Carta da Europa

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A 1ª Guerra Mundial e suas consequências

Gavrilo Princip, o jovem estudante bósnio que assassinou Franz Ferdi­nand, príncipe herdeiro do trono áustro-húngaro, em 28 de junho de 1914 em Sarajevo, mudou, sem que o intencionasse, os rumos da História. O atentado não só alterou a configuração do mapa político europeu. Provocou, além disso, grandes alterações de limites além das fronteiras europeias, especialmente no Oriente Médio e na África. Nunca um atentado teve repercussões políticas, geopolíticas, econômicas e sociais tão abrangentes. Princip, membro da organização secreta “Mlada Bosna” (Nova Bósnia) de orientação nacionalista revolucionária, lutava contra a anexão da Bósnia e Herzegovina, em 1908, pelo império Áustro-Húngaro, um plano que Viena vinha perseguindo desde 1880 e que, para alguns historiadores, é a verdadeira origem da 1ª Guerra Mundial. Até a anexação em 1908, a Bósnia e a Herzegovina faziam parte do Império Otomano. A anexação foi apoiada pela Rússia que, baseado num acordo secreto com a Áustria, recebeu apoio desta para o cobiçado controle do Estreito do Bósforo, uma saída para a Rússia pelo Mar Negro para o Mediterrâneo. O objetivo russo não chegou a se concretizar. Segundo os autos do processo, Gavrilo Princip não atuou sozinho. Teve dois cúmplices diretos, Nedeljko Cabrinovic (19 anos) e Trifko Grabez (18 anos), ambos pertencentes à Narodna Odbrana (Proteção Popular) outra organização secreta sérvia nacionalista que, por sua vez, tinha vínculos com várias organizações secretas entre as quais a “Mão Negra”, da qual foi recrutada a maioria dos participantes do atentado. Houve outras figuras atrás do atentado, entre as quais a mais importante, Dragutin T. Dimitri­jevic, mais conhecido por seu apelido “Apis”, chefe do serviço secreto do exército sérvio. Apis, uma figura extremamente obscura costumava aparecer sempre nos lugares onde havia tensões ou conflitos. Por esta razão era conhecido na região dos Bálcãs. Milan Ciganovic, outro membro do serviço secreto sérvio, teve importante atuação nos preparativos do atentado. Morava na mesma casa na qual morava Gavrilo Princip. Foi o “orientador” dos três jovens, forneceu-lhes as armas e deu-lhes instruções em seu manejo. Ciganovic tinha dúvidas quanto à “qualificação” de Gavrilo Princip. Chegou até a abordá-lo com a intenção de substituí-lo por outro candidato mais capacitado. Gavrilo Princip, no entanto, insistiu em querer cumprir a tarefa. Foi assim que entrou na História: como verdadeiro assassino do príncipe herdeiro Franz Ferdinand. Todos os participantes envolvidos, um grupo de 20 pessoas, foram presos e condenados. Três foram condenados à morte, os demais a penas entre 8 e 20 anos. Gavrilo Princip não foi condenado à morte porque ainda não tinha atingido a maioridade (faltavam-lhe quatro semanas). Foi condenado a 20 anos de prisão dos quais cumpriu apenas quatro. Era tuberculoso e a cela úmida e escura na qual fora confinado precipitou sua morte, aos 24 anos. Gavrilo Princip era visto, na an­tiga Iugoeslávia, como herói na­cional e a Sérvia, até hoje, venera-o como o seu maior ídolo. Em 7 de maio de 1945 a municipalidade de Sarajevo homenageou-o com uma placa comemorativa. Na calçada do local do atentado encontra-se uma placa com a in­crustação da sola de suas botas já co­locada naquele lugar antes de 1945. Seis cidades da Bósnia e da Herzegovina lembram-no com nomes de ruas que permanecem até hoje. No ano em que transcorre o centenário da eclosão da 1ª Guerra Mundial a Sérvia lembrou a data à sua maneira: em 27 de junho passado (faltava um dia para completar o centenário do atentado) políticos da cúpula do governo da Sérvia e da Bósnia e demais autoridades inauguraram em Sarajevo o primeiro mo­numento em homenagem a Gavrilo Princip. A obra foi financiada pelo governo sérvio e pelo cineasta Emir Kusturica que, na oportunidade, anunciou erigir um segundo monumento em outra cidade cujos custos correrão por sua conta. Há fontes que afirmam que a 1ª Guerra Mundial poderia ter sido evitada se as autoridades em Viena tivessem levado a sério uma informação procedente de Belgrado. O historiador australiano Christopher Clark registra o episódio em seu livro “The Sleepwalkers. How Europe Went to War in 1914”: Nikola Pasic, chefe de governo da Sérvia na época do atentado, um político e intelectual respeitado, ouvira rumores de que algo estava sendo tramado por oportunidade da visita do príncipe herdeiro Franz Ferdinand a Sarajevo. Pasic, que era austrófilo, resolveu informar o plenipotenciário sérvio em Viena que tinha bom relacionamento com Leon Biliski, na época, ministro de finanças áustro-húngaro. Leon Biliski foi informado de acordo mas ignorou a informação e, consequentemente, nenhuma medida foi tomada no sentido de cancelar ou adiar a programada viagem do principe herdeiro a Sarajevo. (Outros autores também comentam o assunto). A viagem foi concretizada e, após o atentado, o mundo en­trou em turbulências com consequências catastróficas, algumas das quais continuam causando conflitos até hoje. As consequências imediatas do conflito são amplas e minuciosas, razão pela qual nos limitaremos a mencionar apenas as de maior repercussão. As três grandes monarquias europeias (Rússia, Áustria-Húngria, Alemanha) e o Império Otomano desaparecem. É esta, talvez, uma das maiores repercussões. A política colonial da Europa entrou em declínio o que provocou grandes alterações territorias, especialmente no Oriente Médio e na África, onde arbitrariamente foram traçadas novas fronteiras e limites te­r­ritoriais sem considerar os diferentes grupos étnicos e religiosos. Muitos conflitos de hoje, especialmente nos Bálcãs, no Oriente Mé­dio e no norte da África são consequências diretas daquelas decisões ar­bi­trá­rias. O Iraque é apenas um exem­plo onde, atualmente, três grupos religi­osos de diferentes etnias se digladiam por terem sido confinados ar­bi­traria­mente num território comum. A Alemanha perdeu grande parte de seu território: a Alsácia-Lorena ficou com a França; Eupen-Malmedy com a Bélgica; parte de Schleswig ficou com a Dinamarca; parte da Prússia Ocidental e da Silésia passaram à Polônia. Além disso, a Alemanha perdeu todas as suas possessões coloniais na África: Togo, Namíbia, Tansania (sem Sanzibar), Burundi, Ruanda e parte de Moçambique que, somadas as superfícies, equivaliam quase ao dobro do então Império Alemão. No Pacífico perdeu Samoa, Papua-Nova Guiné e na China teve que entregar Tsingtau. O Império Áustro-Húngaro desintegra-se; a Rússia, vencedora da guerra, mesmo assim perde parte de seu território à Polônia, à Finlândia e aos países bálticos. A Europa perde a hegemonia mundial e os Estados Unidos da América surgem como nova potência. A Inglaterra ainda consegue manter o seu império colonial mas perde em influência; o mesmo vale à França. Ambos os países encontram-se altamente endividados com os Estados Unidos. Na Alemanha forma-se a Re­pública de Weimar que, logo de saída, encontra-se em difícial situação. Pressões da Direita e da Es­querda, muitos partidos, a maioria com tendências antidemocráticas, nasce a semente para a futura chegada de Hitler ao poder. O Tratado de Versalhes e a condenação da Ale­manha ao pagamento de altas reparações de guerra é a grande hipoteca que pesa sobre a Alemanha e que contribuíu para o fim da República de Weimar. Com o fim da monarquia czarista, a Rússia surge como novo gigante no palco mundial. A Revolução Bol­chevique que, com Lenin liderou a revolução de 1917, foi apenas o início de um longo período de sofrimento do povo russo que custou a vida de 13 milhões de pessoas e que culminou com a ditadura stalinista. O Oriente Médio até hoje continua sendo uma das grandes vítimas da 1ª Guerra Mundial. O acordo secreto Sykes-Picot, de 16 de maio de 1916, entre a Grã-Bretanha e a França, definiu as áreas de influência das duas nações no atual Israel, Iraque, Irã, Jordânia, Líbano e Síria, após a queda do Império Otomano. Sem o acordo secreto Sykes-Picot, sem o traçado arbitrário das novas fronteiras, o mapa político e religioso do Oriente Médio teria hoje outra configuração e é provável que as guerras entre Israel e árabes de 1948, 1956, 1967 e 1973 bem como os atuais conflitos na Síria, no Líbano, na Faixa de Gaza, nas Colinas de Golã, no Iraque não teriam acontecido. Dos “escombros” do Império Otomano o general Mustafa Kemal criou a secular República da Turquia e por isso recebeu o honroso nome de Atatürk, isto é, “Pai da Turquia”. A modernização laicista iniciada por Atatürk nunca foi isenta de tensões internas. Apesar da aproximação da Turquia com o Ocidente, apesar de sua filiação à Otan, a Turquia não chegou a concretizar seus objetivos de tornar-se membro da União Europeia. Em virtude dos recentes acontecimentos no mundo islâmico este anseio está longe de concretizar-se. Nos Bálcãs e em alguns países do leste europeu como na Polônia, Lituânia, Estônia, Letônia, na Tchequia, Eslováquia a 1ª Guerra Mundial contribuíu para que estes países novamente voltassem a sentir “identidade nacional”. O vácuo deixado pela queda do Império Áustro-Húngaro e do Império Czarista Russo originou novos conflitos que culminaram com as guerras na ex-Iugoeslávia no fim do século XX. O historiador Herfried Münkler observa: “O Bálcã pós-imperial continua a causar problemas ao europeus até hoje e o fim desta situação infelizmente não é previsível. O relacionamento com os países desta região deve ser de extremo cuidado. É este um dos aprendizados políticos da 1ª Guerra Mundial”. Os Estados Unidos demoraram para entrar no conflito. As primeiras tropas chegaram à Europa só em abril de 1917 e, no fim, um total de 2,1 milhões de soldados contribuíram para dar novo rumo aos conflitos, embora o sonho do presidente Woodrow Wilson (1856-1924) de paz justa e uma nova ordem mundial não chegou a concretizar-se. A entrada dos Estados Unidos na 1ªGuerra Mundial marcou o início da supremacia americana. Sem a intervenção americana o andamento da guerra certamente teria se desenvolvido de forma diferente. Pouco mais tarde a vitória da democracia americana sobre o fascismo na Alemanha e na Itália bem como sobre o militarismo no Japão mais uma vez contribuiu para o surgimento de um novo império no Oriente: a China comunista. Os herdeiros de Mao são os únicos e verdadeiros concorrentes em pé de igualdade com a hegemonia americana. Mas agora, caro leitor, já estamos na 2ª Guerra Mundial. Entre o início da 1ª Guerra Mundial em 1918 e o início da 2ª em 1939 decorreram 30 anos. Há historiadores que afirmam que neste período a Europa viveu a sua 2ª Guerra dos Trinta Anos (1618-1648). Entre o fim da 2ª Guerra Mundial (1945) e a queda da União Soviética (1991) decorreram 46 anos de Guerra Fria. Mas as heranças da 1ª Guerra Mundial estão presentes entre os europeus (e outras partes do mundo) até hoje. Na Europa e nos Estados Unidos, há cerca de 25 anos, começou a manifestar-se um novo grupo de historiadores já conhecidos como “historiadores alternativos”. Seu objeto de estudo é a “história alternativa”. A pergunta que formulam, mesmo para diferentes assuntos, é sempre a mesma e posta sempre no conjuntivo como por exemplo, “ o que teria acontecido se...” Daí a razão de chamarem este novo estudo de “Especulação Histórica Conjetural”. Um dos expoentes deste novo tipo de historiadores é o alemão Dr. Karlheinz Steinmüller, um estudioso com diploma em Física, autor de vários livros de ficção científica e que se ocupa com história alternativa e futurologia. O jornalista Christian Aichner, membro da redação de www.web.de confrontou Karlheinz Steinmüller com a pergunta hipotética: “O quê teria acontecido se Franz Ferdinand não teria sido vítima de atentado?” É claro que as respostas de Steinmüller só podem ser hipotéticas, mesmo assim, são altamente interessantes e não estão em contradição com as afirmações feitas ao longo deste texto. Em suas considerações, que aqui apenas poderemos dar de forma resumida, o Dr. Steinmüller apoia-se nos estudos do professor britânico Niall Ferguson, da Univer­sidade de Harvard, que é visto como especialista em Finanças, Economia e História Europeia. O professor Dr. Karlheinz Steinmüller responde à pergunta formulada da seguinte maneira: “Se Franz Ferdinand não tivesse sido morto em atentado provavelmente: — a 1ª Guerra Mundial não teria eclodido quatro semanas depois; — toda a concatenação de episódios, isto é, a declaração de guerra do governo Áustro-Húngaro contra a Sérvia, a entrada da Alemanha na guerra em 3 de agosto de 1914, o apoio da Rússia à Sérvia, a entrada da França na guerra não teria acontecido e a chamada “catástrofe seminal do século 20” não teria ocorrido; — não teríamos tido a queda do Império Alemão e do Império Áustro-Húngaro e consequentemente não teríamos tido o Tratado de Versalhes; — não teríamos tido a Revolução Russa de novembro de 1917; — não teria ocorrido o genocídio dos armênios pelos turcos (Obser­vação minha: Que os turcos negam-se a admitir até hoje); — não teríamos tido a ascenção de Adolf Hitler ao poder. Neste caso Hitler acabaria sendo um pintor, talvez mais, talvez menos, conhecido; — sem a 1ª Guerra Mundial não teríamos tido a 2ª Guerra Mundial nem a consequente Guerra Fria; — não teríamos tido o holocausto; — teríamos tido, bem mais cedo, o conflito Norte-Sul entre os antigos países coloniais e suas colônias; — talvez a 1ª Guerra Mundial teria eclodido bem mais tarde e não teria sido tão brutal nem tão global; — a integração europeia teria começado bem mais cedo; — muitos estudiosos da História Alternativa partem do princípio que, sem a 1ª Guerra Mundial, a Europa e o mundo teriam tido um desenvolvimento mais humano”. São estas as considerações do professor Karlheinz Steinmüller. Certas ou erradas? O leitor que opine! Em todo caso dão motivo para reflexão e estudo. O estudo da 1ª Guerra Mundial é amplo e complexo. Aqueles que queiram aprofundar-se no assunto terão que estudar a História Europeia, a História do Império Alemão, a História do Império Russo, a História do Império Áustro-Húngaro e do Império Otomano. Terão que estudar o Colonialismo Europeu, a Guerra Franco-Alemã de 1870/71, as Guerras Napoleônicas, a Revolução Francesa, as guerras de Gustavo Adolfo da Suécia, a Guerra dos Trinta Anos e a Reforma, o grande acontecimento da Idade Média, que continua repercutindo até aos nossos dias. Voltemos, para encerrar, à 1ª Guerra Mundial: Os sérvios levaram um século para erigir um monumento em memória do assassino Gavrilo Princip, uma medida que não foi vista de bom grado no resto da Europa pois demonstra que os atuais sérvios mantém viva a chama de ódio contra as gerações sucessoras do Império Áustro-Húngaro. Os demais europeus também levaram um século para realizar uma cerimônia oficial à nível europeu em memória dos milhões de soldados e civis mortos e desaparecidos. Realmente nunca houve, neste século após o atentado de Sarajevo em 28 de junho de 1914, uma cerimônia cívica a nível de chefes de governo europeus para rememorar àqueles milhões que tragicamente perderam a vida simplesmente por uma política egoísta, expancionista e militarista que era o espírito da época. Tal encontro ocorreu, pela primeira vez, em 28 de junho de 2014 em Ypern, pequena cidade próxima a Bruxelas, em cujas cercanias teve lugar a primeira aplicação de gás tóxico pelo exército alemão. (Ver mesma coluna, Jornal Opção, Edição 2.042 na qual nos referimos ao assunto). Ypern é símbolo para a 1ª Guerra Mundial e muitos vestígios da guerra ainda podem ser vistos nas redondezas. Há muitos cemitérios de soldados mortos espalhados pela Bélgica, Holanda, França, Alemanha e outros países. São lugares vistos como santuários, bem conservados e visitados anualmente por milhões de pessoas. A cerimônia contou com a presença da cúpula da União Europeia bem como a de seus 28 chefes de Estado. Ficou, no entanto, a impressão de que o encontro só teve lugar porque os 28 chefes já se encontravam em Bruxelas para uma já programada reunião de cúpula que começaria na noite daquele mesmo dia. Jean-Claude Junker, também presente no ato e futuro presidente da Comissão Europeia, sucessor de José Manuel Barroso, que deixa o cargo em outubro próximo, resumiu: “Quem quiser conhecer a Europa de hoje, que visite os cemitérios dos soldados que caíram na 1ª Guerra Mundial”.

A 1ª Guerra Mundial — Como foi possível?

[caption id="attachment_13508" align="alignleft" width="620"]Cena da 1ª Grande Guerra Mundial: mais de 13 milhões de mortos e 21 milhões de mutilados e traumatizados Cena da 1ª Grande Guerra Mundial: mais de 13 milhões de mortos e 21 milhões de mutilados e traumatizados[/caption] No Jornal Opção número 2.034, de 29 de junho a 5 de julho de 2014, tratamos da dificuldade histórica de responder à pergunta: “Quem, afinal, iniciou a 1ª Guerra Mundial (1914-1918)? Abordaremos hoje algumas razões que contribuíram para que aquele conflito assumisse proporções globais catastróficas. O assassinato de Franz Fer­dinand, herdeiro do trono do império Áustro- Húngaro, em Sarajevo, capital da Bósnia-Herzegovina, em 28 de junho de 1914, mudou os rumos da História Europeia. O incidente provocou uma reação em cadeia que culminou com a deflagração da 1ª Guerra Mundial, a “grande catástrofe seminal do século 20” (George F. Kennan). His­toriadores de algumas regiões dos Bálcãs denominam-na de “Apo­calipse da Época Moderna”. Em 5 de julho de 1914, uma semana após o atentado, o imperador Guilherme II da Alemanha enviou ao governo em Viena uma mensagem deveras imprudente: “Façam o que quiserem e terão o nosso irrestrito apoio”. A mensagem foi interpretada como “carta branca” e, posteriormente, no Tratado de Versalhes, serviu de argumento para imputar a Alemanha a culpa pela deflagração da guerra. O artigo 231 estabelecia o “reconhecimento da culpa por parte dos alemães por todos os danos e perdas...”. Baseado no “irrestrito” apoio da Alemanha, o governo de Viena enviou um ultimato ao governo da Sérvia, que se recusou a aceitá-lo. Em consequência, em 28 de julho, a Áustria declarou guerra àquele país. Imediatamente a Rússia começou a mobilizar suas tropas, o que serviu de pretexto para que a Alemanha declarasse guerra contra a Rússia em 1° de agosto e contra a França em 3 de agosto. Já no dia seguinte, 4 de agosto, a Inglaterra entrou no conflito ao declarar guerra contra a Alemanha. Entre o atentado em Sarajevo (28 de junho) e a declaração de guerra da Alemanha contra a Rússia (1º de agosto) decorreram 33 dias. Durante este período, que costuma ser chamado de Crise de Julho, houve constante troca de mensagens entre os governos das potências europeias. Historiadores modernos afirmam que durante este intervalo apresentaram-se inúmeras oportunidades que, se tivessem sido aproveitadas, poderiam ter evitado o início do conflito. No entanto, os interlocutores da época não souberam e, aparentemente, não queriam evitar o confronto. As potências europeias da época viviam em exacerbado orgulho patriótico com profundos sentimentos nacionalistas e, não por fim, as ambições de expansão colonialista serviram para fomentar a mentalidade belicista reinante na época em todas as potências europeias. Para melhor compreensão é imprescindível abordar a situação da Sérvia nas quatro décadas anteriores ao atentado. Há historiadores que veem este pequeno país balcânico como “agente provocador” que teve marcante participação na eclosão daquela catástrofe mundial que acabou envolvendo 68 países nos 5 continentes; outros veem a Sérvia como culpada. O império Áustro-Húngaro, através de seu governo em Viena, observava com desagrado as crescentes ideias nacionalistas dos sérvios e culpavam-nos por suas aspirações expansionistas. Verdade é que reinava uma tensa aversão recíproca entre os dois países a qual, evidentemente, teve alguns antecedentes. Quais foram, afinal, estas ideias expansionistas? A Sérvia, mais ou menos à partir de 1870, passou por um período turbulento de sua história. Lembramos que, na época, grande parte da região dos Bálcãs encontrava-se sob o jugo do Império Otomano e ningém mais do que os sérvios queriam livrar-se da dominação turca. Os sérvios, como nação, estavam separados. Além de se encontrarem sob controle turco, havia muitos sérvios distribuídos pelos Bálcãs que estavam sob controle húngaro e outros sob controle austríaco. Adicionalmente havia boa população sérvia na Macedônia onde, no início do século (1903) houve violentas lutas de sérvios contra turcos e búlgaros. Também na Bósnia e na Herzogovina a população, em algumas regiões, era formada preponderantemente por sérvios. A Bósnia e a Herzegovina, no entanto, encontravam-se sob controle austríaco e, em 1908 foram anectadas pela Áustria uma decisão que a Sérvia de maneira alguma aceitou e foi esta uma das razões pelas quais esta refutara o ultimato de Viena. A ideia expansionista da Sérvia em verdade foi uma preocupação com acentos quase paranóicos de Viena pois a Sérvia nada mais quis do que reunir o seu próprio povo distribuído por vários países e aglomerá-lo em apenas um país, em seu próprio. Além disso, uma Sérvia unida, que os austríacos cha­­mavam de Pansérvia, em termos de potência, dificilmente poderia tornar-se um perigo para o Império Áustro-Húngaro que, na época, era formado pela Áustria, Hungria, Croácia, Eslovênia, Bósnia, Herzegovina, Tchequia, Eslováquia, parte da Romênia, parte de Montgenegro, parte da Polônia, parte da Ucrânia, parte da Itália (Trentino, Sul do Tirol e Venetia), e a Vojdina (parte da Sérvia). Após a Rússia, a dupla monarquia áustro-hungara era o segundo maior país europeu em expansão territorial e o terceiro em população. Para realizar seus planos de expansão e incrementar a economia a Sérvia precisava de capital. Inicialmente Viena foi pródiga em propiciar créditos mas aos poucos os austríacos começaram a dificultar a liberação de verbas e demais implementos. O governo de Viena aumentou os juros e dificultou as importações de produtos agrícolas da Sérvia mediante elevada taxação. Os sérvios, vendo-se “estrangulados” pelos austríacos, foram obrigados a procurar outras fontes de capital. Encontraram-nas na França, onde banqueiros franceses de bom grado preencheram o lugar das fontes de Viena. Além de capital, implementos e armas que fluíam da França, a Sérvia, a partir de 1905, estabeleceu vários acordos com o governo francês. A orientação da Sérvia em direção à França em nada agradou ao governo de Viena. A 1ª Guerra Mundial não teria decorrido com tanta dramaticidade sem as descobertas técnicas e cientificas na segunda metade do século 19. Em 1876 o alemão Nikolaus August Otto inventa o motor a explosão, uma descoberta que teve grande influência nesta primeira guerra global; nove anos depois; em 1885, os alemães Gottlieb Daimler e Karl Benz, independentemente, constroem o primeiro automóvel. Os irmãos Wilbur e Otto Wright, Santos Dumont, John Joseph Montgomery, Otto Lilienthal, Percy Pilcher, Octave Chanute testam “máquinas” voadoras. No começo do século 20, em 1906, apenas oito anos antes da eclosão da 1ª Guerra Mundial, Santos Dumont alça voo com o seu 14-bis, uma “máquina mais pesada que o ar, capaz de gerar a potência e sustentação necessária por si mesma”. (O assunto historiamente é polêmico). Fato é que a invenção deste artefato voador, o aeroplano, teve um desenvolvimento técnico rapidíssimo e o seu uso nas batalhas da 1ª Guerra Mundial foi, em muitos casos, decisivo. Foi a primeira guerra na qual foi possível observar a movimentação do inimigo visto das alturas, o que propiciou enormes vantagens aos exércitos que possuiam tal equipamento. Impressionante também foi que, nesta prematura época da aviação, já se destacaram pilotos que entraram nos anais da História da Aviação. Do lado alemão o inesquecível Manfred von Richthofen (1892-1918), mais conhecido por Barão Vermelho e do lado francês, René Fonk (1894-1953), não menos inesquecível por sua atuações corajosas que não ficavam atrás daquelas de seu inimigo voador von Richthofen. O recém-desenvolvido equipamento de telefonia móvel para uso em campanha facilitou a comunicação entre as trincheiras e postos de comando. A metralhadora e demais armas de fogo, minas, e outros artefatos bélicos foram aperfeiçoados de forma rapidíssima e transformaram-se em instrumentos mortais nunca vistos em guerras anteriores. O tanque, uma invenção britânica, foi usado pela primeira vez numa guerra. A 1ª Guerra Mundial foi a primeira guerra documentada, do início ao fim, pela fotografia e pelo cinema. Ambos os instrumentos, além de servirem como valiosa fonte de documentação, tiveram relevante importância no desenrolar dos acontecimentos pois serviram de meio propagador. Muito cedo notou-se que estes dois meios também serviam de “instrumento” de guerra. Fotografias e filmes eram manipulados, alterados com cenas falsificadas para enganar ou influenciar o inimigo. Foi esta uma das razões pela qual a Alemanha os pôs sob censura. Houve outras razões que contribuíram para tal medida: a população começou a inquietar-se com as crueis e desumanas cenas fotográficas divulgadas que mostravam centenas e milhares de soldados mortos nos campos de batalha. As mulheres procuravam em cada foto por seus maridos ou pelo(s) filho(s) que se encontravam no front. A situação interna na Alemanha começou a tornar-se difícil em consequência do bloqueio britânico e da falta de homens que estavam no front, o que impediu os trabalhos agrícolas. Faltavam braços para o preparo da terra, semeaduras e colheitas e, em consequência, começaram a faltar víveres e o pouco que havia tinha que ser enviado aos soldados nos campos de batalha. Estes, por sua vez, preocupavam-se com a situação “em casa”, o que não contribuía para o moral das tropas. Os generais do Alto Comando Militar em Berlim inquietaram-se com este conjunto de circunstâncias. O que mais os preocupou, no entanto, foi a forma astuciosa como o inimigo começou a usar o filme como meio de propaganda de guerra psicológica. Como represália, em 13 de janeiro de 1917, os militares criaram o Bufa (sigla para “Bild-und Filmamt”) um órgão encarregado para a produção de filmes que, já no fim daquele mesmo ano, foi transformado em UFA (Universum Film AG), uma companhia cinematográfica que sobreviveu as duas guerras e existe até hoje, em Potsdam, ao sul de Berlim. O Bufa e posteriormente a UFA produziram filmes em quantidade por duas razões: como propaganda de guerra psicológica e para entreter os soldados no front. Para tal fim foram construídos cinemas ambulantes cujos equipamentos eram montados sobre as carrocerias de caminhões que iam aonde estavam os soldados e que, à noite, quando normalmente não havia combate, não tinham o que fazer. Os responsáveis, no entanto, cuidaram de só produzir filmes e documentários positivos que nunca mostravam a dura realidade “em casa”, onde o povo sofria com a falta de víveres, com as filas, com as demonstrações e com os confrontos com a polícia. E, para não preocupar os que estavam “em casa” evitava-se mostrar cenas horripilantes dos combates, dos feridos, dos mutilados e dos milhares de soldados mortos nos campos de batalha onde, segundo o escritor britânico Robert Graves (1895-1985), “das valas e trincheiras exalava um mau cheiro de gás, sangue, lidite e latrina”. Eis aí outra inovação usada pela primeira vez numa guerra: o gás tóxico. Seu inventor, o renomado cientista químico Fritz Haber (1868-1934), judeu alemão nascido na Polônia e convertido ao cristianismo. É conhecido como o “pai de guerra química” por seus trabalhos no desenvolvimento e uso do cloro e outros gases tóxicos utilizados na frente ocidental, nomeadamente em Flandres, entre 1915 e 1917. O próprio cientista Fritz Haber fez questão de presenciar pessoalmente a primeira aplicação de gás como “arma” moderna de aniquilamento em massa na região de Ypern (Bélgica), em 22 de abril de 1915, quando morreram 6 mil soldados, a maioria senegaleses, marroquinos, turcos e canadenses que lutavam ao lado das forças francesas. Posteriormente outras nações também usaram o gás como arma letal. Estima-se que mais de 1 milhão de pessoas, entre soldados e civis, morreram em virtude de gás e 1 milhão de soldados retornaram com graves deficiências físicas ou mentais permanentes também em virtude do gás. [caption id="attachment_13511" align="alignleft" width="300"]Cena da 1ª Grande Guerra Mundial: mais de 13 milhões de mortos e 21 milhões de mutilados e traumatizados Cena da 1ª Grande Guerra Mundial: mais de 13 milhões de mortos e 21 milhões de mutilados e traumatizados[/caption] Seguido a esta primeira aplicação de gás Fritz Haber continuou com a sua “guerra doméstica”. Sua esposa, Clara Immerwahr, como ele uma reconhecida química, vinha acompanhando de mau grado e criticando abertamente os experimentos do marido. Com a sua formação química ela bem imaginava os resultados que os estudos do esposo poderiam causar. Várias vezes pedira que abandonasse o projeto. Mas Fritz Haber era um homem intransigente. Na noite de 2 de maio de 1915, dez dias após a primeira aplicação de gás em Ypern, Clara Immerwahr escreveu várias cartas a diversos amigos. Às duas da madrugada foi ao corredor da casa onde marido costumava pendurar sua arma num gancho. Suicidou-se. As cartas que os serviçais tinham visto sob a escrivaninha desapareceram. Fritz Haber foi laureado com o Prêmio Nobel de Química em 1918! Jan Gotlib Bloch (1836-1902), empresário, publicista e pacifista polonês — conhecido na França por Jean de Bloch, na Inglaterra por Ivan Bloch e na Alemanha por Jan von Bloch —, é autor de uma impressionante obra sobre o desenvolvimento técnico militar. Curioso é que o autor morreu 12 anos antes da 1ª Guerra Mundial. Sua obra, “A Guerra do Futuro”, um trabalho em seis volumes, foi publicada pela primeira vez em Berlim em 1899 e reeditada várias vezes, foi muito lida na Europa durante a primeira metade do século 20. O autor previu, com muita acuidade, os desenvolvimentos técnicos registrados antes e durante a 1ª Guerra Mundial. É uma obra clássica, válida até hoje, na História do Pacifismo. Herfried Münkler, um dos renomados historiadores da atualidade, já citado em meu trabalho anterior (Jornal Opção, Edição 2.034) em recente palestra na Universidade de Heidelberg à qual o autor deste texto teve a oportunidade de assistir, declarou que “soldados, oficiais e generais tecnicamente experimentaram e aprenderam muito na 1ª Guerra Guerra, o que lhes foi de enorme vantagem na 2ª Guerra Mundial. Talvez seja este o único vínculo real que existe entre a 1ª e a 2ª Guerra Mundial”. Outros autores como Erich Maria Remarque (“Nada de Novo no Front”), Ernst Glaeser (“Classe 1902”), Arnold Zweig (“Educação Antes de Verdun”), Henri Barbusse (“Le Feu — Journal d’une Es­couade”), Robert Graves (“Good-Bye to all that”) e Ernst Jünger (“Im Stahlgewitter-Tempestades de Aço”) narraram em detalhes o dia a dia e as bestialidades nos campos de batalha. A obra de Henri Barbusse, Prix Goncourt em 1916, foi traduzida em 60 línguas. As mencionadas obras foram publicadas nos 15 anos subsequentes à guerra e os autores foram participantes ativos em combates. Daí o realismo e a dramaticidade com a qual descreveram os acontecimentos. São estes, além de muitos outros, livros seminais para quem quiser aprofundar-se no assunto. No final do século 19 e no início do século 20 o Império Alemão sentia-se rodeado de inimigos: ao leste a Rússia, ao oeste a França e no norte a Grã-Bretanha. De fato entre a Rússia e a França já em1892 havia sido firmado um pacto militar, mais tarde transformado em aliança militar. Por precaução ou ambição, a Alemanha começou a elaborar um plano de defesa ou eventual ataque. Responsável pelo plano foi o general Alfred von Schlieffen, chefe do Estado Maior do Exército Imperial Alemão de 1891 a 1905. O documento, conhecido por “Plano Schlieffen”, já estava pronto em 1905, nove anos antes do rompimento da guerra e já inseria, sem que alguém do Estado Maior o percebera, a derrota da Alemanha Imperial e seus aliados. O que ainda se discutia era se o ataque deveria começar no leste com a Rússia ou pelo oeste com a França. Os militares alemães, ao declarar a guerra contra a Rússia, em 1° de agosto de 1914, não acreditavam que esta poderia mobilizar suas tropas em curto prazo. Optaram, portanto, por atacar primeiro a França (que, a partir de 1900 fraquejava internamente em virtude do caso Dreyfuss), resolver o assunto em poucos dias e em seguida concentrar todo e efetivo militar contra a frente leste . Foi o primeiro erro do plano, pois a Rússia conseguiu mobilizar as suas tropas rapidamente e, não demorou, a Alemanha viu-se confrontada em um guerra de duas frentes. Além disso, o Plano Schlieffen partiu das experiências da Guerra Franco-Alemã de 1870/71, quando os franceses, que ainda não a tinham esquecido, puseram-se em fuga ao aproximar das tropas alemãs. O segundo erro fatal do Plano Schlieffen consistia no fato de que os soldados das tropas alemãs marchariam, sem interrupção, no mínimo 30 kms por dia a fim de cercar Paris em 31 dias. Tal não correu, pois, contrariamente à guerra de 1870/71, desta vez os franceses não bateram em retirada e reagiram violentamente, o que prolongou o avanço dos exércitos alemães e propiciou os preparativos dos exércitos russos. Outro erro crucial do Plano Schlieffen foi a invasão da Bélgica em agosto de 1914, cuja neutralidade a Alemanha tinha garantido já em 1839. Incompreensível é o fato de que a invasão da Bélgica neutra não foi contestada por nenhum dos membros do Estado Maior. Segundo o historiador Gerd Krumeich, esta medida foi “militarismo em sua forma mais pura pois necessidades militares foram postas acima de ponderações políticas e acima do direito internacional”. Em vista disso a comunidade internacional passou a ver a Alemanha como agressora e a invasão da Bélgica provocou a participação da Inglaterra , que a França chamara por auxílio, nesta guerra. Encontramos-nos no início de 1917 e três quartas partes do mundo lutavam contra as forças do centro formadas pelo Império Alemão, a dupla Monarquia Áustro-Húngara, o Império Otomano, a Bulgária bem como a África Oriental e Oci­dental Alemã, Camarões e Togo. Países do Oriente Próximo, que na época tinha outras delimitações, também aderiram às forças centrais. A Nova Guiné, na época alemã, também aderiu. Alguns países europeus como a Espanha, Suécia, Noruega, Finlândia e Islândia mantiveram-se neutros. Muitos países só entraram no conflito quando a guerra já estava em andamento. A Bélgica, neutra, invadida pelas tropas alemãs em agosto de 1914, aderiu à Entente (Entente Cordiale) como era chamada a coligação de países formado pela Rússia, França, Grã-Bretanha, logo no início do conflito. Em seguida a Sérvia (6 de agosto de 1914), Japão (23 de agosto) também declararam guerra às forças centrais. Seguiu a Itália (1915), Portugal e Romênia (1916), o Canadá e os Estados Unidos (em 1917) além da Grécia, a China e os países do sul da Ásia e da Ásia Central que, na grande maiora, faziam parte da Rússia. Além disso mais dez países da América Latina, entre os quais também o Brasil, aliarem-se à Entente. Assim a 1ª Guerra Mundial foi a primeira guerra global, se bem que a maioria dos países que aderiram à Entente ou às forças centrais, nunca teve participação ativa no desenrolar dos acontecimentos. Tratou-se de uma participação simbólica no sentido diplomático. Mesmo assim este conflito mobilizou um efetivo de 66 milhões de soldados e deixou um saldo de 13 milhões de mortos, entre os quais 5 milhões de civis e 21 milhões de mutilados e traumatizados para o resto da vida. Estas cifras são aproximadas pois há países que participaram do conflito e até hoje não apresentaram dados exatos, de forma que, passados cem anos, as verdadeiras dimensões do conflito ainda não podem ser determinadas e talvez nunca serão. Pergunta-se como foi possível isso? “Só” porque um príncipe herdeiro, Franz Ferdinand, fora morto por atentado na Sérvia, um país periférico da Europa, um príncipe que nem benquisto era! Segundo Ludwig Winder, autor de uma biografia com o título “Der Thronfolger” (O Sucessor no Trono), publicada em 1937 e reeditada recentemente (Editora Zsolnay) por oportunidade do centenário desta guerra, “ninguém gostava dele e ele não gostava de ninguém... era ríspido, tratava mal seus seviçais e demais colaboradores...era avarento aos extremos... escondia seus complexos atrás de um enorme bigode... casara com uma mulher que nunca fora aceita pelos austríacos por não ter sido da linhagem dos habsburgos...”. Não pode ser e em verdade não o foi. Houve muitas questões ocultas por trás do atentado com antecedentes mais latentes do que explícitos. O leitor interessado que queira aprofundar-se neste tema, que é profundamente interessante do ponto de vista histórico, terá que fuçar fundo nos milhares de compêndios e milhões de cartas de soldados à disposição. Christian Staas, chefe de redação da revista “Die Zeitgeschichte”, editada em Hamburgo, no editorial do número 1 de 2014 escreve: “Cem anos após o início do conflito, 75 anos após 1939 e 25 anos após o conflito Leste-Oeste, renasceu o interesse por esta guerra já quase esquecida”.

Quem, afinal, iniciou a 1ª Guerra Mundial (1914-1918)?

Os arquivos de muitas cidades europeias guardam uma riqueza ímpar de documentos, livros e registros de épocas passadas. É um valioso legado, uma fonte variada de informações que contribuem para trazer à memória acontecimentos que merecem e costumam ser festejados, comemorados ou simplesmente lembrados. Cada país tem seu próprio calendário festivo. A soma de todos é inesgotável. Por esta razão a agenda anual de eventos costuma estar repleto de datas comemorativas que lembram acontecimentos históricos. Muitos desses eventos, por sua natureza, são lembrados apenas a nível regional ou nacional; outros são lembrados e festejados a nível europeu e, não raro, a nível mundial. No ano de 2013, por exemplo, Giuseppe Verdi e Richard Wagner, ambos compositores nascidos em 1813, foram lembrados por seus bicentenários de nascimento; no decorrer do ano suas composições constavam em programas de milhares de concertos, palestras, cursos musicais e de regência em todos os Continentes. No corrente ano a Itália lembra a morte do imperador romano Gaius Octavius Augustus que morreu há 2 mil anos, em 19 de agosto do ano 14 D.C. Segundo o Novo Testamento, Augustus foi o imperador responsável pelo recenceamento na época do nascimento de Jesus Cristo. Os romanos lembram também a Coluna de Trajano, construída há 2 mil anos pelo imperador Trajano (98-117 D.C) nos anos 113/14 (Há fontes que indicam a data 112/13). A Coluna de Trajano encontra-se até hoje, firme em seu pedestal, no centro de Roma, perto do Quirinal. Também Carlos Magno que morreu há 1200 anos, em 28 de janeiro de 814 em Aachen (Alemanha), está sendo lembrado em vários países europeus. Inúmeros órgãos da imprensa publicaram artigos sobre esta grande personalidade da história europeia; além disso há exposições sobre a história de sua época, palestras e seminários especiais em escolas, universidades etc. Em Constança, cidade às margens do Lago de Constança, espremido entre o sul da Alemanha, a Áustria e a Suíça, está sendo lembrado o Concílio de Constança que, há 600 anos, durou de 1414 a 1418. Foi o maior congresso da Idade Média. Na época Constança contava apenas com 6 mil habitantes mas teve que abrigar 72 mil visitantes. Foi neste concílio, ao norte dos Alpes, que terminou o cisma da Igreja, período no qual três papas sentiam-se no direito de ocupar o trono de São Pedro. No fim, nenhum dos três o conseguiu pois foi eleito um novo papa. Constança lembra o concílio com amplo programa que termina em 2018 do qual faz parte uma impressionante exposição de conteúdo histórico sobre a época que o antecedeu, sobre as consequências do concílio, um evento que, entre outros, abriu o caminho à Re­nascença. Há palestras, discussões e publicações referentes ao assunto. Os ingleses comemoram o 450° aniversário de nascimento do maior poeta da língua inglesa e um dos maiores expoentes da literatura mundial, William Shakespeare, nascido em 1564. Durante o ano grandes espetáculos estão programados não só em sua cidade natal, Stratford-upon-Avon, mas em muitas outras cidades ao redor do mundo. Exemplos de tais comemorações são infindáveis e as pessoas interessadas têm, em cada ano, rica oferta para assistir a programas ou a eventos condizentes a seus interesses. O ano de 2014, neste sentido, é um ano marcante. Na maioria dos países europeus, alguns países da África, da Ásia, da América, da Austrália lembram (não festejam e nem comemoram, pois não é evento que se festeje) o centenário do início da 1ª Guerra Mundial. Em 28 de junho de 1914, há exatamente 100 anos, o príncipe-herdeiro do trono do Império Austro-Húngaro, o arquiduque Francisco Fernando, e sua esposa, Sophie Chotek, duquesa de Hohenberg, foram mortos em atentado em Sarajevo, capital da Bósnia-Herzegovina. Um mês depois o atentado causou a “Crise de Julho” que culminou com a deflagração da 1ª Guerra Mundial que o historiador norte-americano George F. Kennan (1904-2005) em 1979 denominou “the great seminal catastrophe of this century” (A grande catástrofe seminal deste século). A denominação foi usada posteriormente também por outros historiadores. A Alemanha Imperial foi vista como a culpada pela eclosão. Entre estudiosos do assunto existe, entre outras, a discussão sobre as consequências da 1ª Guerra Mundial e não são poucos os afirmam que estas seriam bem mais abrangentes do que as da 2ª Guerra Mundial. De fato, o estudo da 1ª Guerra Mundial é deveras um tema interessante pois a “grande catástrofe do século” não apenas mudou os rumos da história europeia, mas teve grande influência histórica, política, econômica e geoestratégica em grande parte do mundo. Eis aí também a razão pela qual os ingleses continuam a chamar a 1ª Guerra Mundial de “The Great War” e os franceses “La Grande Guerre” (A Grande Guerra). Para quem quiser aprofundar-se na matéria encontrará um obstáculo: a enorme quantidade de material complica o trabalho tanto aos leigos quanto aos historiadores profissionais. Há especialistas que afirmam que a historiografia sobre a 1ª Guerra Mundial chega a 325 mil publicações entre livros, estudos, análises, pesquisas, dissertações e informações afins. Diz-se que a história das guerras é escrita pelos vencedores. Na 1ª Guerra Mundial houve muitos vencedores e cada qual contou-a a sua maneira. Talvez reside aí uma parte da explicação sobre a razão de tão ampla historiografia. Duas questões cruciais foram discutidas durante todo este século, de 1914 até hoje, sem que houvesse consenso entre os historiadores. (Houve consenso apenas no que diz respeito a culpa da Alemanha). Várias publicações recentes, as quais mencionaremos no decurso deste texto, contribuíram ou contribuirão para esclarecer estas duas questões e quiçá eliminar a centenária discórdia histórica em relação ao assunto. Eis as questões: 1ª – Por quê a Alemanha foi o único país culpado pela deflagração do conflito e por isso condenada, no Tratado de Versalhes, a pagar altas indenizações? 2ª – Como foi possível que o atentado ao herdeiro do trono austro-húngaro, arquiduque Francisco Fernando, em Sarajevo, na Bósnia, um pequeno país periférico da Europa, pudesse desencadear uma guerra de dimensões globais? São estas as questões cruciais sobre as quais já se discutiu durante um século. Respondê-las ou abordá-las convenientemente num espaço de página de jornal é tarefa hercúlea. Alguns detalhes só poderão ser tocados de leve o que talvez estimula leitores mais interessados a saciar sua sede por informações em outras fontes. A fim de podermos entrosar-nos nas duas questões acima postas, é necessário conhecer o espírito reinante na época na Europa por volta do ano de 1900 e analisar a situação nos Bálcãs a partir de então. Muitos historiadores viam no Imperialismo das nações europeias o motivo principal para a deflagração da 1ª Guerra Mundial. Gerd Krumeich, professor de História Moderna na Universidade Heinrich Heine de Düsseldorf (Alemanha), autor da impressionante “Enciclopédia sobre a 1ª Guerra Mundial” (Editora C.Beck, Munique) explica: “Em verdade, por volta do ano de 1900, para as nações europeias o Imperialismo foi (diferentemente do Colonialismo desde o século 16) uma espécie de desenvolvimento e uma estratégia de sobrevivência. A posse de territórios na África e na Ásia foi efetuada na convicção de que a ‘Velha Europa’ não mais teria espaço suficiente para alimentar adequadamente a sempre crescente massa da população e dar-lhe chances para participar do bem-estar”. A maioria dos países da Europa viviam numa época de exacerbado orgulho patriótico. Já à partir do século 16, pouco a pouco, o patriotismo e o nacionalismo começaram a tomar vulto comungando, cada vez mais, com o Estado. O resultado de tais sentimentos culminou com a criação dos Estados nacionais, evolução na qual a Revolução Francesa teve marcante influência. Neste contexto citemos, mais uma vez, Gerd Krumeich: “Por volta de 1900 tinha-se, em quase todos os países (europeus), uma extremada, quase que religiosa, idéia de Nação (“God’s own cuntry”, “Dieu avec nous”, “Gott mit uns”). A Alemanha formou-se como Estado Nacional apenas em 1871. Mas, entre todos os países, talvez a Alemanha tenha sido, na época, o país no qual esses sentimentos nacionalistas tenham-se desenvolvido de forma mais expressiva. Segundo Krumeich: “O nacionalismo transformou-se numa espécie de histeria coletiva”. Gerd Krumeich defende a tese de que “o novo imperialismo teve influência marcante neste desenvolvimento pois este, diferentemente do colonialismo tradicional, entendia-se como necessidade vital para a sobrevivência dos impérios e nações”. A ideia da necessidade vital foi assimilada também por Adolf Hitler durante a 2ª Guerra Mundial. Hitler falava do “Lebensraum” (espaço vital) do qual já falamos neste jornal em outra coluna. Curioso é que também a teoria de Charles Darwin, sem que ele mesmo tivesse pensado nisso, teve influência nestes desenvolvimentos que, enfim, culminaram com a 1ª Guerra Mundial. Em 1859 Darwin publicou a “A Origem das Espécies” com a qual fundamentou a moderna “Teoria da Evolução”. Darwin argumenta que na na Natureza, sempre houve processos de adaptação. A evolução (na natureza) baseia-se no princípio do “survival of the fittest” (Sobrevivência do mais forte). Não tardou e as teses de Darwin, essencialmente naturalistas, foram popularizadas causando grande impacto. Não decorreram nem dez anos após o lançamento e já as teses de Darwin começaram a ser aplicadas em sociedades e classes sociais. O “survival of the fittest” começou a se tornar ideia mestra dos defensores da expansão territorial. Partindo desta ideia não demorou que se desenvolvesse outra, ainda pior, a da “superioridade do homem branco” em relação a outras raças, ideia que permaneceu e se tornou catastrófica do decorrer da 2ª Guerra Mundial. Com estas considerações passaremos a analisar a situação nos Bálcãs entre 1870 e 1913. Durante este período já houve várias guerras nesta região multifacetada por suas etnias, religião, minorias perseguidas, fronteiras não definidas, uma região esprimida entre interesses de outras potências, nomeadamente do Império Austro-Húngaro, da Rússia e do Império Otomano. Mais ou menos à partir de 1900 falava-se da região como sendo o barril de pólvora da Europa, designação esta que, em parte, ainda é válida hoje. Em 1912/13 houve uma acirrada disputa diplomática entre a França e a Alemanha em virtude do Marrocos. Enquanto estes dois países discutiam, a Itália apodera-se da Líbia, que na época fazia parte do Império Otomano. A Turquia era fraca, não tinha condições de defesa e não recebeu apoio de outras potências. Com isso o Império Otomano, que há anos já era visto como o “homem enfermo do Bós­foro”, entrou numa situação difícil. Vários Estados Balcânicos que já desde 1870 ansiavam por separar-se das garras do Império Otomano, aproveitaram-se da situação para resolver definitivamente seus anseios por independência. A situação não definida de fronteiras entre vários países balcânicos acrescida de litígios por áreas não delimitadas fez com que as grandes potências, que tinham interesses políticos e econômicos próprios na região, acabaram se intromentendo nos conflitos. Em 1912, sob liderança russa, foi criada a Liga Balcânica, uma união entre a Bulgária, Grécia, Sérvia e Montenegro. O interesse russo em apoiar a criação desta liga consistia no fato de evitar, a todo custo, que a Turquia conseguisse o, já há décadas cobiçado, controle sobre o Estreito do Mar Negro. Este desenvolvimento foi visto pelas grandes potências com grande preocupação. A Rússia, por sua vez, argumentava que não haveria motivos para preocupação já que a criação da Liga Balcânica fora uma medida tomada com o objetivo de controlar os pequenos países balcânicos. Tal não se concretizou pois em 18 de outubro de 1912 a Liga Balcânica declarou a guerra contra a Turquia a qual, em maio de 1913, após várias derrotas, foi obrigada a assinar um contrato elaborado em Londres pela Grã-Bretanha e outras grandes potências. A Rússia saíu perdendo, pois o documento foi elaborado de forma tal que a Turquia (estreita aliada da Alemanha) permanecesse com o controle do Estreito do Mar Negro. [caption id="attachment_8440" align="alignleft" width="300"]carta da europa.qxd Morte do arquiduque Francisco Ferdinando foi o estopim da guerra[/caption] Nestas gestões foi tomada outra medida de marcante influência na região. Há longo tempo a Sérvia, que alimentava ideias nacionalistas e visava a criação de uma Grande Sérvia, vinha reclamando uma saída para o Adriático. As grandes potências, no entanto, não simpatizavam com os desejos sérvios. A fim de impedir tal anseio, foi criado o Estado da Albânia. É compreensível que dentro deste ambiente, aqui apenas descrito de forma suscinta, surgissem grupos clandestinos, especialmente entre os nacionalistas sérvios, que atuavam contra a supremacia do governo em Viena. Todos esses grupos, embora atuassem de forma distinta, tinham um objetivo comum: livrar-se do jugo do Império Austro-Húngaro e eliminar a influência russa e turca. Já antes da volta do século houve vários atentados na região. Alexandre I, rei da Sérvia de 1889 a 1903, foi morto em 16 de junho de 1903 com toda a sua família e vários membros de seu governo. Para Viena a Sérvia passou a ser um inimigo figadal. A crise teve o seu auge com o atentado em Sarajevo, no domingo ensolarado de 28 de junho de 1914 no qual foi morto o herdeiro do trono do Império Austro-Húngaro, o arquiduque Fran­cisco Fernando e sua esposa. Gavrilo Princip, 19 anos, de nacionalidade sérvia nascido na Bósnia, foi o assassino. Ele mesmo não foi o autor da ideia, mas como membro de uma sociedade ultranacionalista secreta sérvia denominada “Unidade ou Morte”, conhecida também como “Mão Negra”, serviu, junto com outros, de intrumento para concretizar um atentado que mudou os rumos da história não só da Europa. Talvez tenha sido o atentado de maior influência mundial. Todos os envolvidos foram presos, alguns fuzilados, outros condenados a longas penas. O assassinato de Francisco Fernando é uma ironia da história. Os autores do plano não foram suficientemente cautelosos no que diz respeito a escolha da vítima. Francisco Fernando era conhecido como reformador. A fim de evitar o desmembramento do Império Austro-Húngaro, o arquiduque herdeiro já arquitetara vários cenários e não ocultava a sua ideia de um Estado federativo com mais direitos às minorias em relação aos húngaros. Tal “abertura” em vista em nada contribuíu para amainar o profundo ódio que os nacionalistas sérvios alimentavam em relação à Áustria na pessoa de Francisco Fernando que, não tardaria (seu pai já andava na casa dos 90), assumiria o trono. Guilherme II, imperador da Alemanha, forte aliado da Áustria e inimigo figadal dos sérvios em virtude de seus planos de uma “Grande Sérvia” informou o governo em Viena: “Façam o que quiserem, mas em tudo que fizerem, terão o nosso irrestrito apoio”. É provável que não o assassinato de Francisco Fernando tenha deflagrado a 1ª Guerra Mundial. Mais provável é que a frase solta de Guilherme II tenha sido o estopim de tudo pois foi interpretada, tanto em Viena como nas outras potências, como uma “carte blanche”, uma carta branca para tudo. Um outro fato que complicou a situação do imperador Guilherme II encontra-se em um documento preservado e enviado por aqueles dias pelo governo de Viena ao imperador da Alemanha. À margem do documento encontra-se a anotação manuscrita do imperador: “Arrasem os sérvios. Quanto antes, melhor!” O explicado nestes dois últimos parágrafos é o motivo do qual muitos historiadores deduzem a responsabilidade da culpabilidade da 1ª Guerra Mundial: A Alemanha, unicamente a Alemanha, é a culpada, por ter dado carta branca a tudo. Foi esta também a base para a condenação da Alemanha no Tratado de Versalhes. O professor Gerd Krumeich constata: “Nenhum episódio da História Mundial foi discutido tão ampla e azedamente como o da responsabilidade da erupção da 1ª Guerra Mundial”. Houve um período no qual prevaleceu a argumentação de David Lloyd George, político britânico, que defendeu a tese de que “todos os Estados envolvidos, de uma forma ou outra, foram catapultados a esta catástrofe”. Esta ideia prevaleceu até o início dos anos 60, quando o historiador alemão  professor Dr. Fritz Fischer, de Ham­burgo, lançou a sua muito discutida obra “Der Griff nach der Weltmacht”, reeditada recentemente pela editora Droste Verlag GmbH, Düsseldorf. Trata-se de uma obra seminal sobre a 1ª Guerra Mundial cuja leitura é imprescindível a todos que pretendem estudar o assunto. O professor Fischer defende a ideia de que a Alemanha planejou esta guerra “longamente com atecedência e concretizou os objetivos metodicamente”. Esta tese originou uma disputa histórica que durou 30 anos até que se cristalizou a tese de que “um planejamento a longo prazo por parte da Alemanha não é sustentável mas que a política irresponsável do governo da Alemanha, indubitavelmente, tem contribuído para a catástrofe”. O renomado historiador australiano Christopher Clark, professor de Moderna História Europeia no St. Catherine’s College em Cambridge, em 1913 publicou a obra “The Sleepwalkers – How Europe Went to War in 1914” (Editora Allen Lane, Londres). O livro, enquanto isso, traduzido em varias línguas, tornou-se um best-seller. Já antes Clark havia escrito outra obra sobre a história da Prússia que também faz parte da lista dos “mais vendidos”. Christopher Clark reanimou a discussão em torno da culpabilidade e refuta a teoria da culpabilidade única. Clark defende a tese de que todos os países que participaram naquela guerra não fizeram justiça à responsabilidade que tinham. Nesta questão não há “culpado que se possa pegar posteriormente, de arma na mão”. A hipermoralização da questão da culpa por parte do Tratado de Versalhes Clark define como a “hipoteca do século”. A tese de Clark é compatível com os argumentos de David Lloyd George. Segundo Clark o “culpado” não existia no Direito Internacional antes da 1ª Guerra Mundial. O que existia era o “jus ad bellum” (o direito à guerra) e este não tinha nada a ver com moral; tinha apenas interesses. (Nada mudou: vejamos a Ucrânia). Em todo caso, o “The Sleepwalkers” (Os Sonâmbulos) é obra capital. O único país que não a aceita é a Sérvia, que se sente difamada a ponto de o livro ser tema de discussão a nível de governo naquele país. Outra obra recente é a do historiador alemão Herfried Münkler “Der Grosse Krieg – Die Welt 1914-1918” (A Grande Guerra – O Mundo em 1914-1918) da editora Rowohlt, Berlim 2013. A obra também já existe em várias línguas. Münkler defende, em grande parte, as mesmas teses de Christopher Clark. Vale menção também a obra do historiador estadunidense Adam Hochs­child “The End all Wars – A Story of Loyalty and Rebellion 1914 -1918”, já traduzida, lançada em 2011 pela editora Houghton Mifflin Har­court de Boston, USA. A segunda pergunta formulada inicialmente fica, para hoje, sem resposta em virtude de espaço. Voltarei ao assunto em coluna separada para tratá-la em seus devidos detalhes. A questão da culpabilidade, neste momento, está sendo vista sob novo ângulo.

Uma questão de “sincretismo geográfico“

carta da europa.qxdO meu professor de psicologia costumava tornar os temas mais compreensíveis dando e­xem­plos. Certo dia, referindo sobre “sincretismo infantil” explicou-o da seguinte maneira: “Entende-se por sincretismo infantil”, disse ele, “aquela fase da criança na qual ela ainda não distingue entre a parte e o todo. É a fase na qual a criança ao ver, por exemplo, uma árvore, vê-a como um todo. Ela ainda não distingue que a árvore é formada por um tronco, muitos galhos, hastes, folhas e eventualmente flores. Em regra, esta fase vai, aproximadamente, até aos 3 anos de idade”. O Dicionário Aurélio menciona que o termo é do campo da Psicologia sem citar explicitamente que se trata de um termo da Psicologia Infantil. Aurélio interpreta-o assim: “Percepção global e indistinta da qual surgem, depois, objetos distintamente percebidos”. A explicação de Aurélio corresponde à explicação do meu mestre embora a dele tenha sido mais simples e mais compreensível. Passaram os anos, nunca esqueci esta singela explicação tampouco aprofundei o tema. Especialistas do ramo que me perdoem, caso não tenha eu reproduzido corretamente a definição. Em todo caso, o sincretismo infantil existe. É um termo real e específico do campo da Psicologia Infantil para explicar uma realidade, isto é, um fenômeno natural no desenvolvimento da criança em seus primeiros anos de vida. O termo sincretismo é usado também em outras áreas do saber humano, se bem que com distintas conotações. Encontramo-lo na Filosofia, na Etnografia, na An­tropologia, nas Artes, especialmente na pintura, bem como em várias religiões como no cristianismo, no budismo, no hinduísmo, no islamismo e em outras ciências. O que por definição não existe é a expressão “sincretismo geográfico”. É uma invenção minha, uma artimanha estilística, para explicar lapsos muito comuns na mídia europeia em relação ao Brasil. “Sin­cretismo geográfico, portanto, não existe na realidade, mas existe na prática como demonstram os exemplos concretos que encontrei em jornais, folhetos de propaganda, cartazes, letreiros luminosos, paredes pintadas e outros meios de poluição visual. Também a TV fornece, nesses dias da Copa, fartos exemplos. Os exemplos comprovam que alguns jornalistas, redatores e profissionais, não só da área da publicidade, têm um problema que bem poderíamos chamar de “sincretismo geográfico” cuja definição poderia ser a seguinte: “Trata-se de uma anomalia mental que se manifesta na fase adulta de indivíduos com faculdade intelectual subdesenvolvida cujos sintomas consistem em verem um Continente, por exemplo a América Latina, como um todo, como se o Continente fosse um país só”. Os exemplos a seguir não deixam dúvida quanto a existência desta anomalia. Na internet encontrei a seguinte frase: “A cidade do Rio de Janeiro, a metrópole sul-americana, apresenta o seu completo esplendor durante o carnaval”. Neste caso, o Rio, antes de ser cidade brasileira, é a metrópole sul-americana. Um jornal alemão anuncia um espetáculo musical com o título “Canções de amor da América Latina” seguido com a seguinte informação: “No programa “Monday Sessions” participará a cantora Dorothee Götz que apresentará uma seleção de títulos, selecionados pessoalmente pela cantora, de seu álbum “Brasilian Love Song Book”. Neste exemplo quem vai ao espetáculo, na esperança de ouvir canções de amor da América Latina, acaba ouvindo brazilian love songs. Um político de um dos Estados da Alemanha perdeu a eleição, o cargo e a reputação, mas teve uma oferta de uma grande empresa alemã para um cargo de chefia em sua filial brasileira no Rio de Ja­neiro. Em um en­contro regional de seu partido o político convidou al­guns amigos para visitá-lo em seu novo posto de trabalho, no Rio de Ja­neiro, “a fim de tomar uma boa caipirinha com vocês”. Um jornal local registrou a notícia e um leitor enviou uma carta à redação na qual perguntou: “Que tal seria se o político convidasse também o sr. Friedrich Wegner (nome alterado) para visitá-lo na América do Sul?”. Neste exemplo o Rio de Janeiro e a América do Sul também são a mesma coisa. Além disso, visitar alguém na América do Sul! Onde? Outro exemplo com o seguinte título: “Brasil atrai montadoras” seguido com um texto que é típico para o sincretismo geográfico: “Apesar de os automóveis da classe alta ocuparem apenas um pequeno segmento do mercado a Audi, BMW e a Daimler investem fortemente na América do Sul”. Neste caso é o Brasil que atrai as montadoras mas todas elas investem na América do Sul. Afinal onde, em que país? Outro exemplo da área industrial com o título: “BASF investe 500 milhões de euros” seguido com o seguinte texto: “O maior grupo mundial da área química, a BASF, investirá 500 milhões de euros numa nova fábrica no Brasil. Trata-se do maior investimento da centenária história da BASF na América do Sul... Em Camaçari a BASF construirá o primeiro complexo industrial para a produção de ácido acrílico e superabsorventes na América do Sul”. Como vemos, Brasil, Camaçari e América do Sul parece um todo! Um jornal alemão publica artigo sobre o prefeito de uma cidade, uma personalidade conhecida no sul da Alemanha. O artigo inclui dados biográficos onde se lê: “Formação: Após concluir o ensino médio, o prefeito Fulano de Tal fez uma aprendizado na área de transportes e em prosseguimento estudou Ciências Econômicas na Universidade de Paderborn e nos Estados Unidos. Encarregado pela Fundação Friedrich-Ebert, trabalhou vários anos na América do Sul”. Trabalhou na América do Sul? Onde? Entre o Canal do Panamá e a Tierra del Fuego há inúmeros países. Um exemplo do comércio. Na caixa do correio encontro um folheto de uma loja chique da cidade no qual vejo a seguinte aberração: “Camisetas-Benchmarking. +invariáveis há 20 anos, +algodão sul-americano, +embalagem dupla por 29,00 euros”. Algodão sul-americano! Afinal donde vem o algodão? Do Brasil? Da Guiana Francesa? Do Chile ou quiçá de uma país chamado América do Sul? No folheto de uma grande cadeia de supermercados vejo a foto de uma embalagem com a seguinte inscrição: “Rosbife sul-americano”! Curiosamente, o concorrente deste supermercado anuncia, com foto semelhante, um “Filé de peixe sul-americano”. Donde será que vem o rosbife sul-americano? Dos pampas argentinos? Do Uruguai? De alguma fazenda de Goiás? Tentei descobrir a procedência do filé de peixe sul-americano. Casualmente encontrei o gerente quando me encontrava no supermercado. Mostrei-lhe a embalagem e perguntei: “Donde vem este filé de peixe sul-americano?” O homem pegou a embalagem, fitou-a, fitou-a longamente e disse: “Da América do Sul! Está escrito na embalagem”. Desisti. Já que estamos presenciando o Mundial de Futebol registro um exemplo típico de sincretismo geográfico referente a este esporte. Em agosto de 2011 houve uma partida amistosa entre as seleções do Brasil e da Alemanha. Na época Mano Menezes era o técnico da seleção brasileira. O encontro teve lugar no Estádio do VfB em Stuttgart. A Alemanha venceu por 3 a 2. Mano Menezes, em entrevista à imprensa, comentou: “Desde que sou técnico da Seleção Brasileira, já faz um ano, foi este o primeiro jogo no qual o adversário nos superou em todos os sentidos”. No dia seguinte o maior jornal local alemão comenta:”A interpretação de Mano Menezes foi muito franca o que não facilita as coisas para o técnico da Seleção Sul-Americana”. No dia da abertura da Copa um jornal alemão escreve o seguinte: “Com a cerimônia de abertura e o jogo entre o país anfitrião e a Croácia começa hoje, em São Paulo, o Campeonato Mundial de Futebol. A equipe sul-americana entra em campo carregando um enorme peso: ela terá que conquistar o sexto título”. A Seleção Brasileira é a equipe sul-americana. Não é somente na mídia escrita que se ouvem tais “sincretismos geográficos”. Durante os jogos da Copa em andamente é comum na TV ouvir falar da equipe uruguaia como sendo a equipe sul-americana. O mesmo já se ouviu da equipe chilena, da argentina, da colombiana... Todas elas, antes de serem chilena, argentina ou colombiana, são sul-americanas. Além disso, no que diz respeito à pronúncia, ouve-se coisas engraçadíssimas. As cidades ou os estádios nos quais são realizados os jogos, falados pelos homens e mulheres da TV, soam pra doer: Curitchiba, Guiaba, Portalechre, Sankpaulo, Fortaletza, Retzife, Maracaná... e a “Marcha Real”, o hino nacional da Espanha, passou a ser a “Marca Real”. Terça-feira, 17 de junho, teve lugar a partida entre a Bélgica e a Argélia em Belo Horizonte. No momento em que a Argélia fez o primeiro gol o comentarista saiu com a seguinte observação: “Os africanos estão complicando a vida dos belgas”. Sincretismo geográfico também em relação à África! Estão realmente vendo a árvore como um todo. Desliguei a televisão.

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