Supremo Tribunal Federal julga inconstitucional o programa de voluntários estaduais da PM goiana e cerca de 2,4 mil policiais, ou seja, um sexto do efetivo da corporação, deverá deixar as fileiras da PM. Desfalque deve afetar a tranquilidade nas ruas

Simve é julgado inconstitucional pelo STF e cerca  de 2,4 mil soldados terão de deixar as fileiras da PM | Ângela Scalon
Simve é julgado inconstitucional pelo STF e cerca de
2,4 mil soldados terão de deixar as fileiras da PM | Ângela Scalon

Frederico Vitor

Acostumada a visualizar policiais militares que chamavam a atenção por ostentarem coletes ver­de-limão, em patrulhamento a pé em dupla, a chamada “Cosme e Da­mião”, a população da Grande Goi­ânia e demais municípios do Estado vai em breve perder esse reforço que cicou conhecido por “verdinhos”. No final do mês passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou inconstitucional a Lei Estadual 17.882/2012 que instituía o programa de Serviço de In­teresse Militar Voluntário Es­ta­dual (Simve) em Goiás e cerca de 2,4 mil soldados temporários vão deixar as fileiras da Polícia Militar (PM), comprometendo um sexto do efetivo geral da corporação.

A Corte Suprema decretou, por unanimidade, que o Simve é inconstitucional. O relator da matéria foi o ministro Luiz Fux. O serviço foi implantado em janeiro de 2013 e desde aquela época já era alvo de críticas com a argumentação de que estaria juridicamente em atuação na ilegalidade e usurpando a função de militares efetivos, cuja incorporação se dá por meio de concurso público. Em setembro do ano passado, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, ajuizou Ação Direta de Incons­ti­tucio­nalidade (ADI 5163) no STF na qual questionava a lei estadual que instituiu o Simve na PM e no Corpo de Bombeiros Militar.

O procurador-geral da Re­pú­bli­ca alegou que a lei goiana era incompatível com a Constituição Federal (CF) e com normas federais infraconstitucionais invocadas para fundamentá-la, além de trazer “consequências imprevisíveis e indesejáveis” para a segurança pú­blica no Estado. Rodrigo Janot che­gou a defender que a lei foi e­ditada supostamente com base no artigo 4º, parágrafo único, da Lei fe­deral 4.375/64 (Lei do Serviço Militar), mas não há nesta norma au­torização, explícita nem implícita, para criação de serviço de interesse militar voluntário nas PMs dos Estados.

Na ADI, o procurador-geral da República argumentou que “ao permitir a realização de policiamento ostensivo por voluntários do Simve, compromete, mais do que auxilia, a prestação da segurança pública em Goiás e introduz na delicadíssima atividade de segurança pública pessoas admitidas de forma inválida e com potencial para portar e usar armas de fogo contrariamente à legislação federal”.

Lei inconstitucional

Durante o julgamento de constitucionalidade da lei estadual que amparava juridicamente o Simve, a ministra Carmen Lúcia que presidia da sessão, considerou a existência de um impasse quanto a manutenção desses policiais em serviço. Segundo a ministra, manter nas ruas pessoas armadas que não são policiais, pois não foram convocados por meio de concurso público, gerava receios. “Manter um servidor que vai ser demitido daqui a seis meses com uma arma na mão é um motivo de preocupação”, disse.

Diante destes recentes eventos que culminarão com o desfalque considerável no efetivo da PM goiana, está instaurada mais uma crise no sistema de Segurança Pública do Estado. Por enquanto, segundo informações, o efetivo de 2.380 policiais do Simve en­contra-se ainda nas fileiras da PM. Os comandantes de cada unidade estão decidindo as tarefas que acharem necessárias. Trocando em miúdos, ainda há voluntários estaduais nas ruas em alguns municípios e em outros estão recolhidos nos quartéis em serviços burocráticos, enquanto os efetivos saem ao trabalho externo.

O governo vai esperar a análise por parte da Procuradoria Geral do Estado (PGE) para identificar o melhor encaminhamento para me­didas jurídicas e legislativas junto ao Congresso Nacional. Como a decisão de inconstitucionalidade do STF foi publicada no “Diário Oficial” da União no dia 16 de abril, o governo estadual tem até esta segunda-feira, 27, para possível recurso contrário à decisão do Supremo, que pode julgar possível embargo de declaração — recurso que serve para sanar provável omissão, obscuridade e contradição —, apesar de que esta possibilidade seja remota.

Caso o Estado recorra, poderá haver o adiamento da publicação da decisão em transitado e julgado, o que poderá manter a tropa do Simve por mais tempo no serviço ativo. Enquanto isso, cerca de 3,5 mil policiais militares efetivos estão substituindo parte dos soldados temporários, por meio de trabalho em hora extra, ou seja, no serviço extraordinário remunerado, de acordo com a lei regulamentar 15.949. Na semana passada, o Ministério Público do Estado de Goiás protocolou reclamação de que, em função da hora extra legalmente estabelecida, o período mínimo de descanso não estaria sendo obedecido. A sobrecarga na atividade policial militar pode causar sérios danos à saúde dos policiais militares que trabalham sob estresse.

PM previa as mesmas exceções legais das Forças Armadas aos militares estaduais

Mas afinal, o que é o Simve? O que é preciso entender deste programa em relação a seu funcionamento e quais foram as supostas “bases legais” nas quais o serviço esteve guarnecido? A começar por sua origem e circunstâncias que levaram a sua criação e aplicabilidade, a ideia original da PM goiana era a de aproveitar os reservistas das Forças Armadas (Marinha, Exército e Aeronáutica) na própria corporação e no Corpo de Bombeiros Militar.

Diante de gargalos no sistema de segurança pública enfrentados pelo Estado, como falta de efetivo, parcos recursos estaduais para investimentos e melhoria de salários, que também é uma problemática nacional, o governo goiano vislumbrou no Simve uma alternativa para o reforço de seus quadros ao atendimento dos anseios da população por mais policiamento presencial. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), por ter pouco mais de 6 milhões de habitantes, Goiás deveria ter no mínimo 25 mil policiais militares na ativa — sem o Simve, atualmente o efetivo é composto por aproximadamente 12 mil militares.

A PM goiana entendeu que, por força da natureza jurídica, assentados nos Artigos 42, 142, 143 e 144 da CF, os militares estaduais teriam garantidos as mesmas exceções legais abonadas aos militares federais. O comando da PM defendia que a Carta Magna brasileira, em seu artigo 144, atribuia às polícias militares a caracterização de órgãos de atividade permanente de segurança pública, atuando como força auxiliar e reserva do Exército, cabendo a elas a responsabilidade pelo policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública. Sendo assim, a PM se baseou na prerrogativa de que existia amparo constitucional e legal que institui o serviço militar tanto nas Forças Armadas quanto nas forças auxiliares (PM e Corpo de Bombeiros Militar).

Deste modo, o Estado editou a Lei Estadual nº 17.882, de 27 de dezembro de 2012, que instituía o Simve no âmbito da PM e do Corpo de Bombeiros Militar. A lei, que atualmente está na inconstitucionalidade por conta o julgamento do STF, previa a contratação de voluntários por período máximo de 33 meses, egressos do serviço militar obrigatório nas Forças Armadas. O voluntário deveria ter no mínimo 18 anos e máximo de 25, possuir o ensino médio completo, ser portador de certificado de dispensa de incorporação nas Forças Armadas e não possuir antecedentes criminais.

A seleção ficava a cargo do Comando de Administração e Finanças da PM, setor que também cuidava da avaliação física, de saúde, psicológica e social do voluntário. Após serem julgados aptos ao serviço, os candidatos iam para a etapa seguinte que era o treinamento. Durante o curso de formação, os voluntários estaduais recebiam uma remuneração de 70% do subsídio do soldado de terceira classe (uma graduação criada exclusivamente para atender os soldados voluntários estaduais), ou seja, dois salários mínimos (R$ 1.448,00).

Mesmo que a prestação deste serviço militar fosse de caráter temporário, de no máximo 33 meses, eles não escapavam dos descontos de natureza previdenciária. Isso ocorre porque eles prestavam um serviço público e, segundo a Lei do Serviço Militar Obrigatório no qual o Simve se pautava, a administração não podia deixar de recolher a respectiva tarifa. A contribuição previdenciária garantia a subsistência dos militares recrutados em caso de ocorrência de sinistro em serviço.

O curso de formação era ministrado na Academia de Polícia Militar (APM), com duração de nove meses, dividos em duas etapas. A primeira consistia no curso teórico (seis meses de duração) e a segunda no estágio supervisionado nas organizações policiais militares (batalhões, companhias, pelotões e demais destacamentos) com duração de três meses. A grade curricular segue os moldes do curso de formação de praças efetivos da PM.

Atividade limitada

Ao término do curso, os soldados de terceira classe estavam condicionados, segundo a PM, a desenvolver todas as frentes de serviço policial militar, desde trabalhos administrativos até operacionais, mapeados pelo manual do Procedimento Opera­cional Padrão (POP). Contudo, os militares do Simve não estavam aptos a desenvolver atividades de patrulhamento tático, ações de operações especiais, de choque, de patrulhamento aéreo, de operações com cães, de segurança e proteção de dignitários, de inteligência, policiamento montado e ações de material ou informações, ambos de natureza controlada.

A corporação justifica que tais atividades requerem qualificação e treinamento especializado, sendo restritas apenas aos militares efetivos. Em suma, por um subsídio bruto de dois salários mínimos, as atividades dos policiais militares voluntários eram focadas para o policiamento de proximidade, buscando fortalecer as ações de segurança comunitária mais próximas da comunidade. Os soldados do Simve também podiam atuar na vigilância de instalações públicas estaduais e no recobrimento em zonas prisionais, liberando os policiais de carreira, mais experimentados, para outras missões que requerem mais especialização e expertise.

Mesmo com forte presença junto à comunidade, serviço divide opiniões

Quem melhor para julgar se o Simve correspondia ou não às expectativas da sociedade do que a própria população? Em busca das impressões deixadas pelo programa junto à comunidade, o Jornal Opção ouviu os cidadãos acerca do fim do programa de militares voluntário da PM, e as respostas foram as mais diversas. Para o serralheiro Renan Oliveira, os militares do Simve não vão fazer falta. Ele justifica sua resposta dizendo que o problema é qualitativo, não quantitativo. “Nossos policiais precisam de mais treinamento e de qualidade no serviço. Às vezes eles demoram mais de 40 minutos para atender uma ocorrência, portanto, falta preparo”, argumenta.

Para a psicóloga Fernanda Fer­reira, o Simve também não vai fazer falta no escopo de Segu­rança Pública do Estado. Segundo ela, a PM precisa chamar os concursados que estão no cadastro de reserva para reforçar o efetivo da corporação. “Acho que o correto seria o Estado chamar os que fizeram o último concurso”, diz. A auxiliar administrativo Juliana da Silva compactua da ideia de Fernanda, isto é, o aproveitamento dos integrantes em cadastro de reserva do último concurso para soldado realizado em 2012. “Esses policiais temporários vão fazer falta para a segurança dos cidadãos, mas é preciso chamar aqueles que fizeram concurso e estão esperando serem chamados”, afirma.

A bacharel de Direito Tainah Luiza Lopes também pensa que o Estado deveria dar preferência aos servidores efetivos para integrarem a Segurança Pública, em especial na PM. Ela diz que a sociedade precisa de mais policiais, porém que sejam selecionados por meio de concurso como forma legal de entrarem no funcionalismo público. “A ausência do Simve nas ruas vai impactar na segurança em um primeiro momento, mas o governo precisa chamar os que realizaram o último concurso antes de convocar um novo”, diz.

Idealizador do projeto explica que temporários não substituem concursados
Coronel Edson Araújo: “Simve é um programa social, uma oportunidade” | Fernando Leite/Jornal Opção
Coronel Edson Araújo: “Simve é um programa social, uma oportunidade” | Fernando Leite/Jornal Opção

Atualmente na Superinten­dência Executiva da Adminis­tração Prisional (Seap), o coronel Edson Costa Araújo, um dos idealizadores do Simve, disse ao Jornal Opção que os voluntários não estariam usurpando a vaga dos efetivos. Ele explica que os que entraram no cadastro de reserva devem aguardar uma vaga para soldado de segunda classe, que são militares efetivos de carreira. Os voluntários estaduais preenchem vaga de soldados de terceira classe, em caráter temporário. Além disso, o trabalho do concursado não pode ser feito pelo temporário, isto é, o Simve só pode exercer atividades básicas, mais simples. “O Simve não ocupa lugar do servidor de carreira, as vagas não se misturam”, afirma.

Ele que foi comandante da PM quando o Simve foi instituído na PM, coronel Edson Araújo defende que o serviço é a única solução para o problema da segurança pública no Brasil: “É imperativo viabilizar uma alternativa para aumentar o quantitativo de policiais nas ruas”, diz. Segundo ele o programa de voluntários estaduais nasceu como um programa social, uma oportunidade para que os jovens egressos do Exército tivessem uma chance de servir o Estado. “Todos são qualificados e preparados e, ao mesmo tempo que o Brasil sofre com a falta de policiais nas ruas, temos uma enorme quantidade de jovens devolvidos do serviço militar que, por vezes, não encontram oportunidade de trabalho.”

Ministério Público propõe convocação do cadastro de reserva para suprir vagas deixadas pelo Simve
Fernando Krebs propõe a convocação de concursados | Fernando Leite/Jornal Opção
Fernando Krebs propõe a convocação de concursados | Fernando Leite/Jornal Opção

O promotor de Justiça Fernando Krebs enviou ofício ao procurador-geral do Estado, Alexandre Tocantins, propondo um acordo na ação civil pública que questionou o funcionamento do Simve, para que seja determinada a convocação e nomeação de cerca de 1,4 mil integrantes em cadastro reserva do concurso realizado em 2012, para suprir as vagas que serão deixadas pela exoneração de 2,4 mil militares voluntários estaduais. Na argumentação de Fernando Krebs, diante da impossibilidade de se manter o Simve e pela inconveniência de se realizar um novo certame imediatamente para reforçar os quadros da PM, esta seria a medida mais adequada ao Estado.

O promotor reitera que a realização de um novo concurso, conforme já noticiado pela imprensa, demanda muito tempo, além de ser dispendioso e lento, o que confronta com o dever imediato de garantir segurança pública à população. Krebs salientou ainda que são evidentes os transtornos que podem surgir do decréscimo imediato de aproximadamente 2,4 mil policiais militares do Simve na corporação, fato que pode agravar os índices de criminalidade no Estado, por isso a proposta do acordo, que poderia extinguir a ação. Até sexta-feira, 24, a PGE não tinha se manifestado a respeito.