Por João Paulo Lopes Tito

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Os altos e baixos de Tonya Harding

Filme “Eu, Tonya” conta a história de atleta que conquistou a simpatia do público mas deixou os narizes dos juízes torcidos por distanciar-se da imagem ideal de “patinadora princesa” [caption id="attachment_118349" align="alignnone" width="620"] Atriz Margot Robbie interpreta Tonya Harding no cinema, papel com o qual concorre ao Oscar de Melhor Atriz na noite do próximo domingo[/caption] Fica bem mais interessante assistir aos Jogos Olímpicos de Inverno depois de conhecer a história de Tonya Harding, patinadora da equipe olímpica americana de 1994. A saga da brasileira Isadora Williams esse ano em PyeongChang, por exemplo, toma contornos épicos! Para quem sempre foi entusiasta da patinação no gelo então, o filme é um prato cheio. “Eu, Tonya” (2017) é o mais novo filme do diretor Craig Gillespie, e adota o tom de docudrama para recontar a polêmica história da atleta americana. Gillespie ficou conhecido pelo filme “Garota Ideal”, de 2007. Na verdade, não tão conhecido assim, o que o torna uma agradável surpresa dentre os lançamentos deste ano. No início da década de 1990, Tonya (interpretada de forma muito competente por Margot Robbie) teve uma rápida ascensão à fama depois de se destacar nas competições nacionais de patinação do gelo, tornando-se quase uma popstar. Foi a primeira mulher americana a realizar o salto triplo axel em competições. Adotando um visual um pouco mais rude do que as outras competidoras e optando por trilhas musicais bem menos clássicas, Harding conquistou a simpatia do público mas deixou os narizes dos juízes torcidos por distanciar-se da imagem ideal de "patinadora princesa". Uma espécie de André Agassi do gelo (exceto pelo fato de que, no tênis, os resultados não dependem de um julgamento tão subjetivo dos árbitros). Ares de tribunal A coisa começa a tomar tons mais pessoais e dramáticos quando caminha para "o incidente". Como todo mundo acompanhou pela imprensa na época (portanto, tecnicamente não estou dando nenhum spoiler), Tonya foi acusada de, junto com seu marido, Jeff Gillooly (encarnado pelo Sebastian Stan, o irreconhecível "Soldado Invernal" da Marvel), perpetrar ataques físicos contra sua principal concorrente, Nancy Kerrigan. No julgamento popular e midiático, Tonya sempre soube e teve participação ativa no ataque a Kerrigan. O filme, entretanto, tenta trazer uma nova visão ao incidente. É interessante notar que, apesar de se chamar "Eu, Tonya", o filme não se reveste da visão individual da personagem Tonya Harding. Pelo contrário, toma ares de tribunal, jogando o depoimento de testemunhas na tela para patrocinar a "versão Tonya" dos fatos. Durante vários momentos, entretanto, temos a nítida impressão de que a própria Harding não tem o domínio completo da realidade que lhe seria favorável e, eventualmente, lhe absolveria das acusações sérias impostas pela imprensa. Assim, a obra transita de forma bastante interessante entre os depoimentos da mãe de Tonya (magnífica, Allison Janney é favoritíssima ao Oscar), o segurança pessoal Shawn Eckhart (também em atuação muito boa), o repórter e produtor Martin Maddox (Bobby Cannavale mostrando o lado da mídia na parada) e uma das treinadoras de Tonya, Diane Rawling (interpretada por Julianne Nicholson, conhecida mais no mundo das séries). Em certo ponto, entretanto, causa certo incômodo a tentativa do diretor de retirar qualquer autoria do discurso do filme. Sim, sabemos que a versão construída na tela não pertence a ninguém especificamente, isso foi informado logo nos créditos iniciais com os cortes no estilo entrevista. Mas não bastasse isso, os próprios personagens, no decorrer da história, assumem um tom onisciente e quebram a quarta parede, dirigindo-se diretamente ao espectador para transmitir suas impressões. Esse efeito utilizado mais de uma, duas ou três vezes descamba para a propaganda publicitária, tirando um pouco da credibilidade da narrativa e afastando o espectador do universo do filme. A experiência perde um pouco da imersão absoluta. White trash [caption id="attachment_118350" align="alignnone" width="620"] Allison Janney, que também concorre ao Oscar, na categoria de Melhor Atriz Coadjuvante, interpreta a mãe má de Tonya Harding[/caption] Um lado muito importante e pouco discutido que o filme traz também diz respeito ao racismo e à pobreza nos Estados Unidos - assunto de fundamental importância na Era Trump. Tonya era branca, pobre, violentada diuturnamente pelo namorado e desprezada pela mãe. A perfeita encarnação do conceito de "white trash", construído desde o século 19, e que pode ser definido como as letras miúdas no contrato que dá acesso ao "sonho americano". Desde a época das comunidades pobres de imigrantes europeus, segregadas pelos "verdadeiros americanos" antes da guerra civil americana em nome da pureza hereditária (a chamada "one-drop rule" ou regra da gota de sangue única, em que americanos legítimos não podiam se casar com imigrantes europeus), existe um nicho de pessoas brancas, operárias, pobres e sem instrução que enfrenta muito mais dificuldade em ascender socialmente na terra das oportunidades. A América não é tão grandiosa para essas pessoas. E esse discurso é brutalmente escancarado para Tonya (e para nós, inocentes espectadores) quando da fala de um dos árbitros, ao justificar uma nota baixa a uma performance da atleta: Harding não é a imagem que as pessoas querem como representante dos Estados Unidos da América. Meritocracia não é a única moeda de troca. "Eu, Tonya" está entre os indicados à 90ª edição do Oscar. Margot Robbie concorre na categoria de Melhor Atriz, Allison Janney na de Melhor Atriz Coadjuvante e Tatiana S. Riegel é a responsável pela indicação na categoria de Melhor Edição/Montagem. O prêmio será merecidíssimo, caso venha para qualquer uma delas. Com uma trilha sonora vibrante - parte do universo de Tonya da vida real - as duas horas de projeção passam voando, alternando entre momentos de euforia, melancolia e até perplexidade (essa última, quase sempre, de responsabilidade dos personagens de Stan e de Janney). Tonya Harding foi - e permanece - como um ponto fora da curva na história da patinação do gelo. Mas sua vida na tela nos faz lembrar que, na carreira de qualquer atleta, por mais que pareçam duros, os tombos da pista de patinação são apenas a ponta de um iceberg muito mais profundo. PS: Não deixe de assistir no YouTube o vídeo completo da performance real de Tonya Harding em Lillehammer, nos Jogos Olímpicos de Inverno de 1994. Emocionante. João Paulo Lopes Tito é advogado e crítico de cinema

O lado de cá dos outdoors

"Três Anúncios para um Crime"caiu nas graças da crítica especializada e do público dos principais festivais pelos quais passou; ganhou quatro Globos de Ouro e tem muias chances com o Oscar [caption id="attachment_115010" align="alignnone" width="620"] Frances McDormand, que faz a protagonista Mildred Hayes, é favoritíssima ao Oscar[/caption] Poucos títulos definiram de forma tão eficaz a trama de uma obra como "Three Billboards Outside Ebbing, Missouri" - que se fosse traduzido ao pé da letra, daria em algo como "Três outdoors à beira de Ebbing, Missouri". Aqui no Brasil, o filme mais recente de Martin McDonagh ganhou o rótulo de "Três Anúncios para um Crime" (2017), retirando completamente a essência de estudo de personagens que é essa obra. Logo de cara, "Três Anúncios" caiu nas graças da crítica especializada e do público dos principais festivais pelos quais passou. Estreando no Festival de Toronto sob uma avalanche de aplausos depois de levar o prêmio de melhor roteiro no Festival de Veneza, atravessou o tapete vermelho do Globo de Ouro em grande estilo, faturando quatro das seis indicações que recebeu (Melhor Filme de Drama, Melhor Atriz em Filme de Drama, Melhor Ator Coadjuvante e Melhor Roteiro). Na categoria de Melhor Diretor, McDonagh perdeu para Guillermo Del Toro, de "A Forma da Água", e em Melhor Trilha Sonora, Alexandre Desplat, também de "A Forma da Água" levou o caneco. O título original funciona bem melhor do que qualquer outro que poderiam inventar porque, a despeito do que possam falar, a trama é bastante simplista: numa modorrenta cidade do Missouri, uma mulher perde a filha em um crime brutal, e após sofrer com a incompetência da polícia local em esclarecer o crime, resolve alugar três outdoors para protestar. O primeiro ato já coloca isso no colo do espectador, porque o que importa é como as coisas vão se transformar a partir da fixação dessas placas. Vivos e mortos Existe muita influência das grandes obras policiais de humor negro no filme de McDonagh. A pergunta "Quem Matou Laura Palmer?", por exemplo, que tangencia a trama de "Twin Peaks", aclamada série de David Lynch, se aplicaria perfeitamente aqui, não só por utilizarem a morte de uma adolescente como ponto de partida. Em ambos, o crime em si não interessa. Não é reconstituído, não está no centro das atenções dos personagens e não serve de gancho para fisgar o telespectador. Os mortos já estão mortos e permanecem apenas como pano de fundo. O que interessa é como os vivos vão se virar - o que, frequentemente, desencadeia situações absurdas, patéticas, cômicas, comoventes e mais um mar sem fim de sensações. Por outro lado, o padrinho maior de "Três Anúncios para um Crime" parece mesmo ser "Fargo", um clássico de 1996 dirigido pelos irmãos Joel e Ethan Coen, e que se reforça no trabalho espetacular de atuação de Frances McDormand (que, aliás, é casada com Joel Coen). Neste filme de McDonagh, o tom peculiar dos personagens, a forma de expô-los em todas as suas contradições, nos incidentes e no poder do imprevisível, tudo remete à escrita dos Coen. Parece difícil escolher outra atriz para protagonizá-lo, senão a própria Frances. Por outro lado, a direção do longa não é nada mais do que competente. Plana em significados, esmera-se em passar a mensagem do roteiro de forma direta, sem muita malandragem. Não há o que se comparar com o requinte de Lynch ou a urgência disfarçada dos Coen - ambos inspirações com uma marca autoral mais profunda. Obviamente que a direção não se restringe a aspectos de fotografia, mas fica a sensação de que o roteiro é muito mais forte do que a direção em si. Spoiler Aliás, um olhar mais detido sobre o tão elogiado roteiro revela inúmeros furos, contradições, diálogos desnecessários e saídas fáceis, evidenciando que a sua intenção não foi especificamente o modo de contar a estória, mas sim a profundidade dos personagens. (E aqui, alguns spoilers que comprovam esse argumento - se você ainda não assistiu ao filme, recomendo que pule para o próximo parágrafo: [1] Os outdoors alugados por Mildred Hayes, além de servirem de pressão em cima do xerife, estão no local onde Angela Hayes foi morta, numa estrada de pouco movimento. No decorrer do filme, entretanto, a estrada apresenta um movimento imensamente maior, com trânsito constante, repórteres, funcionários e a própria polícia, o que esvazia um pouco o significado das placas. [2] Em que pese não terem relação direta entre si, o círculo de personagens parece muito restrito. Vítimas e agressores se topam o tempo todo, tudo o que acontece na cidade está ligado a Mildred, ao xerife Willoughby ou ao policial Dixon. Ebbing, Missouri, é na verdade quatro ou cinco pessoas. [3] As variações no tom do roteiro o fazem perder o foco. O xerife Willoughby, por exemplo, sai de uma figura suspeita e cínica, no início do filme, a um mestre sábio onisciente, quando passa a enviar cartas a seus pupilos. James, o anão, vira uma figura patética simplesmente por ser anão. Charles, o ex-marido, passa de uma interessante e incômoda verruga no mundo sentimental de Mildred para um alívio cômico de sessão da tarde. [4] A cena do suco de laranja, no hospital, é um carrossel de emoções baratas, ridículas e desnecessárias. Enfim. Ao final, todos esses aspectos viram uma tentativa meio frustrada de emular o clima dos filmes dos irmãos Coen, tirando a energia que o roteiro poderia conseguir por si só). Favorita ao Oscar [caption id="attachment_115011" align="alignnone" width="620"] Numa cidadezinha do Missouri, uma mulher perde a filha em um crime brutal; após a polícia não esclarecer o crime, ela resolve alugar três outdoors para protestar[/caption] O forte do filme, sem dúvida nenhuma, são os personagens. Estruturados em diversas camadas, apresentam uma profundidade interessantíssima responsável por carregar o filme nas costas. Frances, que faz a protagonista Mildred Hayes, é favoritíssima ao Oscar (vale lembrar que a Academia, até a presente data, nem divulgou ainda seus indicados!), com toda a justiça do mundo. Woody Harrelson também passa a credibilidade de sempre com seu xerife condenado (pelo destino, por Mildred e pelo espectador). E Sam Rockwell fecha a tríade com o famigerado policial Jason Dixon, um verdadeiro pacote de defeitos humanos mimado pela mãe, mas que ainda assim consegue nos despertar certa compaixão no fechar da conta. Créditos ao McDonagh roteirista. Há ainda espaço para personagens secundários muito bons, como o ex-marido Charlie (John Hawkes), o carente James (Peter Dinklage, de Game of Thrones) e o tótem moral Abercrombie (Clarke Peters) - todos com suas aparições menores, mas fundamentais. No frigir dos ovos, o filme é sobre raiva, e até onde ela pode mover alguém respaldado por objetivos fortes. Ou sobre a raiva como autoflagelação por uma culpa insuportavelmente grande. Ou sobre raiva como sintoma de uma impotência, diante da autoestima baixa. Não interessa. Porque os outdoors - muito mais sintomas do que causas - continuarão gritando do lado de fora de Ebbing, Missouri.

No mundo dos mortos, a Pixar celebra a vida em um de seus melhores filmes

Ganhador do Globo de Ouro 2018 de melhor animação, “Viva - a Vida É uma Festa!” foi feito com muito capricho, num esmero técnico inédito até para as produções da produtora americana [caption id="attachment_114364" align="alignnone" width="620"] Miguel Rivera é um garoto mexicano aspirante a músico, que precisa enfrentar os dogmas familiares para ir atrás de seu sonho[/caption] Os Estúdios Pixar parecem nunca errar. Filme após filme, se firmam cada vez mais como um modelo técnico e sentimental a ser seguido, sabendo explorar temas delicados de forma inteligente e divertida. O resultado é o respeito extremo com seu público-alvo - as crianças -, sem excluir aqueles responsáveis por levá-las às salas de cinema: os adultos. Com “Viva - a Vida É uma Festa!”, que acaba de ganhar o Globo de Ouro 2018 de Melhor Animação, a companhia se superou uma vez mais. Dirigido por Lee Unkrich (o nome por trás do emocionante “Toy Story 3”, de 2010, e Adrian Molina, o filme conta a história de Miguel Rivera, um garoto aspirante a músico que precisa enfrentar os dogmas familiares para ir atrás de seu sonho. Mas os Rivera rejeitam a música em todas as suas expressões, impondo ao garoto obediência à continuidade do sugestivo ofício de sapateiro, passado de geração a geração. Sapatos para quem precisa manter os pés no chão - ou para quem não consegue alçar vôo, pregaria o teólogo da Libertação Leonardo Boff. Trata-se de uma animação, não nos esqueçamos disso. Existem personagens caricatos, momentos pastelões e até o toque musical característico das produções Disney/Pixar, tudo em busca de fisgar o público infantil. Mas tudo feito com muito capricho, num esmero técnico inédito até para as produções da empresa. As texturas, cenários, iluminação e a ação em geral estão melhores do que nunca! A personagem de Inez (no original, ela chama-se “Coco”, diminutivo de "Socorro"), bisavó de Miguel, por exemplo, é de uma perfeição estética fascinante. Experiência renovadora Como toda produção Pixar, a temática é profunda. Miguel é um garoto absolutamente comum, com uma avó superprotetora (hoje em dia, dir-se-ia "helicóptero") e a impotência diante da imposição superior. E, como já é comum em roteiros da Pixar ou da Disney, o ponto de virada para o segundo ato vem com a revolta do protagonista - foi assim também em “Toy Story” (1995), “Procurando Nemo” (2003), “Valente” (2012), “Divertida Mente” (2015), “Moana” (2016). Aquela chutada de balde que rompe com o status quo e permite a experiência renovadora. A rebeldia necessária que impulsiona o sujeito para o mundo e dá aquela provocada em seu superego. Aliás, interessante perceber essa intenção camuflada que a Pixar utiliza ao trazer temas universais para universos tão peculiares: a paternidade discutida em “Procurando Nemo” e “Monstros S/A”, a formação da identidade coletiva e individual em “Toy Story” e “Os Incríveis” (2004), a família e a memória em “Up - Altas Aventuras” (2009) e agora nesse belíssimo “Viva - a Vida É uma Festa!”. Tudo isso sem nunca subestimar a inteligência de seu espectador (aliás, em um certo diálogo, o personagem Hector, de “Viva”, chega a dizer que está tomando cuidado com o que fala, pois existe criança ouvindo, em uma piada de duplo sentido perceptível apenas para os adultos da sala). Memória e respeito [caption id="attachment_114365" align="alignleft" width="300"] Filme é um dos mais emocionantes já produzidos pela Pixar, utilizando-se da morte como veículo para discutir a memória e a família[/caption] O fato é que “Viva” consegue ser um dos filmes mais emocionantes já produzidos pela Pixar, ao utilizar-se da morte como veículo para discutir a memória e a família. Tudo contextualizado com o “Dia de los muertos”, uma data significativa para os mexicanos. Aliás, é bom dizer que foram necessários mais de três anos de pesquisas para o roteiro ficar pronto, numa demonstração singular de respeito às tradições e culturas do México - algo pouco comum a Hollywood, acostumada, em geral, com humilhações ou exageros ao retratar países estrangeiros. O respeito na tela é tocante. A parte musical do filme também impressiona, com canções belíssimas. Aliás, o filme também concorreu ao Globo de Ouro como Melhor Canção original com a música “Remember Me” ("Lembre de Mim"), que perdeu para o tema do filme “O Rei do Show” (“This Is Me”). Em todo caso, pode-se dizer que “Remember Me” é a canção-tema mais marcante desde “Let it Go”, e deverá faturar alguns prêmios. As adaptações das canções no filme são muito bem feitas ao português (aliás, outro aspecto que a Disney e a Pixar sempre priorizaram em seus filmes). Impossível não sair do cinema cantando. “Viva - a Vida É uma Festa!” é daqueles raros filmes que, de uma forma muito natural, te carregam no colo durante todo o tempo de exibição, deixando-te com certo aconchego no coração ao voltar pra casa. Não há quem não se lembre, emocionado, de um ente querido que já se foi, ou de uma criança que acaba de chegar à família. O escritor Amós Oz, certa feita, disse que estaremos no mundo só até o dia em que morrer a última pessoa a se lembrar de nós. Carregando essa premissa, “Viva” deixa essa missão a todos os que se importam: estar vivo é também manter viva a memória dos que você ama, dos que compõem sua identidade.

Lágrimas no escuro – o drama pungente de “Extraordinário”

Filme narra a história de uma criança com deformação no rosto que sofre bullying na escola, e tem de enfrentar a conhecida saga da falta de aceitação social [caption id="attachment_112477" align="alignnone" width="620"] Julia Roberts contracena com o pequeno Jacob Tremblay, que interpreta Auggie Pullman, garoto com deformação no rosto[/caption] Preparem os lenços. Foi o comentário anônimo que ouvi após o trailer de "Extraordinário" (2017), no escuro de uma dessas sessões de cinema. E o marketing que acompanhou todo o período de divulgação do filme se confirmou na semana passada, com a estreia em circuito nacional: muita gente fungando na penumbra. A proposta do diretor e roteirista Stephen Chbosky - de "As Vantagens de Ser Invisível" (2012) - foi tratar do bullying, um problema cada vez mais frequente nas escolas americanas (e do mundo todo). Ao escolher como protagonista o pequeno Auggie Pullman (encarnado por Jacob Tremblay e alguns quilos de maquiagem), elevou a questão ao máximo, já que o garoto apresenta o rosto deformado por complicações no nascimento. Se crianças comuns já sofrem nas mãos dos valentões, imagine um pequeno pintado com a cara do Corcunda de Notre Dame. Aliás, talvez o grande problema do longa esteja justamente nesse aspecto. Ao aproximar a sistemática da história da de uma fábula infantil, inclusive com a narração de Auggie em primeira pessoa, a produção infantiliza a visão de mundo da obra, tornando o enfrentamento da questão superficial. Se por um lado estimula o uso do lenço durante a sessão, por outro, afasta o espectador do questionamento maduro. Auggie mora com os pais - o simpático Nate (Owen Wilson) e a vibrante Isabel (Julia Roberts) - e com a irmã Via (Isabela Vidovic), que o seguraram na redoma doméstica o quanto puderam. Até que a mãe achou por bem mandá-lo à escola comum, quando a educação informal do lar começou a dar mostras de insuficiência. E é aí que o coração de todos os pais e mães da plateia começa a apertar (que eu tenha notado, não houve crianças chorando nesse filme). Armas Existem reminiscências não intencionais de "ET - o Extraterrestre" (1982) e da saga "Harry Potter" em diversas passagens do longa. A temática se aproxima bastante, já que no mundo de "Extraordinário" o sonho de Auggie é ser astronauta. Em sua pequena cabecinha, é a única maneira de conciliar o fato de não ser parte do meio, mas não ser rejeitado. Tal qual um bruxo vivendo entre mortais, ou um extraterrestre, o garoto passa a vida dentro de fantasias (literais e sociais) esperando a hora em que alguém lhe enxergará verdadeiramente, em sua essência (o filme também tem seus 'Elliots', 'Ronis', 'Hermiones' e até um 'Dumbledore' chamado 'Mr. Tushman', traduzido como 'Sr. Buzanfa'). Um grande trunfo da obra é ramificar a narrativa em determinado ponto. Quando achamos ser um filme sobre o pequeno Auggie, Chbosky mostra as cartas de outros personagens, ampliando o espectro de análise - inclusive com a mudança de narrador. Passamos a notar que, por maior que seja a piedade em relação ao garotinho protagonista, outros astros orbitam em sua volta e são diretamente afetados por ele. Lenços e lentes Cada um tem sua necessidade de ser reconhecido, aceito e valorizado autonomamente. Ao ressaltar o problema físico de Auggie quase ao ponto de justificar o bullying, Chbosky faz o contraste com seus parceiros e reforça a inutilidade dos rótulos sociais: quem é normal, afinal de contas? Não somos todos anormais, em algum ponto? Não usamos, todos, máscaras? Não fosse extremamente didático e, por vezes, pateticamente explícito (a cena do valentão levando sermão na sala do diretor beira ao ridículo), com soluções fáceis, personagens planos (todo mundo é bonzinho, exceto os maus) e uma trama característica dos mais agradáveis filmes da sessão da tarde, "Extraordinário" poderia se juntar ao time de "Precisamos Falar sobre Kevin" (2011), "Carrie - a Estranha" (1976), "Elefante" (2003) ou mesmo "Super Dark Times" (2017) como arautos de uma nova forma de pensar o bullying escolar. Afinal, é mesmo necessário colocar o problema em perspectiva - quem é que não tem aquele tio conservador, ou aquele amigo macho-man que ainda vaticina "Ah, os moleques vão crescer frescos desse jeito! No meu tempo, não tinha esse tipo de frescura" -? Independentemente do que mais possa se falar sobre o filme, não deixe de levar os lenços quando for ao cinema.

Novo filme de Laís Bodanzky debate o papel social da mulher

"Como nossos pais" analisa as dinâmicas familiares brasileiras, em que a essencial figura feminina se vê em meio à carga brutal de afazeres e o drama da implacável falibilidade

Notícias de uma guerra particular goianiense

O curta de Isaac Brum, "Intervenção", mostra que o cinema goiano tem se esforçado bastante e, após muito tempo, parece estar no caminho certo. Os questionamentos levantados não podem parar [caption id="attachment_104526" align="aligncenter" width="620"] Gravação de cena do curta "Intervenção", de Isaac Brum | Foto: Flávio Sousa[/caption] Parece o Repórter Esso, mas não é. Os primeiros ruídos que saem da tela vêm de um rádio noticiando a violência urbana em Goiânia - novidade. A voz firme do locutor, entretanto, deixa ver uma ansiedade em posicionar o ouvinte: Estamos vivendo uma guerra, e quem paga o preço é a população. Assim decidiu começar Isaac Brum, que assina o roteiro e a direção de seu curta "Intervenção" (2017). O filme era um sonho antigo do diretor, que investiu grana do próprio bolso para vê-lo sair do papel. Em que pese a dificuldade em poupar dinheiro, a vantagem é a falta de burocracia e a liberdade em produzir. Numa produção Sublimação Filmes e É Nóis Ki Tá Produções, com apoio da Ideia Produções, bem como de parceiros como Raphael Gustavo da Silva (coordenador do Festival Audiovisual Vera Cruz - Favera) e Diego D'Ascheri (um dos fundadores do canal Entre Brisas no YouTube), Isaac reuniu um bom time de profissionais para movimentar a tela por 17 minutos de projeção, e mais uma infinidade de questionamentos sociais e culturais em torno da famigerada "guerra às drogas". A fotografia, a cargo de Marcos Tomazetti e Léo Rocha, é predominantemente de um cinza desesperançoso. A câmera gira com uma simbiose interessante com a própria cidade, evidenciando e fazendo parte de cenários já conhecidos de todos nós goianos, mas vez por outra penetrando em bairros residenciais anônimos. Tudo isso somado a uma trilha seca, deliberadamente caótica, traça o plano de fundo deprê das relações utilitaristas do dia-a-dia: o filho que precisa buscar a mãe, o traficante que precisa entregar a droga, o moto-boy que espera o serviço aparecer, a classe média que força a amizade para descolar um barato. Mas no meio de todo o marasmo da rotina caótica de uma grande cidade, varando ruas e expectativas, também está o Estado, administrando - de forma competente ou não, fantasiosamente ou não - a vida dos cidadãos de bem e afastando-os do mal. Mas quem é o famigerado cidadão de bem? Como descobri-lo e separar o joio do trigo, numa sociedade onde o aparato policial repressivo (que dirá o investigativo!) não tem condições de fazer um trabalho prévio bem feito, e sofre para intervir quando demandado. E quem demanda? A voz no rádio? O já citado cidadão de bem? O superior hierárquico? De onde vem a pressão, e como amainá-la? O fato é que, quando o recipiente é pequeno, a tampa acaba explodindo. Quem começa e quem termina a guerra às drogas? Quem são os atores desse jogo, as peças fundamentais, e quais suas funções? Trazendo questionamentos intermináveis, o curta de Isaac Brum carrega um papel conhecido no cenário nacional, mas incomum e necessário ao cinema goiano: o de parte ativa na busca por mudanças sociais. Em que pese a atuação eventualmente questionável de um ou outro ator durante a obra, justamente esse ponto traz uma aproximação interessante à obra de Kleber Mendonça Filho, mormente em "O som ao redor". Demandando técnicas bastante temerárias de atuação, o diretor pernambucano foi atrás de personagens crus, quase amadores, para retratar o marasmo e o improvável da rotina urbana. Aqui com Isaac, é também perceptível essa camada, o que não raro contribui para uma urgência e uma tensão que permeia todo o filme (a bela cena em que o personagem Dudu caminha por uma rua residencial, cercado por sons absolutamente "residenciais", desconhecendo o que o destino lhe reserva representa muito dessa tensão). Enfim, o curta de Isaac Brum mostra que o cinema goiano tem se esforçado bastante e, após muito tempo, parece estar no caminho certo. Os questionamentos levantados não podem parar. "Intervenção" tem sua estreia oficial marcada para o 17° Goiânia Mostra Curtas, em outubro, e poderá ser conferido no decorrer da programação da "Curta Mostra Brasil" e da "Curta Mostra Goiás", dentro do festival.

Assista ao trailer do filme:

https://vimeo.com/229710711

“Fábula indigesta”

Por mais lúdica e simples que seja, a história de “Okja” nos mostra a cruel verdade que está aí para todos verem, mas à qual muitos viram a cabeça [caption id="attachment_102498" align="alignleft" width="620"] Cena do filme "Okja" (2017)[/caption] O novo filme do diretor sul-coreano Bong Joon-ho, "Okja", começou a gerar alardes antes mesmo de estrear. E as polêmicas que carrega têm a ver, basicamente, com uma expressão, utilizada em dois contextos diferentes: "distribuição em massa". A primeira questão surgiu no Festival de Cannes desse ano, no qual a obra concorria à Palma de Ouro. "Okja" é uma produção da rede de streaming Netflix, uma plataforma virtual que distribui suas produções de forma direta. Até o ano passado, era impossível encontrar uma produção original Netflix num cinema perto de você. Os críticos em geral e, posteriormente, a própria organização do evento passaram a questionar se um filme que não tem distribuição regular estaria apto a concorrer. Afinal, como premiar uma obra que não foi exibida em nenhum cinema?   Dessa vez, passou batido. Quando a logo da Netflix apareceu, pela primeira vez na história, na tela de exibição do Grande Teatro Lumière do Palácio de Festivais, a plateia vaiou. Mas o filme de Bong Joon-ho foi exibido mesmo assim, e aplaudido ao final. Concorreu, mas não levou nada. De todo modo, levantar essa questão quanto à forma de distribuição de uma obra audiovisual serviu para questionar a própria essência dos filmes e a sua função social. Afinal, se uma obra não é amplamente distribuída e de acesso fácil a qualquer pessoa do mundo, qual a sua serventia? Para quê produzir, se não se vai exibir? A quem é conveniente elitizar o acesso à produção cinematográfica? Enfim, acertados ou não, questionamentos pipocaram para todos os lados. Esse tipo de polêmica não estava nos planos do diretor Joon-ho. Mas, sem dúvida nenhuma, foi um excelente marketing para outro tipo de questionamento - esse sim, pensado cuidadosamente por ele na trama do filme. A segunda polêmica envolvendo "distribuição em massa". "Okja" é o nome de um superporco. "Superporco" é um animal geneticamente modificado, com a forma aproximada de um hipopótamo. Sua carne é comestível, mas com sabor ainda desconhecido (um dos personagens brinca, a certo ponto: "vamos torcer para que seja gostoso".) E é a principal esperança de grana fácil para a "Mirando Corporation", uma espécie de Friboi mundial. O filme começa com uma propaganda didática da Mirando, na qual a CEO Nancy Mirando (interpretada pela sempre competente Tilda Swinton) explica para seus investidores, jornalistas e a nós, espectadores, a premissa básica do produto - e do filme. O mundo passa por uma crise na produção de alimentos. O futuro é incerto. Com base nisso, a espécie humana precisa se virar para continuar sobrevivendo. A esperança surge quando a Mirando, uma empresa ambientalmente comprometida (ra-ram) encontra por acaso (ra-raaaam) uma espécie nova na natureza: os superporcos. Nancy então assume seu lado Silvio Santos e esclarece que a Mirando conseguiu reproduzir em cativeiro a nova espécie, resultando em 26 novos filhotes. Tais espécimes foram distribuídas a fazendeiros ambientalmente comprometidos do mundo inteiro. A partir daí, como uma espécie de Presidente Alma Coin, de Jogos Vorazes, Nancy declara aberta a competição na busca do melhor superporco do mundo. O resultado seria conhecido depois de 10 anos. "Okja" é o nome que recebeu o superporco distribuído à Coreia do Sul, ao pai de Mija (interpretada pela ótima Ahn Seo-Hyun). Dez anos depois, quando a Mirando retorna para buscar o animal, Mija e Okja não querem mais desgrudar uma da outra. E a garota vai ter que lutar para não se separar da sua melhor amiga. A estória é contada em forma de fábula. O que pode, num primeiro instante, desagradar aos que buscam um filme mais sério, de questionamento social profundo. Mas não se apresse: Okja não é um filme para crianças. Tudo bem que o roteiro, no geral, lembre um típico filme da Sessão da Tarde, com saídas meio óbvias de roteiro e um ritmo bastante previsível. A jornada do herói, descrita por Joseph Campbell em "O herói de mil faces", está ali o tempo todo, cumprindo requisitos básicos que Syd Field impõe em seu manual de roteiro. Temos a protagonista destemida, a vilã caricata (só faltou ter um bordão), os camaleões, os pícaros, mentores. Jake Gyllenhaal surge num exagerado papel secundário, Steve Yeun parece reprisar seu papel de Glenn em "The Walking Dead", Paul Dano aparece sóbrio, consistente, interpretando o que pediram para ele interpretar. Giancarlo Esposito tira os óculos, mas ainda não teve oportunidade de mostrar mais do que o já conhecido Gus Fring, de "Breaking Bad". Está tudo lá, mais ou menos repetido. A ponto de antevermos o que vai acontecer no final. O formato de fábula, entretanto, adiciona um elemento interessante. Remonta aos filmes de Hayao Miyazaki e outros mestres da animação japonesa. Não por acaso, "Okja" lembra bastante Totoro, o mascote dos Estúdios Ghibli e símbolo da obra de Miyazaki (Tilda Swinton e Bong são fãs confessos). A trupe que acompanha Mija em sua jornada também lembra bastante equipes como a de Cowboy Bebop, Gantz, Yu Yu Hakusho, ou até mesmo a atuação desastrada da "Rocket Team" de Pokémon. Esse clima de anime permeia toda a obra, em momentos de tensão e de reflexão. E reveste o questionamento mais profundo da obra: o sistema de produção e distribuição de alimentos no mundo. Não à toa, Otto Von Bismarck teria dito que ninguém dormiria à noite se soubesse como são feitas as leis e as salsichas. O diretor Bong declarou que escolheu um porco como animal protagonista da trama porque achou que seria o mais comumente associado a comida. Pessoas comuns vêem bichinhos apenas de duas formas: estimação ou alimentação. E o porco seria o campeão em alimentação, com todo o seu bacon, pernil, presunto, salsichas, linguiças e tudo mais. Toda a saga de Mija por tentar salvar sua doce Okja da eliminação redunda na negação completa do cruel sistema de produção. E da impotência em enfrentá-lo. O sistema é triste, é indigno, frio, cruel. E necessário, ao mesmo tempo. A luta contra ele deve ser racional, equilibrada. A crítica bem-humorada à militância radical e desequilibrada, inclusive, é mostrada em vários trechos. Mas a realidade é pesada. Por mais lúdica e simples que seja a história, nos mostra a cruel verdade que está aí para todos verem, mas à qual muitos viram a cabeça. Os campos de produção agropecuários talvez sejam o mais próximo de campos de concentração que jamais conheceremos - as referências também são claras na tela. O próprio Bong Joon-ho virou pescetariano (alimenta-se só de vegetais e peixes) após a conclusão da obra. Não há final feliz. Não há como passar incólume por todos esses tipos de questionamento. E ainda que a saída oferecida pelo roteiro pareça ser a melhor para todo mundo, os próprios personagens não parecem aceitá-la muito bem. O que sobra é um melancólico sorriso de Mona Lisa. Uma pequena dica: não perca a cena pós-créditos. O recado que fica é que a militância não está morta, a luta não pode acabar. Pensemos, todos nós, no tipo de alimento que queremos em nossas mesas, e na forma como ele chega lá. Equilíbrio e racionalidade são a chave de tudo. Assista ao trailer oficial de "Okja": https://www.youtube.com/watch?v=rMQ-sruQ8aA    

Seguindo em frente, sem esquecer o passado

Baseado no livro chileno "Um pai de cinema", de Antonio Skármeta , "O Filme de Minha Vida" é o terceiro filme dirigido por Selton Mello, adaptado por ele e por seu parceiro nos longas anteriores, Marcelo Vindicato [caption id="attachment_101373" align="aligncenter" width="620"] Set de filmagens de "O filme da minha vida", dirigido pelo também ator Selton Mello[/caption] Quando Selton Mello veio a Goiânia, no dia 23 de julho, para a avant-première de seu mais novo filme, "O filme da minha vida", disse que gostaria muito que os goianos recebessem a obra como um presente. Uma flor, um bálsamo para os olhos. Porque, mais do que nunca, em tempos como os em que vivemos, precisamos de coisas assim: simples, sensíveis, bonitas e que toquem fundo o coração. E não há definição mais exata para a obra. Baseado no livro chileno "Um pai de cinema", de Antonio Skármeta (também autor de "O carteiro e o poeta" e fazendo uma ponta na tela), esse é o terceiro filme dirigido por Selton, adaptado por ele e por seu parceiro nos longas anteriores, Marcelo Vindicato. Considerando que o responsável pela fotografia é Walter Carvalho (responsável também por "Febre do Rato", "Baixio das Bestas", "O céu de Suely", "Central do Brasil", "Terra Estrangeira", "Carandiru", "Amarelo Manga" e, talvez seu trabalho mais primoroso, "Lavoura Arcaica"), já temos nessa pequena ficha técnica o indicativo de mais uma grande obra do cinema nacional. Tony Terranova, o protagonista vivido de forma competente por Johnny Massaro, deixa sua família na Serra Gaúcha para ir cursar a faculdade na cidade grande. Quando retorna, alguns anos depois, dá de cara com a ausência de seu pai, o francês Nicolas (o francês mais brasileiro do mundo, Vincent Cassel), que abandonou a esposa brasileira, Sofia (Ondina Clais Castilho), e voltou para a França. Simplesmente desapareceu, sem deixar motivo algum. Como é de se esperar, Tony entra numa espiral melancólica tremenda, dividindo seu crescimento pessoal com a vontade de descobrir o que é feito do pai, atolado em memórias de infância. Paco, um antigo amigo da família vivido pelo próprio Selton Mello, preenche de forma troncha o papel paterno, dando conselhos ou servindo como escape emocional vez ou outra. Aliás, é ele o símbolo da contradição humana: o conselheiro que recomenda perseguir o futuro, mas que ainda briga contra a evolução tecnológica. O homem que se julga superior ao porco, mas que carrega em si a dúvida quanto a qual classe mamífera pertence. Que veste a capa de heroi, mas esconde dentro de si o chiqueiro. O primeiro ato do filme reforça o tempo todo a prisão emocional que estagna a vida de Tony, dividido entre a idealização do pai e o inconformismo com seu abandono. Isso cria o clima perfeito para as reviravoltas que o filme dá, já que os relances da busca pela maturidade frequentemente trazem surpresas. Um papel discreto mas bastante importante foi reservado a Rolando Boldrin: o maquinista Giuseppe que, nas suas próprias palavras, "tem uma das funções mais nobres de todas: levar as pessoas para resolverem coisas". Boldrin cuida da linha de trem que une as cidades de Recanto, onde vive Tony e a mãe, e Fronteira, um povoado um pouco maior onde a vida flui mais - seja pela existência do único cinema das redondezas, seja pela movimentada "casa da luz vermelha" – dois palcos fundamentais para a estória. O maquinista, tal qual Caronte, da mitologia grega, será fundamental na jornada de Tony para resolver coisas entre dois mundos. No fim das contas, "O filme da minha vida" compõe de forma digna mais esse tijolo na já consistente obra de Selton por trás das câmeras. Uma ou outra falha de roteiro, ou mesmo a solução rasa para o final da estória passam despercebidos por trás de sua delicadeza e sensibilidade técnicas. A fotografia toda forjada em tons de sépia, como num álbum de fotos antigo, e a trilha sonora recheada de músicas nostálgicas remetem à melancolia de tempos em que o afeto e a ligação entre as pessoas era a coisa mais importante do mundo. O amor salva tudo. Quando for ao cinema para assistir ao filme, no dia 03 de agosto, lembre-se das palavras de Selton na pré-estreia e aproveite o presente. Porque na ferrovia da vida, o início e o fim são importantes, mas é o meio que faz da viagem inesquecível. Assista ao Trailer Oficial do filme: https://www.youtube.com/watch?v=TDVegL5nfYs

Hora do pesadelo!

"Perambulação" merece ser visto pela importância no mercado audiovisual goiano, que se fortalece a cada dia, e pelo amadurecimento do diretor e roteirista, em comparação a suas obras passadas [caption id="attachment_101029" align="aligncenter" width="620"] Filme "Perambulação", de Samuel Peregrino[/caption] Não se sabe o que é mais difícil: o surgimento de boas obras cinematográficas goianas, ou sua divulgação. Porque se existe um problema grave (e antigo) envolvendo o cinema nacional, esse problema está justamente na dualidade produção x distribuição. Foi pensando nessa questão que o diretor goiano Samuel Peregrino decidiu ousar, contrariando a lógica do mercado - principalmente a do mercado local - e lançando seu mais novo filme diretamente numa plataforma de streaming digital. "Perambulação" (que até poderia narcisisticamente se chamar "Peregrinação"), a terceira obra de sua já elogiada filmografia, estreou sexta (28/07) no recém lançado portal do Snapcine, uma plataforma digital inteiramente voltada ao streaming de filmes brasileiros. Peregrino surge mais maduro nesse novo filme, a começar por suas escolhas. A ficha técnica da obra, enriquecida com as participações (dentre outras) de Pedro Gomes, Isaac Brum, Taynara Borges e Marcos Bruno conta ainda com Tiago Rener e Carlos Brandão atuando. Todos nomes conhecidos no audiovisual goiano. Samuel assina a direção e o roteiro. Com a participação decisiva de uma equipe técnica já experimentada, "Perambulação" consegue ir além do que "Dejejum" (2014) e "Ensaio sobre um fim de mundo" (2016) já haviam conseguido. Com um roteiro mais complexo que o primeiro e menos experimental que o último, a obra certamente se destaca dentre a produção audiovisual universitária. A estória centra-se em Nathanael, porteiro de um prédio que sofre com noites de sono mal dormidas e pesadelos constantes. Para resolver seus distúrbios noturnos, procura o Dr. Coppelius, um especialista no sono, que lhe aplica métodos nada ortodoxos. O tiro sai pela culatra. A vida de Nathanael vira um emaranhado de imagens e sensações, num labirinto onírico sem fim. É interessante a influência declarada que a obra pega no conto "Homem de Areia", do escritor alemão Ernst Theodor Amadeus Hoffmann, no qual um outro Nathanael tropeça entre realidade e ilusão. No conto, o protagonista é assombrado pelo Homem de Areia, uma figura que os pais usavam para obrigar as crianças a dormir. O monstro, dizia-se, roubava os olhos das crianças desobedientes, jogando-as num mundo de suplícios e delírios. Não se sabe a quem o Nathanael de Peregrino desobedeceu durante a infância. Mas o que vemos na tela é um homem sem olhos para a realidade, lutando para escapar de um pesadelo que não tem fim. E não adianta obrigá-lo a dormir. "Toda a vida era para ele sonho e pressentimento", é a frase pinçada do conto e que abre o filme. Curiosamente, o que traz paz ao protagonista é a música, expressa nos arranjos de uma gaita. Coincidência ou não, Coppelius (nome do especialista em sono na obra de Samuel, e de um dos personagens do conto de Hoffmann) é também o nome de uma banda metaleira alemã, que faz músicas pesadas usando clarineta, violoncelo e uma boa dose de teatro. Tão interessante quanto improvável. Talvez uma metáfora perfeita para a vida do Nathanael do filme: na aspereza do batente, ainda há tempo e espaço para a delicadeza e o lirismo - ainda que em desespero. O filme tem desenvoltura ao manejar os diversos aspectos técnicos. Som e fotografia se destacam pela falta de excessos. A simbologia dos planos também é trabalhada de forma interessante e consegue presentear o espectador com belos momentos (a cena em que Nathanael desperta, com o rosto cheio de fios, e sua cabeça se sobrepõe a um grande olho na parede ao fundo é genial). Por tudo isso, "Perambulação" merece ser visto. Pela importância no mercado audiovisual goiano, que se fortalece a cada dia. Pelo amadurecimento do diretor e roteirista, em comparação a suas obras passadas. Pela riqueza simbólica da estória e da linguagem cinematográfica utilizada - esta última, em flagrante superioridade à maioria dos curtas nacionais independentes, seja quanto à fotografia, som ou atuação. Ganham os espectadores e o próprio cinema goiano. Porque ao contrário de Nathanael, seu personagem, Samuel Peregrino sabe muito bem aonde está indo.

Paterson: O essencial é poesia aos olhos

Filme do diretor e escritor Jim Jarmusch traz como protagonista o ator Adam Driver, que dá vida a um personagem que vive com poesia uma rotina tipicamente monótona

“De Canção em Canção” é música para os olhos

Diretor reúne elenco pesado para brincar com a câmera e opta por lirismo do que em sua filmografia passada

Filme de Marília Rocha é retrato do encontro entre quem está chegando e quem já quer ir embora

Personagens Tereza e Francisca nos mostram que viver não consiste apenas em achar seu lugar no mundo. Consiste em estar bem consigo mesmo, onde quer que se esteja [caption id="attachment_99092" align="alignleft" width="620"] Atrizes Elizabete Francisca Santos e Francisca Manuel, em cena do longa de Marília Rocha[/caption] Teresa (Elizabete Francisca Santos) vem de algum lugar, por algum motivo, e chega em Belo Horizonte com o objetivo de dar um novo rumo para a vida. Francisca (Francisca Manuel) já está na capital mineira há cerca de um ano, mas não parece muito satisfeita com o que sua vida se tornou, e parece procurar novos rumos, ainda que de forma tímida. A motivação do longa de Marília Rocha, "A cidade onde envelheço" (2016) está aí. De onde viemos? Para onde vamos? O que queremos? O que nos leva a querer algo mais, ou achar que não queremos mais nada? E pinçando apenas uma janela de existência, somos convidados a observar esse retrato do encontro entre quem está chegando e quem já quer ir embora.

O filme foi considerado o melhor longa-metragem do 49° Festival de Cinema de Brasília, no ano passado. Lançado na rede de cinemas nacionalmente no início do ano, e apenas recentemente liberado em home vídeo e plataformas de streaming, a produção é uma importante parceria Brasil-Portugal que se passa em Minas Gerais, mas que aborda de forma sensível e universal a discussão sobre o lugar de cada um no mundo.

Como imigrante portuguesa recém-chegada em terras brasileiras, Teresa não sabe bem o que vai encontrar por aqui. Seu único elo é com Francisca, uma amiga de infância que já vive como brasileira há um tempo. A cena inicial de Francisca liberando espaço em sua própria casa é significativa, porque ao mesmo tempo que simboliza o pequeno incômodo trazido pela chegada de Teresa, também é a novidade que traz cor à rotina da dona da casa.

É difícil se adaptar a mudanças. Todo mundo sabe que enfrentar uma nova escola, uma nova faculdade, uma nova família, uma nova cidade ou qualquer outro caminho que destoa da rota traçada inicialmente traz dor de cabeça. A busca por Teresa em estabelecer-se e criar vínculos soa um pouco desesperada no início, em diálogos com estranhos no aeroporto ou enquanto toma um lanche num bar seboso qualquer da cidade. Todos somos assim. Existe certo desespero inicial em fugir do estranho, em ser reconhecido, querido, pertencido. Porque só quando não temos mais preocupação em ser aceitos é que podemos, de forma livre, simplesmente ser. Ou não?

Francisca traz o outro lado da moeda. Não lhe resta muito vigor em inserir-se num país diferente do seu, com costumes exóticos ou um jeito de ser pretensamente preguiçoso. Quando não existe mais nada a ser explorado e a rotina bate forte, resta a saudade de quando não éramos. O desejo de retornar às raízes, ao frescor da busca, a adrenalina da inexperiência. Dos vínculos mais fortes com o passado e com a família.

Narciso acha feio o que não é espelho. E a ausência de reflexo, numa via de mão dupla, pode ocorrer quando não há espelho, ou quando este já está gasto e empoeirado. Assim se enfrentam Teresa e Francisca.

[caption id="attachment_99091" align="alignleft" width="185"] Cartaz do filme "Cidade onde envelheço" (2016)[/caption]

A obra tem um clima leve e sensível, recheado de situações cotidianas engraçadas, expressos em diálogos gostosos. Grandes questões universais são jogadas sobre a mesa como guardanapos e copos de cerveja, quase que convidando-nos a dar opinião também. A atuação de Elizabete Francisca Santos e Francisca Manuel se destaca, e sem dúvida nenhuma é um dos pontos fortes do filme, junto com a trilha sonora que traz Jards Macalé, Dead Combo e Jonnata Doll e os Garotos Solventes (estes últimos com performances divertidíssimas ao vivo. Jonnata chamou a atenção do Brasil recentemente, como um dos convidados na turnê do show de comemoração de 30 anos do lançamento do disco "Legião Urbana", com Dado e Bonfá).

Enfim, Tereza e Francisca nos mostram que viver não consiste apenas em achar seu lugar no mundo. Consiste em estar bem consigo mesmo, onde quer que se esteja. Encontrar seu lugar dentro de si próprio. E tendo isso como norte, o título do filme, carregado de ambiguidade, também explicita a dualidade expressa pelas nossas complexas personagens: Quem não quer ter uma cidade para se envelhecer? Por outro lado, quem é que quer envelhecer?

Em que pele tu habitas?

Novo filme de Olivier Assayas foi vaiado em Cannes, mas aplaudido na première e isso só mostra uma coisa: que quem pretende ver o filme, precisa manter a mente aberta [caption id="attachment_93277" align="alignleft" width="620"] Kristen Stewart dá vida à personagem Maureen Cartwright, uma pessoa que gostaria de ser outra, mas sem a certeza exata de quem[/caption] Numa primeira vista, "Personal Shopper" (2016), o filme mais recente de Olivier Assayas, parece um exercício burocrático de uma aula de roteiro da faculdade. "Faça um roteiro envolvendo o mundo da moda, com fantasmas e colocando uma pitada de drama e thriller psicológico". Mas o roteirista e diretor francês, famoso por nos apresentar "Acima das Nuvens" com Juliette Binoche, em 2014, consegue sair do convencional, entregando uma estória envolvente até o ponto em que consegue ligar esses elementos aparentemente desconexos. Como o próprio título entrega, o filme é inteiramente escorado em Maureen Cartwright (vivida por Kristen Stewart), contratada por uma celebridade francesa local para cuidar de seu guarda-roupas. A única missão de Maureen é percorrer as lojas mais famosas de Paris (aliás, chega a dar um pulo em Londres também) comprando roupas, sapatos e jóias para compor o visual de sua patroa. Sem limites no cartão de crédito. O que pode parecer divertido para muitos, entretanto, é uma tarefa extremamente enfadonha para a garota. Aliás, nesse ponto convém ressaltar a boa atuação de Kristen. Na sua carreira, em geral criticada pela inexpressividade e falta de adensamento psicológico na interpretação de seus personagens, a atriz agora convence no papel de uma jovem inexpressiva e corroída por uma vida vazia (há quem diga que Stewart continua a interpretar a si mesma, algo que demandaria uma análise mais detalhista. O fato é que, aqui, ela funciona até bem). Maureen, entretanto, busca algo mais em sua vida. Gostaria de ser outra pessoa, mas não tem certeza de quem. Coloca um olho comprido para cima dos glamourosos vestidos que compra para sua patroa, mas não se sente bem usando-os. Aliás, os veste escondida, puramente pelo prazer da adrenalina. Comprar um colar Cartier lhe é tão vazio quanto bater o cartão de ponto no final do expediente. Esse algo que falta na vida de Maureen provavelmente tem ligação com a morte de seu irmão Lewis, poucos meses antes, em decorrência de um mal súbito no coração. E aí surge uma dimensão diferente dada por Assayas ao longa – algo que incomodou os mais altos críticos de Cannes, onde o filme foi exibido pela primeira vez, no ano passado. Maureen e seu irmão Lewis possuem o dom sobrenatural de manter contato com espíritos. São médiuns. E combinaram, enquanto vivos, que o primeiro que se fosse enviaria um sinal ao que ficasse. O irmão se foi, e 95 dias depois do passamento, a irmã ainda não havia obtido nenhum sinal do além. Assayas, o roteirista, escolhe flertar com David Lynch e Stephen King, mas Assayas, o diretor, talvez tenha preferido tirar suas influências de Kubrick e Shyamalan. O resultado é um filme que, sem dúvidas, dá uma série de calafrios ao espectador, mas que acrescenta certa reflexão ao suspense. A constante utilização de uma fotografia mais densa, aliada à câmera na mão, traz a sensação de susto eminente. Mas isso não afasta o aprofundamento à crítica social do materialismo e da ostentação como formas de preenchimento existencial. "No fundo, todo mundo acredita em fantasmas, mas damos a eles nomes muito diferentes", declarou Assayas em Cannes, no ano passado. E o que ele quer dizer, basicamente, é que o meio imaterial – o que quer que isso seja – sempre prevalece ao material – qualquer que ele seja. O segundo é mero instrumento do primeiro. A busca de Maureen ao tentar se livrar do que ela é talvez se resolveria com a confirmação de que o irmão está bem, num mundo além. Confirmando essa busca pelo imaterial, aliás, a cena em que Kristen veste-se com as roupas da patroa e deita em sua cama traz um significado especial: a tentativa de despir-se de sua realidade e experimentar outra pele. O que culmina no prazer orgásmico. Aliás, algo interessante que Assayas incorpora em seu filme é a presença da tecnologia. Num contexto em que sua protagonista está se afogando num mar de itens de luxo, com um pé numa vida de ostentação, mas com o resto do corpo perdido num apartamento escuro de subúrbio, a desmaterialização é mostrada também em videoconferências pela internet, pequenos filmes explicativos de YouTube e numa troca de mensagens de celular. A certo ponto, chegamos a acompanhar minutos a fio de um diálogo tenso, sem piscar, vidrados na tela do smartphone de Maureen. O intertexto de mídias acena para a evolução do próprio cinema (é engraçado pensar que, na cena dos vídeos de YouTube, todos os espectadores do filme – inclusive os críticos de Cannes – assistiram a uma micro-projeção diretamente do iPhone 6 de Maureen). De certa forma, todo mundo busca salvação no invisível. Damos um jeito de atribuir ao oculto a origem e a solução de tudo o que não entendemos e, nesse processo, surge a impressão nítida de que a matéria nos prende, limita nossas impressões sobre a realidade. Sendo algo limitador, até quando exerce também interferência? "Quando os monstros da sua cabeça estão muito perto, sua sanidade pode entrar em colapso", declarou a própria Kristen sobre o filme, em Cannes. Apesar de vaiado pelos críticos na competitiva pela Palma de Ouro, foi ovacionado por mais de 4 minutos pelo público, após a première. E se o público e a crítica de Cannes não conseguiram chegar a um consenso sobre a obra, talvez seja esse o melhor conselho sobre o que esperar do filme: não espere nada. Mantenha a mente aberta e deixe-se surpreender. O filme está em exibição no Cine Cultura, na Praça Cívica, e terá uma sessão nesta quarta-feira, 3, às 16h30, e quatro sessões adicionais, de 7 a 10 de maio, também às 16h30.

Shyamalan: quebrando expectativas (ou não!)

Diretor confirmou continuação de "Corpo Fechado" e "Fragmentado". O que esperar?  Antes de mais nada, vou avisando que, se você não assistiu a "Corpo Fechado" (2000) ou a "Fragmentado" (2016), pode ser que eu conte detalhes importantes da trama desses filmes. Então, se não quiser ficar sabendo de nada antes, pare de ler agora! E volte depois de assisti-los. Observe o cartaz e o nome original de "Corpo Fechado", de M. Night Shyamalan. "Unbreakable" é exatamente o oposto do mais recente filme do diretor, "Fragmentado" ("Split", no original). Mas ambos dizem respeito a pessoas desajustadas física, mental e, consequentemente, socialmente. Aí, lá pelas tantas, somos surpreendidos com o final e entendemos que os dois filmes estão inseridos no mesmo universo. Mais do que isso: que pode haver um terceiro capítulo desse emaranhado todo. E foi o que aconteceu, senhores. A comunidade nerd entrou em polvorosa quando, nesta quarta-feira, 26, Shyamalan usou seu Twitter para confirmar que já está trabalhando no próximo capítulo da trilogia. O título? "Glass". "Vidro". É para quebrar tudo mesmo. Com as presenças já confirmadas de Bruce Willis (David Dunn), Samuel L. Jackson (Elijah Price), James McAvoy (Kevin Crumb) e Anya Taylor-Joy (Casey Cook), ficam reveladas as principais peças do jogo. Será que dá para imaginar o que vem por aí? Como todo mundo já sabe, em "Corpo Fechado", David Dunn, um segurança sem muita perspectiva na vida, sobrevive a inúmeras experiências mortais, levantando a desconfiança de um aficcionado por quadrinhos, Elijah Price (autodenominado de "Mr. Glass" – o que, inclusive, pode ser uma referência do título do próximo filme). Deixamos Dunn às voltas com uma discreta aceitação de seus poderes especiais, praticando um ato ou outro de um heroísmo anônimo, escondido em sua capa de chuva, sem grandes pretensões. Price terminou preso e internado em uma instituição penal para doentes mentais, depois de tentar colocar em prática planos terroristas envolvendo pessoas com superpoderes. Em "Fragmentado", conhecemos Kevin Crumb, um sujeito atordoado por nada menos que 23 personalidades. E o que parece um filme policial intrincado, situado entre "O quarto de Jack" e "O silêncio dos inocentes", acaba desaguando num thriller psicológico um pouco mais profundo. Casey, uma das vítimas sequestradas por Kevin, consegue fugir e, no caminho para a liberdade descobre que as personalidades de Crumb pretendem se juntar para libertar uma 24ª personalidade mortífera: "The Horde". Essa besta acaba liberando Casey quando descobre que ela também passou por um trauma de infância e é considerada como "pura", "quebrada". E foge para o mundo. Um dos grandes méritos de "Corpo Fechado", à época, foi a de reintroduzir os super-heróis no mundo do cinema de forma mais realista. Ainda não existiam os filmes dos Vingadores, Homem de Ferro ou o Batman de Christopher Nolan, o Homem-Aranha de Sam Raimi só viria dois anos depois, e os X-men, recém adaptados às telonas, ainda traziam um universo bastante caricato, com raios laser e uniformes quase ao estilo collant de lycra. Shyamalan trouxe o herói discreto, com dramas pessoais, cheio de fraquezas e assolado por dúvidas. Um herói sem capa, plausível de existir em qualquer vizinhança. Em "Fragmentado", esse tipo de universo continua – em que pese uma cena ou outra mais exagerada. Então, não espere que qualquer dos personagens ostente raios laser, naves espaciais e uniformes no próximo filme. Provavelmente isso não ocorrerá. Esqueça o que você conhece dos universos Marvel e DC. Ainda que sui generis, entretanto, o roteiro de filmes de herói sempre traz determinadas características centrais – e isso desde os primórdios da arte de contar estórias, como o pesquisador Joseph Campbell expõe em sua obra "O Herói de Mil Faces". Há uma certa "receita", a qual convencionou-se chamar de "A jornada do herói", que é uma espécie de manual para roteiristas mais apressados, mas que acaba sendo consultado também pelos mais ousados e experimentalistas. Shyamalan, desse último time, declarou que tem estado otimista, e chegou a ficar com medo quando escrevia uma das lutas entre Dunn e Crumb (opa! Mais uma dica aí!). De qualquer forma, dá para fazer algumas previsões. Vamos ver: Dunn dificilmente assumirá de cara o seu papel de super-herói. Provavelmente só aceitará alguma responsabilidade quando The Horde começar a bagunçar a cidade. E aí, certamente vão rolar algumas brigas épicas. Mr. Glass, por sua vez, deverá usar de alguma artimanha para ter a confiança de The Horde, e após ensinar alguns truques a ele, ambos deverão ir no encalço de Dunn (lembra que foi David quem meteu Price na prisão, para começo de conversa?). Casey então surgirá como uma aprendiz e parceira de Dunn, já que é imune a Crumb. Dito isso, duas coisas muito provavelmente ocorrerão: Price tentará conquistar a confiança de Casey, convertendo-a para o "lado negro da Força" e Dunn, por sua vez, a recrutará e ensinará algumas manhas da carreira de herói. Os times ficam divididos em dois a dois. Batalhas épicas pipocarão para todos os lados da Filadélfia. Por fim, considerando a idade de Bruce Willys, a receptividade do público e o potencial da estória, é bem provável que exista uma brecha para futuros capítulos. Nesse caso, só resta ao personagem de Willys morrer, deixando com Casey, sua sucessora, o papel de defensora da humanidade. Crumb dificilmente sobrevive. No máximo, será curado. E Price, sendo a megamente por trás de tudo, tem uma chance de escapar para bolar mais planos infalíveis para o futuro. São apenas previsões. Muita coisa ainda deve rolar na pré-produção de "Glass" (que deve estrear só em 2019). Uma coisa é certa: nunca dá para prever 100% do que sairá da mente brilhante e fragmentada que criou todo esse universo. De agora para frente, olho sempre no Twitter do Shyamalan.

Ainda que deslumbrante, Scarlett Johansson está no lugar errado em “A Vigilante do Amanhã”

O filme é uma adaptação fiel do anime que tem como protagonista a claramente japonesa Major Motoko Kusanagi, que vivida por uma americana loira, por melhor que esteja na tela, destoa do contexto do longa   [caption id="attachment_90800" align="alignleft" width="620"] Scarlett está bem no filme, mas sua figura destoa do contexto. O estúdio chegou a admitir que foram feitos testes de maquiagem e computação gráfica para torná-la mais "asiática"[/caption] Nas últimas semanas, pregou-se muito que a atuação de Scarlett Johansson como protagonista de "A vigilante do amanhã" (2017), que estreia nos cinemas brasileiros, diminuiria a força do filme. Não diminuiu, pelo contrário. Mas é preciso analisar com cuidado o cerne das discussões para entender que a mais nova obra de Rupert Sanders tem a sua dose de polêmica. No início da década de 1980, William Gibson, um contista américo-canadense que vinha se destacando em publicações de baixa tiragem lançou seu primeiro romance. Com ele, embalado pelo clima noir-futurista de "Blade Runner" (1982), desenhou-se praticamente todo um universo que seria, a partir de então, exaustivamente explorado em obras de ficção científica. "Neuromancer", o primeiro da série "Sprawl", trouxe ideias como "hackear", "surfar na rede", "pirataria digital", cunhou oficialmente o termo "cyberspace", e originou o movimento cyberpunk (uma mistura de noir, com ação e tecnologia). Tudo isso muito antes do surgimento da internet como a conhecemos. Foram os japoneses, entretanto, que abusaram desse universo, criando uma série de obras seminais, principalmente através dos quadrinhos (mangás) e animações (animes). Podem ser citados "Akira" (1982), "Battle Angel Alita" (1990), "Cowboy Bebop" (1998) e "Gantz" (2013), por exemplo. Os japas são aficionados por esse tema. E "Ghost in the shell", o mangá que embasou o filme estrelado por Scarlett, está nesse mesmo baralho. De autoria de Masamune Shirow, o mangá foi publicado no Japão entre 1989 e 1991 e conta a história de um grupo secreto de elite da polícia japonesa, que tem na Major Motoko Kusanagi sua principal agente. Ela é uma ciborgue (cérebro humano num corpo robótico) que luta contra o ciberterrorismo, o tráfico de informações e a espionagem industrial no ano de 2029. O mangá virou animação e foi para as telonas em 1995, pelas mãos de Mamoru Oshii, e se tornou referência mundial. Basta dizer que as irmãs Wachowski jogaram "Ghost" e "Neuromancer" num liquidificador e apareceram com "Matrix", em 1999, para entender a importância dessas obras todas (para explorar mais dessa relação simbiótica entre "Matrix" e os animes, é imperdível assistir à série "Animatrix", de 2003). Sempre foi sonho dos fãs que fosse feita uma adaptação em live-action (filme com atores reais) para a obra de Masamune, mas um leve estranhamento começou quando anunciaram que Scarlett estava confirmada no papel da Major Motoko. Afinal, Hollywood sempre bebeu na fonte criativa nipônica, mas isso quase sempre significou a desfiguração completa da obra original. E trocar a protagonista japonesa por uma americana loira indicava, num primeiro instante, uma intenção perigosa da produção. Por algum tempo pairou essa dúvida: adaptação fiel, ou versão americanizada? O pessoal da Paramount chegou a admitir que foram feitos testes de maquiagem e computação gráfica para alterar os traços de Scarlett, tornando suas feições um pouco mais "asiáticas". Terrível. Então, espera aí: se o filme seria fiel aos quadrinhos, ambientado no Japão do futuro, com personagens japoneses, porque escalar uma atriz loira americana para o papel principal? Ainda que o casting também conte com Juliette Binoche, Pilou Asbaek e Michael Pitt interpretando personagens não-japoneses, a protagonista Motoko Kusanagi é visivelmente asiática na obra original. Choveram críticas e acusações de "apropriação cultural" e o chamado "whitewashing", um termo cunhado para designar especificamente essa adaptação de elementos de outras etnias para o padrão branco de ser. (A título de curiosidade, a Netflix também vem sendo criticada de forma semelhante pela produção do filme "Death Note", adaptação do consagrado mangá japonês). De qualquer forma, o filme é muito bom para os admiradores do gênero – só não será unanimidade porque envolve um nicho de interesse bem específico. As principais cenas e motivações de roteiro foram mantidas intactas, e é interessantíssimo ver cenas sincronizadas da animação de 1995 com o filme recém-lançado – algo que uma consulta rápida no YouTube pode propiciar. A direção e a fotografia são bastante competentes e conseguem resgatar o clima dos quadrinhos em cada plano rodado. Parecem pinturas. As cenas de ação, visivelmente influenciadas pelas correrias de Neo, Morpheus e Trinity dentro da Matrix, são de encher os olhos. Tudo embalado por uma trilha psicodélica-eletrônica que lembra bastante a onda techno oitentista, copiada recentemente pelo seriado "Stranger Things", da Netflix. Enfim, supera bastante as expectativas de quem estivesse com medo de encontrar pela frente um "Aeon Flux" (2005) ou um "Riddick" (2000, 2004 e 2013 – todos fiascos). O filme é forte. O "senão" fica apenas na escalação da protagonista, algo que incomoda durante a projeção, e que muito provavelmente resulta de uma escolha puramente comercial. Talvez pudesse mesmo ter havido um pouco mais de consideração com Shirow, Oshii e a cultura japonesa em geral, que aparece como tema implícito na película, mas cujos elementos são tomados apenas como coadjuvantes. Ao contrário do que alguns possam argumentar, não se trata aqui de uma versão americana da estória contada pelos japas. A intenção foi uma adaptação fiel. E como tal, ainda que deslumbrante, Scarlett Johansson está no lugar errado. Lembra-se de Madonna interpretando a Evita em inglês, lá em 1996? Pega mal. É o tipo de cuidado que os ingleses fazem questão, como por exemplo na escalação de atores e carros da franquia de James Bond (dizem que quando a rainha viu Pierce Brosnan dirigindo uma alemã BMW, caiu da cadeira), ou no pudor que J.K. Rowling sempre manteve quando levou Harry e seus amigos para passearem nas telas. João Paulo Lopes Tito é advogado e estuda Cinema e Audiovisual na UEG