Se a Europa tivesse escutado…
22 abril 2014 às 18h05
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Vladimir Putin em novembro de 2013 deu o recado: “À Rússia não interessa uma Ucrânia dividida”
No auge das demonstrações na Praça Maidan, em Kiev, um estranho episódio ainda não esclarecido continua sendo motivo de acirradas discussões. O assunto preocupa especialmente os familiares e parentes das dezenas de mortos durante as manifestações que beiravam à guerra civil. É provável que apenas um pequeno grupo de “iniciados” de alguns serviços secretos tenha conhecimento do verdadeiro desenrolar da obscura ocorrência. O assunto, envolto em mistério, inicialmente discutido em Kiev atrás dos bastidores, parecia ter sido abafado. Passadas oito semanas, o caso voltou aos jornais.
Continuam vivas as imagens televisionadas da situação caótica na Praça Maidan. De um lado os manifestantes; do outro, soldados de elite da polícia ucraniana, o batalhão Berkut, devidamente protegidos com vestimenta especial, capacetes, elmos, viseiras de vidro à prova de bala, armados com modernas armas, postados estrategicamente nas ruas vizinhas à Praça Maidan e no topo de alguns edifícios públicos. Começa o tiroteio. O desfecho é conhecido: dezenas de mortos.
As vítimas ainda não tinham sido removidas quando uma inverossímil discussão esquenta os ânimos: “Quem é que atirou”? Foi a pergunta que se fez e que continua sem resposta convincente até hoje. Víktor Yanukóvytch, então presidente da Ucrânia, hoje exilado na Rússia, reiteradamente negou ter dado ordens para atirar sobre os manifestantes e refuta toda e qualquer responsabilidade.
Logo após o incidente comentou-se que ativistas radicais da Praça Maidan teriam-se infiltrado entre os soldados de choque da polícia ucraniana. Os infiltrados teriam usado a mesma vestimenta, os mesmos elmos e as mesmas armas dos soldados oficiais de forma que, no auge da confusão, não tendo sido identificados, teriam iniciado o tiroteio contra os seus próprios companheiros. Um gesto estapafúrdio? À primeira vista, até parece.
Quem defende esta argumentação é a médica Olga Bogomolets, ela própria uma ativista da Praça Maidan que, logo após o incidente declarou: “A oposição (os ativistas da Praça Maidan) e outras forças estão atrás do tiroteio”. Olga Bogomolets é candidata oficial, entre outros 43 concorrentes, para as eleições presidenciais marcadas para 25 de maio próximo.
O atual governo interino confronta-se com a difícil tarefa de esclarecer definitivamente quem foram os autores dos tiros na Praça Maidan. O assunto está envolto em profunda controvérsia e o governo interino procura os culpados unicamente em círculos do governo destituído, uma atitude que impede uma investigação imparcial.
Quarta-feira, 2 de abril passado, Arsen Awakow, atual ministro do interior do governo provisório da Ucrânia, em entrevista à imprensa tornou público um documento com os resultados da investigação: “Temos provas evidentes de que o ex-presidente Víktor Yanukóvytch é responsável por esta ação que ele declarara como ação antiterrorista”, disse o ministro.
Valentin Naliwajtschenko, atual chefe do serviço secreto ucraniano, presente à entrevista, emendou: “Há claros indícios de que elementos do serviço secreto russo, o FSB, estiveram na Ucrânia a pedido do serviço secreto ucraniano para ajudar no planejamento e na execução da ação”.
Os resultados da rápida investigação apresentados pelo ministro Arsen Awakow não convenceram e foram vistos como tentativa para desvirtuar os fatos.
O assunto ficou ainda mais misterioso após tornar-se conhecido o conteúdo de uma conversa telefônica entre Urmas Paet, ministro das relações exteriores da Estônia, e Catherine Ashton, encarregada das relações exteriores da União Europeia.
Urmas Paet esteve em Kiev em fins de fevereiro passado. Ao regressar a Tallin, manteve contato telefônico com Catherina Ashton no qual afirmou: “Está cada vez mais claro que, atrás dos atiradores de elite não se escondiam homens de Yanukóvytch, mas membros do novo governo interino.”
Urmas Paet declarou estar preocupado com as tendências pró-europeias do governo interino em Kiev, que aparentemente não demonstra interesse em esclarecer quem foram os verdadeiros franco-atiradores durante os protestos na Praça Maidan.
A conversa entre Catherine Ashton e Urmas Paet foi interceptada, não se sabe por quem, e divulgada através do YouTube. Interrogado por jornalistas Urmas Paet não negou o telefonema, mas disse “ter sido interpretado erroneamente”. Catherine Ashton não se manifestou pessoalmente. Fontes de seu gabinete confirmaram o telefonema, mas negaram-se a fornecer maiores esclarecimentos.
Esquecimento
O caso é dúbio, suspeito e muito enigmático. E, como parece, há pessoas importantes, também fora da Ucrânia que demonstram ter interesse em cobrir o assunto com o manto do esquecimento. Enquanto isso o governo interino prendeu 12 membros da Berkut acusados de participar da matança mesmo sabendo que há fontes não ucranianas que afirmam ser impossível que os tiros tenham partido unicamente do lado da polícia de choque ucraniana, a Berkut.
Além disso, um alto membro da comissão investigadora do governo interino que optou não revelar seu nome, declarou: “Os resultados de minha investigação não estão de acordo com as declarações do ministro (Arsen Awakow) feitas durante a entrevista”.
Outra informação que põe em dúvida os resultados da investigação vem de um radioamador que afirma ter captado comunicações de um dos membros da Berkut durante o tiroteio. Segundo essa fonte um dos soldados de elite teria dito: “Nossos homens não atiram contra pessoas desarmadas”.
Em vídeos divulgados por vários canais televisivos da Europa pode-se reconhecer que os oposicionistas da Praça Maidan não foram alvos de tiros disparados apenas do topo de prédios públicos, mas também do topo do Hotel Ukraina localizado às costas dos manifestantes. Na época muitos jornalistas tinham-se hospedado naquele hotel que, curiosamente, estava sob controle dos oposicionistas.
Após estes incidentes não esclarecidos a polícia de elite Berkut foi desativada. Resta esclarecer quem são os policiais de elite do atual governo ucraniano que, de momento, enfrentam os separatistas no leste do país.
O drama da Ucrânia que começou com as demonstrações na Praça Maidan lideradas por Arsenij Jazenjuk (atualmente no poder), Vítali Klitscko e Oleh Tjahnybock em novembro de 2013 deslocou-se para o leste do país onde uma parte da população prefere fazer parte da Federação Russa.
É provável que os manifestantes da Praça Maidan e seus líderes não imaginavam que o movimento pudesse assumir uma dinâmica própria incontrolável que, como uma avalanche, tomasse conta do país. A Ucrânia está sendo vítima de um grupelho de políticos inexperientes mas ambiciosos que jogaram o país entre dois blocos, a Europa-Estados Unidos e a Rússia.
Para ambos os blocos a questão da Ucrânia antes de ser política é primordialmente uma estratégia geopolítica em cuja disputa os Estados Unidos e principalmente a Europa só terão a perder caso insistirem com a estratégia até agora posta em ação e que, até o momento, não contribuiu em nada para amainar a situação.
Vale lembrar que a Ucrânia é um país de trânsito para vários oleodutos e gasodutos para fornecimento de petróleo e gás da Rússia à Europa. Atualmente a Europa importa aproximadamente 30% de suas necessidades energéticas da Rússia. Entre os países consumidores encontram-se a Bulgária, Romênia, Hungria, Itália, República Checa, Áustria, Polônia, Eslováquia, Alemanha, os países bálticos e também a Turquia.
No leste ucraniano a situação é altamente explosiva e tudo indica que separatistas e forças de segurança encaminharão para um luta sangrenta.
Nesta semana está prevista uma conferência em Genebra com a participação de representantes da União Europeia, dos Estados Unidos, da Rússia e da Ucrânia. Nota-se um crescente nervosismo entre os representantes políticos da União Europeia, que se perguntam: “Afinal, o que quer Vladimir Putin?”
A pergunta demonstra, mais uma vez, o descaso de políticos da União Europeia que, aparentemente, não souberam escutar. Desde o início das manifestações na Praça Maidan sabe-se perfeitamente o que Vladimir Putin tem em mira, pois já em novembro de 2013 declarou: “À Rússia não interessa uma Ucrânia dividida”!
Eis aí um anúncio bastante preciso por parte de Vladimir Putin que num linguajar mais claro significa: “Ou tudo ou nada”. Há fortes indícios de que o astuto Putin está a caminho do “tudo” e, fato é que nem Europa, Estados Unidos e OTAN, até o momento, não dispõem de medida apropriada para impedir este desenvolvimento. Se a Europa ao menos tivesse escutado…