Uma questão de “sincretismo geográfico“

21 junho 2014 às 12h11
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O meu professor de psicologia costumava tornar os temas mais compreensíveis dando exemplos. Certo dia, referindo sobre “sincretismo infantil” explicou-o da seguinte maneira: “Entende-se por sincretismo infantil”, disse ele, “aquela fase da criança na qual ela ainda não distingue entre a parte e o todo. É a fase na qual a criança ao ver, por exemplo, uma árvore, vê-a como um todo. Ela ainda não distingue que a árvore é formada por um tronco, muitos galhos, hastes, folhas e eventualmente flores. Em regra, esta fase vai, aproximadamente, até aos 3 anos de idade”.
O Dicionário Aurélio menciona que o termo é do campo da Psicologia sem citar explicitamente que se trata de um termo da Psicologia Infantil. Aurélio interpreta-o assim: “Percepção global e indistinta da qual surgem, depois, objetos distintamente percebidos”. A explicação de Aurélio corresponde à explicação do meu mestre embora a dele tenha sido mais simples e mais compreensível.
Passaram os anos, nunca esqueci esta singela explicação tampouco aprofundei o tema. Especialistas do ramo que me perdoem, caso não tenha eu reproduzido corretamente a definição.
Em todo caso, o sincretismo infantil existe. É um termo real e específico do campo da Psicologia Infantil para explicar uma realidade, isto é, um fenômeno natural no desenvolvimento da criança em seus primeiros anos de vida.
O termo sincretismo é usado também em outras áreas do saber humano, se bem que com distintas conotações. Encontramo-lo na Filosofia, na Etnografia, na Antropologia, nas Artes, especialmente na pintura, bem como em várias religiões como no cristianismo, no budismo, no hinduísmo, no islamismo e em outras ciências.
O que por definição não existe é a expressão “sincretismo geográfico”. É uma invenção minha, uma artimanha estilística, para explicar lapsos muito comuns na mídia europeia em relação ao Brasil. “Sincretismo geográfico, portanto, não existe na realidade, mas existe na prática como demonstram os exemplos concretos que encontrei em jornais, folhetos de propaganda, cartazes, letreiros luminosos, paredes pintadas e outros meios de poluição visual. Também a TV fornece, nesses dias da Copa, fartos exemplos.
Os exemplos comprovam que alguns jornalistas, redatores e profissionais, não só da área da publicidade, têm um problema que bem poderíamos chamar de “sincretismo geográfico” cuja definição poderia ser a seguinte: “Trata-se de uma anomalia mental que se manifesta na fase adulta de indivíduos com faculdade intelectual subdesenvolvida cujos sintomas consistem em verem um Continente, por exemplo a América Latina, como um todo, como se o Continente fosse um país só”.
Os exemplos a seguir não deixam dúvida quanto a existência desta anomalia. Na internet encontrei a seguinte frase: “A cidade do Rio de Janeiro, a metrópole sul-americana, apresenta o seu completo esplendor durante o carnaval”. Neste caso, o Rio, antes de ser cidade brasileira, é a metrópole sul-americana.
Um jornal alemão anuncia um espetáculo musical com o título “Canções de amor da América Latina” seguido com a seguinte informação: “No programa “Monday Sessions” participará a cantora Dorothee Götz que apresentará uma seleção de títulos, selecionados pessoalmente pela cantora, de seu álbum “Brasilian Love Song Book”. Neste exemplo quem vai ao espetáculo, na esperança de ouvir canções de amor da América Latina, acaba ouvindo brazilian love songs.
Um político de um dos Estados da Alemanha perdeu a eleição, o cargo e a reputação, mas teve uma oferta de uma grande empresa alemã para um cargo de chefia em sua filial brasileira no Rio de Janeiro. Em um encontro regional de seu partido o político convidou alguns amigos para visitá-lo em seu novo posto de trabalho, no Rio de Janeiro, “a fim de tomar uma boa caipirinha com vocês”. Um jornal local registrou a notícia e um leitor enviou uma carta à redação na qual perguntou: “Que tal seria se o político convidasse também o sr. Friedrich Wegner (nome alterado) para visitá-lo na América do Sul?”. Neste exemplo o Rio de Janeiro e a América do Sul também são a mesma coisa. Além disso, visitar alguém na América do Sul! Onde?
Outro exemplo com o seguinte título: “Brasil atrai montadoras” seguido com um texto que é típico para o sincretismo geográfico: “Apesar de os automóveis da classe alta ocuparem apenas um pequeno segmento do mercado a Audi, BMW e a Daimler investem fortemente na América do Sul”. Neste caso é o Brasil que atrai as montadoras mas todas elas investem na América do Sul. Afinal onde, em que país?
Outro exemplo da área industrial com o título: “BASF investe 500 milhões de euros” seguido com o seguinte texto: “O maior grupo mundial da área química, a BASF, investirá 500 milhões de euros numa nova fábrica no Brasil. Trata-se do maior investimento da centenária história da BASF na América do Sul… Em Camaçari a BASF construirá o primeiro complexo industrial para a produção de ácido acrílico e superabsorventes na América do Sul”. Como vemos, Brasil, Camaçari e América do Sul parece um todo!
Um jornal alemão publica artigo sobre o prefeito de uma cidade, uma personalidade conhecida no sul da Alemanha. O artigo inclui dados biográficos onde se lê: “Formação: Após concluir o ensino médio, o prefeito Fulano de Tal fez uma aprendizado na área de transportes e em prosseguimento estudou Ciências Econômicas na Universidade de Paderborn e nos Estados Unidos. Encarregado pela Fundação Friedrich-Ebert, trabalhou vários anos na América do Sul”. Trabalhou na América do Sul? Onde? Entre o Canal do Panamá e a Tierra del Fuego há inúmeros países.
Um exemplo do comércio. Na caixa do correio encontro um folheto de uma loja chique da cidade no qual vejo a seguinte aberração: “Camisetas-Benchmarking. +invariáveis há 20 anos, +algodão sul-americano, +embalagem dupla por 29,00 euros”. Algodão sul-americano! Afinal donde vem o algodão? Do Brasil? Da Guiana Francesa? Do Chile ou quiçá de uma país chamado América do Sul?
No folheto de uma grande cadeia de supermercados vejo a foto de uma embalagem com a seguinte inscrição: “Rosbife sul-americano”! Curiosamente, o concorrente deste supermercado anuncia, com foto semelhante, um “Filé de peixe sul-americano”. Donde será que vem o rosbife sul-americano? Dos pampas argentinos? Do Uruguai? De alguma fazenda de Goiás?
Tentei descobrir a procedência do filé de peixe sul-americano. Casualmente encontrei o gerente quando me encontrava no supermercado. Mostrei-lhe a embalagem e perguntei: “Donde vem este filé de peixe sul-americano?” O homem pegou a embalagem, fitou-a, fitou-a longamente e disse: “Da América do Sul! Está escrito na embalagem”. Desisti.
Já que estamos presenciando o Mundial de Futebol registro um exemplo típico de sincretismo geográfico referente a este esporte. Em agosto de 2011 houve uma partida amistosa entre as seleções do Brasil e da Alemanha. Na época Mano Menezes era o técnico da seleção brasileira. O encontro teve lugar no Estádio do VfB em Stuttgart. A Alemanha venceu por 3 a 2. Mano Menezes, em entrevista à imprensa, comentou: “Desde que sou técnico da Seleção Brasileira, já faz um ano, foi este o primeiro jogo no qual o adversário nos superou em todos os sentidos”.
No dia seguinte o maior jornal local alemão comenta:”A interpretação de Mano Menezes foi muito franca o que não facilita as coisas para o técnico da Seleção Sul-Americana”.
No dia da abertura da Copa um jornal alemão escreve o seguinte: “Com a cerimônia de abertura e o jogo entre o país anfitrião e a Croácia começa hoje, em São Paulo, o Campeonato Mundial de Futebol. A equipe sul-americana entra em campo carregando um enorme peso: ela terá que conquistar o sexto título”. A Seleção Brasileira é a equipe sul-americana.
Não é somente na mídia escrita que se ouvem tais “sincretismos geográficos”. Durante os jogos da Copa em andamente é comum na TV ouvir falar da equipe uruguaia como sendo a equipe sul-americana. O mesmo já se ouviu da equipe chilena, da argentina, da colombiana… Todas elas, antes de serem chilena, argentina ou colombiana, são sul-americanas.
Além disso, no que diz respeito à pronúncia, ouve-se coisas engraçadíssimas. As cidades ou os estádios nos quais são realizados os jogos, falados pelos homens e mulheres da TV, soam pra doer: Curitchiba, Guiaba, Portalechre, Sankpaulo, Fortaletza, Retzife, Maracaná… e a “Marcha Real”, o hino nacional da Espanha, passou a ser a “Marca Real”.
Terça-feira, 17 de junho, teve lugar a partida entre a Bélgica e a Argélia em Belo Horizonte. No momento em que a Argélia fez o primeiro gol o comentarista saiu com a seguinte observação: “Os africanos estão complicando a vida dos belgas”. Sincretismo geográfico também em relação à África! Estão realmente vendo a árvore como um todo. Desliguei a televisão.