A cultura brasileira condena grande parte daqueles que acabam se envolvendo com drogas. Mas a questão é mais profunda e passa, sobretudo, pelos aspectos sociofamiliares do indivíduo, que precisa ser  praticamente “recriado” durante o tratamento

Jovem usuário de drogas algemado ao lado de uma pichação que diz aquilo que a grande parte dos dependentes procura: cura | Foto: Renan Accioly
Jovem usuário de drogas algemado ao lado de uma pichação que diz aquilo que a grande parte dos dependentes procura: cura | Foto: Renan Accioly

Marcos Nunes Carreiro

Na semana passada as capas dos principais jornais brasileiros estamparam a história de Loemy Marques, a ex-modelo de 24 anos cuja história de envolvimento com o crack estampou a última capa da Revista Veja São Paulo. A ex-modelo recebeu o assédio de vários veículos de comunicação e, o mais importante, a solidariedade do País. Deverá ser internada e receberá o tratamento necessário — a ser custeado por emissoras de TV.

Não se pode questionar o bem que o tratamento irá fazer para a jovem, que, de fato, precisa de ajuda. A questão é: e os outros? A chamada Cracolândia, em São Paulo, abraça milhares de pessoas, das mais variadas situações econômica, familiar e social. E não apenas lá. No Brasil, dezenas de milhares de pessoas sofrem com a dependência química, seja por crack, cocaína, álcool, entre muitos outros tipos de entorpecentes. As drogas são muitas. O que falta é tratamento que não seja analisado por meio das páginas policiais, tal como o caso de Loemy.

Ligada ao Ministério da Saúde — e em parceria com a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), do Ministério da Justiça — a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) realizou um levantamento que revelou: cerca de 370 mil brasileiros de todas as idades usaram regularmente crack e similares (pasta base, merla e óxi) nas capitais brasileiras durante pelo menos seis meses em 2012. Esse número corresponde a 0,8% da população das capitais e a 35% dos consumidores de drogas ilícitas nessas cidades. E um agravante: desse total, 14% têm entre 8 e 18 anos, isto é, crianças e adolescentes.

Subtrai-se desse grande número, o déficit no sistema público de saúde que deveria oferecer tratamento aos dependentes químicos. Dados apresentados em audiência pública no Senado Federal, por exemplo, dão conta de que o Brasil oferece apenas 0,34% dos leitos que seriam necessários para sua população. Isso leva à questão óbvia da informação: faltam investimentos.

Como aponta o psiquiatra e psicoterapeuta Thiago Cezar da Fonseca, “a dependência química cresceu mais que a rede de tratamento e o governo está demorando a fazer algo a respeito”. Segundo informações do próprio Sistema Único de Saúde (SUS), o número de internações financiadas pela rede, no que diz respeito a dependentes de drogas ilícitas, cresceu 128% entre 2006 e 2012, equiparando-se ao número de internações por dependência de álcool, que, em 2012, respondiam a 52% do total de internações por dependência química.

Loemy Marques: atualmente, a jovem ex-modelo representa a necessidade de discutir meios eficazes de recuperar as pessoas que utilizam drogas Foto: Mário Rodrigues/Veja
Loemy Marques: atualmente, a jovem ex-modelo representa a necessidade de discutir meios eficazes de recuperar as pessoas que utilizam drogas Foto: Mário Rodrigues/Veja

Naquele ano, foram registradas 301.716 internações por dependência. Ou seja, o número de dependentes aumentou, mas a rede não. É certo que nos últimos dois ou três anos houve certo desenvolvimento na área. Mas ainda falta. Nas capitais, onde a rede de saúde é maior e mais estruturada, é possível ver melhores situações, mas no interior dos Estados, mesmo quando há algum investimento, ele se torna insuficiente. Toma-se por parâmetro que a rede de saúde pública, no geral, ainda é deficitária, quiçá no tratamento de dependentes químicos.

Esse é um ponto, o mais evidente deles. Porém, é possível aprofundar mais a discussão. Um ponto importante é: como há um número insuficiente de leitos, também há poucos profissionais qualificados para tratar os dependentes quími­cos. De acordo com Fonse­ca, como a rede de atendimento é pequena, a formação dos profissionais fica deficiente, uma vez que não há muitas clínicas, ou locais onde se especializar. Dessa forma, os profissionais que querem fazer graduação ou especialização na área enfrentam certa dificuldade, fazendo com que eles tenham que estudar em São Paulo, ou procurar cursos de capacitação à distância.

Em grande parte, devido a esses dois fatores, comunidades terapêuticas dirigidas por instituições religiosas, e instituições privadas oferecem tratamento de maneira pulverizada. Atualmente, estima-se que haja mais de três mil casas terapêuticas no Brasil. São essas instituições que estão abrigando a maior parte dos pacientes em tratamento no país — outra razão para que existam tantas instituições assim no Brasil, remete à transição do antigo para o novo modelo de tratamento, inaugurada com a reforma psiquiátrica de 2001, que deixou o setor deficiente no que concerne a regulamentações legais.

Não se pode negar que as comunidades terapêuticas desempenham um papel importante no auxílio da recuperação de dependentes químicos. Porém, como muitas iniciativas de ajuda social, sofrem com a falta de apoio financeiro e de qualificação profissional, uma vez que o tratamento desse tipo de pacientes não é simples e demanda cuidados que vão além dos médicos.

E é importante lembrar que essas dificuldades são intensificadas, muitas vezes, pela falta de apoio familiar — há relatos, por exemplo, de famílias que deixam os dependentes para tratamento em comunidades terapêuticas ou mesmo em clínicas psiquiátricas que atendem pelo SUS e informam endereço e telefones inexistentes — e por um sistema público desaparelhado para tratar a dependência química e as doenças mentais.

As outras questões

Thiago Cezar: “A dependência química cresceu mais que a rede de tratamento e o governo demora a fazer algo” l Foto: Fernando Leite/Jornal Opção
Thiago Cezar: “A dependência química cresceu mais que a rede de tratamento e o governo demora a fazer algo” l Foto: Fernando Leite/Jornal Opção

A desintoxicação do dependente químico é visto como a primeira parte do tratamento. Embora haja muitas pesquisas que procurem criar uma medicação que reduza o desejo de alguém por usar drogas, essa medicação ainda não existe. Dessa forma, a desintoxicação acontece naturalmente, de acordo com que a pessoa para de usar as substâncias, como explica o psiquiatra e psicoterapeuta Thiago Cezar da Fonseca. O problema é que, pelo uso constante do entorpecente, o organismo da pessoa se torna plenamente adaptado a ele, o que provoca sintomas de abstinência. Além disso, aumentam as compulsões e fissuras que os pacientes desenvolvem pelo uso da droga.

Essa fase é caracterizada por riscos maiores de recaídas e de complicações clínicas, como: sintomas depressivos, pensamento de morte e tentativas de suicídio. E isso deve ser tratado de forma farmacológica. Há casos de dependentes de álcool, por exemplo, que podem desenvolver arritmia cardíaca, crises convulsivas e alterações de consciência. Fatores que podem levar à morte. “Alguns casos de abstinência alcoólica devem ser acompanhados em UTI, tamanha a gravidade do quadro”, relata Fonseca.

Por isso, há a defesa para que o tratamento de dependentes químicos seja conduzido em locais onde haja uma variedade de especialidades médicas, visto que o paciente pode necessitar de um acompanhamento mais próximo de suas condições físicas, como: cardiológicas, reposição de vitaminas — o álcool impede a absorção desses compostos orgânicos —, insuficiências hepáticas, entre outros. Para Fonseca, esse tipo de tratamento farmacológico serve para proteger a vida do paciente.

Porém, além de estar intimamente ligado à vontade do paciente em se tratar, o uso de medicamentos, por si só, não é capaz de ajudar uma pessoa de modo completo. Isto é, apenas o tratamento medicamentoso não consegue cumprir o papel de tirar a dependência da pessoa. Inúmeros outros fatores influenciam na questão: dos cuidados básicos de higiene às relações sociofamiliares e afetivas.

Parte desse fator, o consenso de que um tratamento eficaz depende de uma abordagem multiprofissional, isto é, com o auxílio de várias partes, entre elas: desintoxicação, psicoterapia, terapia ocupacional e assistência social. Fonseca esmiúça: “O tratamento é feito de forma individual, de acordo com a demanda e necessidade de cada um, pois geralmente envolve questões que ultrapassam os limites de saúde física e mental, como sociais, econômicas, familiares e sistêmicas do indivíduo. E essas questões também precisam ser trabalhadas para que o paciente tenha uma melhor resposta. E isso é, geralmente, feito de maneira multidisciplinar”. Ou seja, por vários profissionais.

O psiquiatra define que os pacientes a serem acompanhados em regime de internação durante um período são aqueles com abstinência grave, com risco de morte ou com alguma morbidade, risco de suicídio ou para terceiros. Para Fonseca, a internação é justificada por dois motivos: primeiro, para manejar a gravidade dos quadros de abstinência; segundo, para compensar o quadro psiquiátrico e psicopatológico para que o paciente não ofereça mais riscos para ele ou para outros. A partir daí, o tratamento continua pelo meio ambulatorial, com consultas regulares nos Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps).

O problema é que, no Brasil, ainda não há uma grande articulação em prol de um tratamento realizado nesses parâmetros.

O que não deve ser feito no tratamento de dependentes químicos

Há um consenso entre psiquiatras a respeito do que não fazer durante o tratamento de dependentes químicos

• Deixar de investigar e tratar todas as dependências além das declaradas. É comum que alguns dependentes façam uso de mais de um tipo de drogas;

• Excluir o tratamento psiquiátrico ao optar por terapias alternativas;

• Dispensar o uso de equipe multiprofissional, já que, em geral, um só profissional não consegue atender a todas as demandas do paciente, que exige suporte, do processo de desintoxicação, à questão sociofamiliar;

• Dispensar o suporte de grupos ou comunidades como Narcóticos Anônimos e Alcoólicos Anônimos, que acompanham o paciente e são gratuitos;

• Propor a substituição de uma droga por outra “menos prejudicial” como forma de saciar a abstinência e, assim, desintoxicar o organismo da pessoa aos poucos, visto que isso mantém o dependente em contato com o ambiente das drogas. Isto é, apenas adia a solução do problema;

• Deixar de levar em conta as recaídas, visto que elas podem ocorrer por várias vezes antes de uma recuperação definitiva. A questão é: aliar medicamentos à ingestão de bebidas alcoólicas, por exemplo, pode causar ainda mais prejuízos ao paciente.

 

Credeq poderá representar novo meio de tratamento para dependência química

Credeq poderá representar novo meio de  tratamento para dependência química  l Foto: Fernando Leite/Jornal Opção
Credeq poderá representar novo meio de
tratamento para dependência química l Foto: Fernando Leite/Jornal Opção

Se as falas de senso comum — e as do meio científico também — fossem unidas em um parágrafo, a situação da saúde dos dependentes químicos no Brasil poderia ser definida da seguinte maneira: “Pre­cisamos de mais estrutura física, mais leitos, mais Caps [Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas], mais clínicas, mais ambulatórios e mais profissionais. Mas precisamos pensar também em combater o tráfico de drogas, com fortes mudanças na legislação, além de garantir escolas às crianças e mais oportunidades para os jovens e adultos”. E tudo isso poderia ser resumido na frase “é preciso pensar no dependente de uma forma mais ampla.”

De fato, pensar na questão das drogas no Brasil passa também pela tentativa de compreender o atual contexto socioeconômico do país. E não apenas tudo isso deve constar em um programa que visa tratar os atuais dependentes, como este programa deve ir além e buscar reumanizar essas pessoas que foram desfiguradas — não apenas fisicamente — pelas drogas. E, para isso, são necessários mecanismos que ultrapassam a noção de saúde. É, de fato, uma questão muito mais ampla.

Em Goiás, um novo mecanismo deverá ser testado em breve: o Centro para Reabilitação de Dependentes Químicos (Credeq). O projeto visa colocar em prática exatamente esse conceito de tratamento multiprofissional, aliado à qualidade de uma estrutura física preparada exclusivamente para a recuperação de dependentes químicos.

Próximo ao Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia, a primeira unidade do Credeq, está em fase de conclusão. A obra, cujo valor estimado é de R$ 24,1 milhões, tem previsão de entrega ainda para esse ano e está em fase de acabamento. É uma obra de alto padrão (veja fotos): ocupa um espaço de mais de 10 mil m²; contempla três núcleos de atendimentos (infantil, adolescente e adulto), com capacidade para 96 leitos de internação; possui ambientes de convivência, ambulatórios, centro de atenção psicossocial, sala de reanimação, casa de desintoxicação, e de acolhimento transitório com cultivo de hortas.

A capacidade de atendimento da unidade — a primeira de outras quatro (Caldas Novas, Morrinhos, Goianésia e Quirinópolis) — será de 2.142 consultas em psiquiatria, clínica geral e pediatria e 10 mil atendimentos multidisciplinares, além de 96 leitos disponíveis para internação, que poderá durar até 90 dias. A alta qualidade da obra é importante e inegável, mas não será “o” fator a garantir o sucesso do programa. A prática é que determinará a funcionalidade do Centro.

Um dos problemas, por exemplo, em relação ao tratamento de dependentes químicos no Brasil é a falta de profissionais qualificados. Uma dificuldade admitida por diretores da Secretaria Estadual de Educação (SES) em mais de uma oportunidade. Porém, o projeto do Credeq prevê superar essa questão com o auxílio das universidades e demais instituições de ensino, com a intenção de promover a educação permanente dos profissionais de saúde e capacitando-os para o manejo das questões relacionadas a esse tipo de tratamento.

Em uma rápida definição, o Credeq pode ser visto como uma unidade mista — que une ambulatório à internação ou acolhimento residencial, geralmente feito nas casas de acolhimento transitório —, cujo foco será abordar de forma ampliada os problemas relacionados ao uso de álcool e outras drogas. Logo, o Centro prevê o tratamento tanto da saúde física — morbidades clínicas, como HIV e tuberculose — quanto mental — psiquiátricas, como transtornos de humor e ansiedade. O projeto é para que essas questões sejam diagnosticadas e tratadas adequadamente.

Mas como serão realizados esses tratamentos? O Credeq funcionará apenas como uma extensão dos Caps municipais, clínicas de reabilitação e comunidades terapêuticas? Qual o diferencial do projeto que justifique a criação de algo assim?

Quem administrará o Credeq será a Organização Social (OS) Associação Comunidade Luz da Vida. Porém, os diretores técnicos da instituição preferiram não se pontuar a respeito do funcionamento do Centro, visto que a OS ainda não assumiu sua gestão. Assim, para responder a essas perguntas, a reportagem falou com a Superintendente de Política de Atenção Integral à Saúde da SES, Mabel Cala de Rodriguez.

A primeira pergunta feita a ela foi: “O projeto diz que o Credeq será um modelo de resgate social. Como?” Em relação a isso, a superintendente expõe que o projeto do Credeq prevê, além das ações de reabilitação psicossocial, resgatar a autonomia dos sujeitos e de seus laços sociofamiliares. “Tais ações se iniciarão na unidade e terão continuidade após a alta nos demais dispositivos da rede de atenção psicossocial, visto que o tratamento da dependência química é um processo longo, complexo e não se encerra na internação”, argumenta.
Em relação ao funcionamento do Centro:

A porta de entrada do Credeq serão os ambulatórios. Por isso, o acolhimento inicial será feito por toda a equipe multiprofissional, como médicos, psicólogos, assistentes sociais, e terapeutas ocupacionais. A intenção, segundo ela, é valorizar o vínculo com o usuário e sua família, lançando um olhar ampliado sobre as necessidades de cada indivíduo, além de sua condição clínico-psiquiátrica. “Por exemplo, avaliação do contexto sociofamiliar, moradia, trabalho e renda. A partir desses dados será traçado o projeto terapêutico singular do paciente que deverá ter como foco a reabilitação psicossocial e a reinserção social”, afirma.

Desintoxicação

Uma das partes do tratamento proposto pelo Credeq prevê uma Casa de Desintoxicação. A desintoxicação pode ser tomada como a primeira parte do tratamento e que traz mais riscos à saúde do dependente, visto que seu organismo acostumado à droga pode sofrer com crises fortes de abstinência.

Para isso, segundo explica Mabel Rodriguez, a Casa de Desintoxicação será destinada aos usuários com maior comprometimento clínico e da autonomia, que necessitarão de cuidados médicos e de enfermagem mais intensivos. “O processo de desintoxicação depende de cada usuário, padrão de uso e tipo de substância utilizada, devendo, portanto, ser um dos focos do Projeto terapêutico singular. Envolve o uso de medicações, hidratação, alimentação, repouso e suporte adequados. Deve sempre contar com o apoio de equipe multiprofissional”, explica.

Por isso, devido aos riscos, o Centro contará com uma sala de reanimação, destinada a possíveis intercorrências clínicas graves, como uma parada cardiorrespiratória. Mabel classifica situações assim como sendo “eventos raros”, mas, para ser realmente um centro de referência, o Credeq precisará estar preparada para tais eventos.

Internações

Quando se pensa em tratamento para dependência química, a palavra internação vem logo à mente. Isso porque, culturalmente, estabeleceu-se que quem é dependente só pode se recuperar se isolado do convívio social. Advém dessa cultura a noção dos manicômios que, até pouco tempo, eram admitidos por lei. Porém, internações não são admitidas sem um motivo convincente.

A Lei 10.216/2001, também conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica, estabelece três tipos de internação: Vo­luntária — aquela que se dá com o consentimento do usuário; Involuntária — que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro; e Compulsória — determinada pela Justiça. O Credeq admitirá os três tipos de internação.

Porém, para a superintendente Mabel Rodriguez, seria preferível que “toda internação fosse voluntária.” Isso porque, nesses casos, a própria vontade do dependente em se tratar garante maior possibilidade de sucesso ao tratamento. Con­tudo, mesmo para internações involuntárias e compulsórias, o tratamento no Credeq prevê alguns métodos, que visam atender à política adotada pelo Centro, que é focada na reinserção da pessoa em sociedade.

Mabel Rodriguez: “O afastamento apenas não adianta. É preciso fazer com que essa pessoa seja reinserida de forma eficaz em sociedade” l Foto: Renan Accioly
Mabel Rodriguez: “O afastamento apenas não adianta. É preciso fazer com que essa pessoa seja reinserida de forma eficaz em sociedade” l Foto: Renan Accioly

A premissa é de que, “quando alguém se torna dependente, ele provavelmente será dependente a vida inteira.” Ela cita o exemplo das comunidades terapêuticas, nas quais, segundo ela, a pessoa fica afastada durante nove meses, mas depois que volta ao seu convívio, também volta a usar a droga. Dessa forma, ela defende que haja outros subsídios para o dependente químico em tratamento, uma vez que “o afastamento apenas não adianta. É só um auxílio no tratamento. É preciso fazer com que a pessoa perca a fixação do prazer pela droga”.

E como fazer isso? Re­in­serindo a pessoa no convívio social com condições de se movimentar independentemente. Isto é: “A criança, pelo estudo; o adolescente e o adulto, pelo trabalho. Essa é a principal questão no tratamento da droga. Por isso, estamos fazendo diversos contatos com instituições de ensino e capacitação profissional para que os pacientes possam aprender uma profissão e, assim, ter condições de se reinserir em sociedade”, relata.

As instituições citadas por Mabel são, entre outras, Senai e Senac. A intenção é fazer com que os dependentes, crianças, jovens ou adultos, tenham condição de serem educadas e inseridas no mercado de trabalho após o tratamento. “Tais abordagens deverão observar as especificidades de cada pessoa e de cada faixa etária”, informa.

Um ponto importante de ser pontuado é sobre o possível envolvimento de crianças com adultos, uma vez que o Credeq irá atender crianças, jovens e adultos em regime de internação. Contudo, Mabel explica que em momento algum haverá contato entre eles. “Todo o projeto foi construído no sentido de evitar o convívio de adultos com crianças e adolescentes, atendendo aos princípios do Estatuto da Criança e do Adolescente (Eca)”, diz. Isto é, a temida “escola da malandragem” — em que os mais velhos transmitem sua experiência aos mais novos —, tão falada em relação aos presídios, por exemplo, não deverá ocorrer.

Tratamento ocupacional

Um dos pontos positivos dos Credeqs será propor um tratamento ocupacional. Há no projeto a questão das hortas. Os pacientes irão produzir seus alimentos, ao mesmo tempo em que têm uma ocupação como meio de tratamento? De onde veio a ideia e de que forma isso é interessante para o tratamento?

As atividades complementares como a horta terapêutica fazem parte das abordagens do programa de terapia ocupacional da unidade, que visa resgatar a autonomia da pessoa, desenvolver suas potencialidades e ampliar suas possibilidades de reabilitação. Não terá como objetivo principal a produção de alimentos para a unidade, que conta com serviço próprio de nutrição e alimentação.

 

Como ser atendido na unidade

Uma questão que deverá entrar no imaginário popular se o Credeq, de fato, funcionar como o previsto será as formas de conseguir tratamento na unidade. A previsão é de que o Centro atue em parceria constante com a rede de atenção psicossocial. Isto é, os pacientes serão encaminhados fundamentalmente pelos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps), que são municipais. As cidades que não possuem Caps poderão encaminhar seus pacientes por meio de outros dispositivos da Rede de Atenção Psicossocial (Raps) e a disponibilidade de vagas será coordenada pela Central de Regulação Estadual.

Os pacientes a serem encaminhados pelos Caps serão os casos mais graves, que não estão alcançando bom resultado nas unidades municipais. Os Caps — são vários tipos: nesse caso, serão os Caps Álcool e Droga (AD) — foram criados pelo Ministério da Saúde como parte da política nacional de saúde para prestar atendimento ambulatorial aos pacientes, que, caso necessário, podem ficar até 14 dias internados. Isso é feito para que a pessoa tenha um melhor acompanhamento.

A parceria constante se justifica pelo de o Credeq, um serviço criado pelo governo estadual, não fazer parte da política nacional de saúde. Logo, para atuar em rede com as demais unidades de saúde, o Estado precisou defini-lo como um atendimento àqueles casos mais graves, que os Caps não alcançassem.