santa sempre moveu desde menina – “Caminhante, são teus passos/o caminho, e nada mais [...] Caminhante, náo há caminho,/somente esteiras no mar.”
Aproximar os dois personagens históricos é um ato do absolutismo do cronista, e por mais paradoxo que pareça ao leitor, é o execício que faço diante dos livros e escritores que tenho à mão. É assim que, caminhando pela Toscana, como o poeta castelhano o fazia em Castilha, eu também o faço: “deja campo libre a meditaciones y expressión de pensamientos filosóficos”, para usar a expressão de Jorge Campos na introdução à versão espanhola da antologia “Poemas, Antonio Machado” (1976).
Pois é exatamente com este campo livre à imaginação e à meditação que me aproximo respeitosamente do ateu Machado e da mística Catarina de Sena. Esta que pela vez primeira conheci numa epígrafe do único romance escrito pelo católico Gustavo Corção – “Lições de abismo”[ii] – em que é contada a história de um homem que se descobre com leucemis, em busca de si mesmo, diante da ameaça da morte. É, pois, o sangue que marca o livro e a vida de Catarina. O sangue neste caso é o do Salvador, pois que a mística católica se colocou diante de Deus, como a freirinha que o poeta encontra na estrada em seu caminhar pela sua Espanha amada – como encontramos Catarina, a esposa de Cristo:
“Onde estamos? / A que estação todos vamos?/E essa freirinha, o que fita?/Tão bonita!/Tem essa expressão serena/e que à pena/traz esperança infinita!// E eu penso: És boa, pequena; porque deste os teus amores a Jesus; porque não queres/virar mãe de pecadores/Mas ao seres/maternal,/és bendita entre as mulheres,/ó mãezinha virginal.//Algo em teu rosto é divino/sob essas toucas de linho./Se nas faces/rosas amarelas trazes,/já foste rosada e, logo, em tua carne ardeu fogo;/ mas hoje, esposa da Cruz,/ já és luz...”
A menina Catarina é feito essa freirinha, filha de gente humilde, semianalfabeta, mas com uma sabedoria infusa. A mística que juntou fé e ação e que se tornou doutora da Igreja não sabia o Latim, não sabia sequer escrever, mas ao ditar suas cartas, abalava cardeais, governantes e papas. E feito o poeta Machado, pleno de contradições em relação à fé e à crença, não se deixava guiar pelo mediano, santa, mas como a santa se sujeita aos contrastes da vida, como nos lembra Gustavo Corção:
“(...) e de todos os contrastes [de Catarina de Sena], o mais vivo na alma da santa é sem dúvida aquele de que nos fala hoje o intróito da missa: Dilexisti justitiam et odisti iniquitatem[iii]. O pecado, para Catarina, não é coisa que se evite cautelosamente, como um poste pintado de fresco: é um objeto de ódio. Sentia-o fisicamente; e odiava-o fisicamente. Pela ciência do valor do sangue de Cristo, pelo amor desse sangue, que é o “leit-motif” principal de suas cartas, ela odiava o mal, como mulher, com a força de mulher que ama e que se bate por seu amor: ela odiava o mal com os dentes.”
O poeta “cabeça meditadora” Antonio Machado descrê, duvidando, rastejando frente ao Sobrenatural com sua angústia “de índole especial” – como quer Carpeaux – que da dúvida mais anti-cristã cede à procura de Deus “siempre buscando a Dios entre la niebla”:
“O Deus que todos levamos,
o Deus que todos fazemos,
o Deus que todos buscamos
e que nunca encontraremos.
Três deuses ou três pessoas
de um só Deus verdadeiro”
E logo abandonando “o coração blasfemo”, sente a ausência e canta a esperança, mesmo que sob a revolta de um deus Ibero que não é o de Catarina, mas é ainda vazio da alma do homem, ao caminhar em busca do Eterno, como em “Profissão de fé”:
Deus não é o mar, está no mar, aflora
como às águas o luar, ou aparece
como uma branda vela mar afora;
no mar é que desperta ou adormece.
Criou os mares, mas
do mar vem, como a nuvem e a tormenta;
é o Criador e a criatura o faz;
seu alento é a alma, e pela alma alenta.
Hei de fazer-te, Deus, qual me fizeste,
e para te dar a alma que me deste
em mim te hei de criar. Que a caridade,
o rio puro a fluir na eternidade,
flua em meu coração. Seca, Senhor,
a fonte turva, a fé sem o amor.
E sobre o caminhar da pequena freira analfabeta que dava lições aos Cardeais da Igreja, a pedido do papa Gregório XI, Catarina não se desfaz da sua humanidade, mistério que confunde os historiadores e escandaliza os incrédulos. Mas é “na santidade, ao contrário, o que logo se vê, com fulgurante evidência, é a dilatação da alma e o alargamento dos extremos. A mansidão se vê acompanhada da coragem; a temperança de um santo como Bento Labre, que passa a vida inteira dizendo: pouco... pouco... , completa-se com um infinito desejo de posse; a misericórdia se abraça com um ardente sentimento de justiça. As virtudes, que no homem ainda sujeito às leis dos sentidos, ou mal libertado desse jugo, eram meras disposições facilmente abaláveis (faciles mobiles), e sem conexão orgânica, tornam-se, pela infusão da Caridade e pelo acréscimo dos dons, virtudes reais, forças verdadeiras, dificilmente abaláveis (difficiles mobiles) organicamente e harmoniosamente conexas. E, em lugar do tíbio e claudicante indivíduo que apenas consegue fazer algumas coisas boas, à custa de compromissos, demissões e pusilanimidades, vê-se então esta alma vivificada pela graça abrir as grandes asas das virtudes que nos pareciam opostas e paradoxais, erguer-se sem medo no largo vôo dos albatrozes”. [iv]
E voltando ao nosso poeta para fechar essa croniqueta que já vai alongada por demais, é o que se vê nos humaníssimos poetas-santos João da Cruz e Teresa d’Ávila que aparecem nas meditações de “Provérbios e cantares – XX e XXI” de Antonio Machado assim:
Teresa, ama de fogo;
João da Cruz, espírito de chama,
aqui faz muito frio, mestres, nossos
coraçõezinhos de Jesus se apagam!
Ontem eu seonhei que via
a Deus e com Deus falava;
e sonhei que Deus me ouvia...
Por fim, sonhei que sonhava.
Ao leitor desta croniqueta, findo prometendo voar por outros assuntos que aprofundem a compreensão deste mágico caminho de Sena, em que o sagrado e o profano se misturam, provendo sempre alimento para alma, mesmo que partindo de um crente e um que sustenta não crer em Deus, mas ambos meditadores que nos apontam para o Eterno.
NOTAS
[i] MACHADO, Antonio. Campos de Castela. Tradução e notas de Sérgio Marinho. Ensaio biográfico de Otto Maria Carpeaux. Goiânia: Caminhos, 2017. 250 p.
[ii] CORÇÃO, Gustavo. Lições de abismo, 1956, Edit. Agir.
[iii] No original em Latim no missário Romano, tradução livre: “E vós: amai a Justiça e odiai a iniquidade (o pecado).”
[iv] Corção recomenda consultar L. H. Petitot O. P., “La Doctrine Ascetique et Mystique Integrale”; e também “Sainte Thérèse de Lisieux”, além de J. Maritain, “Science et Sagesse, Deuxième Partie” ( Eclaircissements sur la Philosophie Morale ) chap. II – G. Corção em artigo para o jornal O Globo, “Os paradoxos da santidade”.



Professor do Instituto de Letras da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) fala de seu último livro, recentemente lançando pela editora É Realizações, “Culturas Shakespearianas: Teoria Mimética e os Desafios da Mímesis em Circunstâncias não hegemônicas”

Na terceira peça, é proposto um ritual em que o pastor ou guia, possivelmente um robô, inicia os fiéis num novo tipo de atividade espiritual que consiste em levar a antropofagia ao seu ponto extremo

Não que eu viva no Século XII ou XIII, mas meu pensamento viaja bastante por lá (de São Bernardo a Dante, de Hildegard de Bingen a Alberto Magno – com tudo que possuem de desigual entre eles); não é inconfessável desejar que volte a ser ensinada aos jovens a velha fórmula clássica da busca pelo o que é Belo, o que é Bom e o que é Verdadeiro
[caption id="attachment_106283" align="alignleft" width="620"] Casa di Dante, em Florença, Itália[/caption]
Em 1265 as coisas não se davam como hoje, no local onde está fixada a “Casa-museo di Dante”. Além do número de pessoas que circulam pela pequena viela que leva ao local, com certeza, as paixões, os valores e os preceitos de vida, ali recebem como que um sopro na brasa antiga e, aparentemente apagada, fazendo o visitante refletir a respeito de uma série de crenças e de um comportamento ético que estão, digamos, em desuso.
Em meio a argumentos odiosos, hoje, ouvimos dizer-nos uns aos outros, no Brasil, quando as coisas não vão ao nosso gosto, em tom de ofensa: “quer voltar à era Medieval”?
E quanto os corruptos (que os há desde que Adão deixou o Paraíso) das repúblicas (e republiquetas) de hoje jamais qualificam de “monárquico” o comportamento dos colegas que se vêem na mesma enrascada do pecado cometido ou, quiçá, na mesma prisão –, o xingamento ao que é corrupto sempre diz “fulano não teve um comportamento nada republicano”. Paradoxais, no mínimo, parecem-me as duas expressões...
Não que eu viva no Século XII ou XIII, mas meu pensamento viaja bastante por lá (de São Bernardo a Dante, de Hildegard de Bingen a Alberto Magno – com tudo que possuem de desigual entre eles); não é inconfessável desejar que volte a ser ensinada aos jovens a velha fórmula clássica da busca pelo o que é Belo, o que é Bom e o que é Verdadeiro (lição retomada de Aristóteles pelos educadores da alta Idade Média), mas pelo menos, que tal tê-la como válida para legenda de uma vida – ao invés do “quanto mais popular, melhor ?” – que é a legenda do Século em que vivemos, nesta civilização do espetáculo (Vargas Llosa, 2012).
São ideias assim que se colocam em campos opostos as duas eras, naquilo que cada uma tem de mais característico e que fazem refletir muito o turista do destino cultural chamado Florença (ou por extensão Toscana). Neste caso, a visita a Florença tem para mim o condão de fazer reavivar a brasa interior que queimou literamente (ou imagisticamente) a pele de muitos talentos, devotos (ou não) ao longo da dita Idade Média, a começar pelo que hoje só podemos nomear como “Sommo Poeta” – o símbolo da Firenze do Século XIII e dádiva divina ao mundo da Poesia italiana e universal.
A verdade é que por obra e insistência, ou seria do uso exaustivo da figura de linguagem da repetição que uma mentira veio se tornando em “verdade incontestável” – a partir dos chamados livres pensadores, principalmente a partir dos enciclopedistas, Diderot e D’Alembert, quando a Idade Média ficou conhecida como “Dark ages”.
Alertado pelo escritor e crítico maranhense Franklin de Oliveira, no prefácio de “Literatura e Civilização”, comecei, há alguns anos, a empreender uma busca que me levou a compreender que “a Idade Média…não foi, de forma alguma, a Dark Ages inventada pelos historiadores liberais do séc. XIX, mas a genuína herdeira do mundo greco-romano.” E com a ajuda dele Franklin, de Robert Bossuat, de Huizinga e de Jacques Le Goff (com todos os seus desvios e rusgas anti-religiosas ou, melhor, anticlericais, como historiadores), compreendo hoje que “a Idade Média significa a fundação da Europa em sua base cristã-romana”; e comecei a me deliciar com um dos dois fatos apontados por Franklin como de alta significação cultural do período, a saber: “o estupendo fenômeno da literatura provençal e a aparição da poesia dos clerici vagantes”; e de monumentos civilizacionais que nomeamos Dante Alighieri (nascido Durante Alaghiaro) ou Guido Cavalcanti, mestre do florentino.
Em outro contexto, Franklin cita Arnold Hauser (A História Social da Arte) para justificar que a presença da mulher no centro do lirismo trovadoresco (la poésie lyrique au Moyen Age), com a mescla do platonismo e sensualismo, determina “aquilo que chamamos de a mais importante transformação da história literária do ocidente” (Hauser). E conclui: “a poesia do amor moderno é obra da Idade Média” – cujo cimo da Comédia é o Canto XXIII de “O Paraíso”, onde Dante nos lega este verso final de incontornável beleza: “l’amor che move il sole e l’altre stelle.”
De fato, para Dante, vale a síntese de Nicola Bianchini[i]: “todos os meus pensamentos se voltam para o Amor”. É o que confirmamos em outra autora importante, também libertadora da ideia redutora de “Idade média” (e suas conclusões nada elogiosas ao rico período de mil anos!). Com Régine Pernoud[ii] (autora de “O mito da idade média”), aprendemos que:
“As razões pelas quais a Idade Média tem sido desfigurada evidentes: a história é o terreno mais palmilhado pelas ideologias, que procuram encontrar na evolução dos tempos as premissas para os seus princípios filosóficos. Ora o século XVI deu início a um período de anticlericalismo até chegar ao ateísmo e materialismo do século XIX. Os autores desses quatro séculos, inspirados por seus princípios filosóficos, alimentaram aversão aos tempos medievais, fortemente marcados pela fé e pelos valores religiosos; a história daquela época foi lida em função de noções preconcebidas que falseiam a ótica dos estudiosos. Quem deseja avaliar com objetividade a história do passado, tem que transpor-se para a época estudada, pesquisar os seus documentos-fontes e reconhecer os critérios dos antepassados; se não, fará um juízo arbitrário e errôneo.”
Exilado de Florença, por uma condenação injusta, depois de um verdadeiro “imbroglio”, que é matéria específica para os historiadores e não cabe nesta crônica. Pois bem, o político e o poeta florentino Dante Alighieri separam-se, definitivametne, para se erguer à posteridade o magnífico Poeta, como um dos verdadeiros monumentos do Medievo. Mesmo tendo perdido a causa política em que se metera como jovem (24 anos à época da batalha de Campaldino) partidário dos “guelfos" (brancos vs. negros) contra os "gibelinos"; mesmo tendo a desgraça lhe sorrido com dentes putrefactos; nada disso pôde lhe estancar o talento, a emocão e o domínio técnico do verso que fazem dele o Sommo Poeta.
Sabe-se na Casa di Dante que, por primeiro, Dante recebera uma multa de cinco mil florins de seus adversários políticos que retomaram o poder em Florença; e, depois, tendo se negado a pagá-la, fora condenado à morte ou ao desterro. Teria essa contenda que envolveu o jovem poeta o levado a exilar-se da cidade que amava e a quem ele havia dedicado todo seu compromisso intelectual e político. Daí, talvez, as referências a Florença e a alguns florentinos no Canto X de “O Inferno” (a parte talvez mais incensada hoje em dia da “Comédia” dantesca!). [Continua]
Canto XXV, de “O Inferno”, de Dante Alighieri, por Machado de Assis
Acabara o ladrão, e, ao ar erguendo As mãos em figas, deste modo brada: "Olha, Deus, para ti o estou fazendo!" E desde então me foi a serpe amada, Pois uma vi que o colo lhe prendia, Como a dizer: "não falarás mais nada!" Outra os braços na frente lhe cingia Com tantas voltas e de tal maneira Que ele fazer um gesto não podia. Ah! Pistóia, por que numa fogueira Não ardes tu, se a mais e mais impuros, Teus filhos vão nessa mortal carreira? Eu, em todos os círculos escuros Do inferno, alma não vi tão rebelada. Nem a que em Tebas resvalou dos muros. E ele fugiu sem proferir mais nada. Logo um centauro furioso assoma A bradar: "Onde, aonde a alma danada?” Marema não terá tamanha soma De reptis quanta vi que lhe ouriçava O dorso inteiro desde a humana coma. Junto à nuca do monstro se elevava De asas abertas um dragão que enchia De fogo a quanto ali se aproximava. "Aquele é Caco, — o Mestre me dizia, — Que, sob as rochas do Aventino, ousado Lagos de sangue tanta vez abria. Não vai de seus irmãos acompanhado Porque roubou malicioso o armento Que ali pascia na campanha ao lado. Hércules com a maça e golpes cento, Sem lhe doer um décimo ao nefando, Pôs remate a tamanho atrevimento." Ele falava, e o outro foi andando. No entanto embaixo vinham para nós Três espíritos que só vimos quando Atroara este grito: "Quem sois vós?" Nisto a conversa nossa interrompendo Ele, como eu, no grupo os olhos pôs. Eu não os conheci, mas sucedendo, Como outras vezes suceder é certo, Que o nome de um estava outro dizendo, "Cianfa aonde ficou?" Eu, por que esperto E atento fosse o Mestre em escutá-lo, Pus sobre a minha boca o dedo aberto. Leitor, não maravilha que aceitá-lo Ora te custe o que vais ter presente, Pois eu, que o vi, mal ouso acreditá-lo. Eu contemplava, quando uma serpente De seis pés temerosa se lhe atira A um dos três e o colhe de repente. Com os pés do meio o ventre lhe cingira, Com os da frente os braços lhe peava, E ambas as faces lhe mordeu com ira. Os outros dous às coxas lhe alongava, E entre elas insinua a cauda que ia Tocar-lhes os rins e dura os apertava. A hera não se enrosca nem se enfia Pela árvore, como a horrível fera Ao pecador os membros envolvia. Como se fossem derretida cera, Um só vulto, uma cor iam tomando, Quais tinham sido nenhum deles era. Tal o papel, se o fogo o vai queimando, Antes de negro estar, e já depois Que o branco perde, fusco vai ficando. Os outros dous bradavam: "Ora pois, Agnel, ai triste, que mudança é essa? Olha que já não és nem um nem dous!" Faziam ambas uma só cabeça, E na única face um rosto misto, Onde eram dous, a aparecer começa. Dos quatro braços dous restavam, e isto, Pernas, coxas e o mais ia mudado Num tal composto que jamais foi visto. Todo o primeiro aspecto era acabado; Dous e nenhum era a cruel figura, E tal se foi a passo demorado. Qual camaleão, que variar procura De sebe às horas em que o sol esquenta, E correndo parece que fulgura, Tal uma curta serpe se apresenta, Para o ventre dos dous corre acendida, Lívida e cor de um bago de pimenta. E essa parte por onde foi nutrida Tenra criança antes que à luz saísse, Num deles morde, e cai toda estendida. O ferido a encarou, mas nada disse; Firme nos pés, apenas bocejava, Qual se de febre ou sono ali caísse. Frente a frente, um ao outro contemplava, E à chaga de um, e à boca de outro, forte Fumo saía e no ar se misturava. Cale agora Lucano a triste morte De Sabelo e Nasídio, e atento esteja Que o que lhe vou dizer é de outra sorte. Cale-se Ovídio e neste quadro veja Que, se Aretusa em fonte nos há posto E Cadmo em serpe, não lhe tenho inveja. Pois duas naturezas rosto a rosto Não transmudou, com que elas de repente Trocassem a matéria e o ser oposto. Tal era o acordo entre ambas que a serpente A cauda em duas caudas fez partidas, E a alma os pés ajuntava estreitamente. Pernas e coxas vi-as tão unidas Que nem leve sinal dava a juntura De que tivessem sido divididas. Imita a cauda bífida a figura Que ali se perde, e a pele abranda, ao passo Que a pele do homem se tornava dura. Em cada axila vi entrar um braço, A tempo que iam esticando à fera Os dous pés que eram de tamanho escasso. Os pés de trás a serpe os retorcera Até formarem-lhe a encoberta parte, Que no infeliz em pés se convertera. Enquanto o fumo os cobre, e de tal arte A cor lhes muda e põe à serpe o velo Que já da pele do homem se lhe parte, Um caiu, o outro ergueu-se, sem torcê-lo Aquele torvo olhar com que ambos iam A trocar entre si o rosto e a vê-lo. Ao que era em pé as carnes lhe fugiam Para as fontes, e ali do que abundava Duas orelhas de homem lhe saíam. E o que de sobra ainda lhe ficava O nariz lhe compõe e lhe perfaz E o lábio lhe engrossou quanto bastava. A boca estende o que por terra jaz E as orelhas recolhe na cabeça, Bem como o caracol às pontas faz. A língua, que era então de uma só peça, E prestes a falar, fendida vi-a, Enquanto a do outro se une, e o fumo cessa. A alma, que assim tornado em serpe havia, Pelo vale fugiu assobiando, E esta lhe ia falando e lhe cuspia. Logo a recente espádua lhe foi dando E à outra disse: "Ora com Buoso mudo, Rasteje, como eu vinha rastejando!" Assim na cova sétima vi tudo Mudar e transmudar; a novidade Me absolva o estilo desornado e rudo. Mas que um tanto perdesse a claridade Dos olhos meus, e turva a mente houvesse, Não fugiram com tanta brevidade, Nem tão ocultos, que eu não conhecesse Puccio Sciancato, única ali vinda Alma que a forma própria não perdesse;[iii]Como dizia a você, dileto leitor, se resistiu a ler até aqui: cabe observar que algumas referências históricas no Canto I sugerem que "O Inferno" foi, provavelmente escrito por Dante no final de 1309, enquanto outras dicas no Canto II indicam que "O Purgatório" foi concluído entre 1313 e 1314. Em 1316, Dante dedicou a um certo Cangrande della Scala o primeiro Canto de "O Paraíso", no qual trabalhou até os últimos dias de sua vida. A transfiguração da raiva e da mágoa, expressão de sua tristeza e raiva por ter sido condenado e, de certa forma, condenado pelas artimanhas da “cidade-Estado” florentina, como se vê nos versos traduzidos por Machado de Assis e também por Dante Milano (cuja tradução do Canto V também é recomendada ao leitor como dever-de-casa). A primeira reflexão política que o peregrino da Comédia está prestes a fazer durante sua viagem ao reino dos mortos é dedicada a Florença, e essa é uma demonstração óbvia de quão importante era este tema para o autor. No sexto canto do inferno, estabelece o círculo do gênio, no qual as almas malignas são forçadas a sofrer uma chuva incessante, dá-se uma reunião e um diálogo entre o viajante e Ciacco (Caco), um florentino “Que, sob as rochas do Aventino, ousado/Lagos de sangue tanta vez abria.” Dante pede-lhe para falar sobre como a guerra entre as diferentes facções serão resolvidas, quais são os motivos de tais confrontos violentos e questioná-lo, mesmo que haja alguns homens honestos na cidade. Muito dessas desventuras está transposto em uma refinada e específica forma de fazer poesia (em terza rima, com sofisticação e profundidade de conteúdo, ritmo e rima), em “O Inferno” (1ª. parte da Divina Comédia). Em visita a Florença, depois de um primeiro dia de chuva e multidões (era domingo) nas ruas de Firenze, pude na última segunda-feira ensolarada, passar a manhã inteira em busca do poeta que nunca vimos mas que sentimos influenciador de toda uma literatura de seu tempo até agora – passados quase setecentos anos de sua morte, ocorrida em 14 de setembro de 1321, no exílio em Ravena. Sobre a importância e grandiosidade da obra de Dante, o professor e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), Marco Lucchesi[iv], assinala que “o estudo da obra de Dante em língua portuguesa forma, por densidade e extensão, um ramo de não pequeno relevo no campo de interesse dos dantólogos. E pode se dividir em duas fases, antes e depois de Machado de Assis, de quem se esperava, aliás, a tradução completa da Comédia, que havia de ser magistral, a julgar pela tradução feita por Machado do canto 25 do Inferno. O melhor do que nos legou o Segundo Reinado, além das releituras de Dante esparsas nas páginas machadianas, desfeitas ou mesmo transformadas, como em "O alienista": "la bocca sollevò dal fiero pasto, quel seccator". Antes de Machado, comparece na poesia dos poetas coloniais, que ou realizam translatos da obra dantesca, ou multiplicam citações, absorvendo-lhe o cenário e alguma temperatura, como Manoel de Santa Itaparica em Estáquidos, ou nas harmonias celestiais do Caramuru, de Santa Rita Durão, onde surge um Dante-Camões, entre o canto 10 de Os lusíadas e o 33 do Paraíso. A máquina do mundo e o livro de Deus. Era sempre a Comédia que fazia parte do acervo da Companhia de Jesus e dos monges beneditinos, cujo primeiro exemplar do poema sacro - segundo Câmara Cascudo - teria chegado já no século XVII.” Casas-museus – de Thomas Mann a Gilberto Freire As casas-museus são uma boa e agradável forma de o leitor rememorar ou de ter o primeiro contato com um grande escritor do passado. Servem como uma verdadeira porta de entrada para uma espécie de “íntima relação com um desconhecido-íntimo pela leitura”, conhecendo-lhe aspectos da vida de escritor, detalhes daquele ser a quem o leitor só teve acesso através do livro. A casa-museu é este local privilegiado onde se adiciona um olhar mais direto ao modo de vida e aos hábitos do escritor que se admira, sua forma de escrever (seus hábitos e manias); conhecimento de parte de seu acervo deixado à posteridade, frutos do zelo de amigos, familiares, admiradores e editores (com ou sem financiamento público). [caption id="attachment_106286" align="alignleft" width="620"]


Com estrutura melhorada, número maior de seguranças e uma programação diversa, último dia cheio da programação deu show na amplitude da representatividade

Público foi confortado (dentro do possível) com bela apresentação da musa Pabllo Vittar, que driblou problemas de segurança no palco e falhas no microfone com muita simpatia e presença hipnotizante

Com sete atrações, festival chega ao Palácio da Música, no Centro Cultural Oscar Niemeyer, tem a goiana Chell às 20 horas desta sexta (22/9) e vai até 1 hora de sábado (23), quando a maranhense sobe ao palco

Banda Corazones Muertos (SP/ARG) traz memórias do espaço de shows independentes de São Paulo para a programação do Festival a partir das 20 horas desta quinta (21/9)