A tabela de procedimentos do Sistema Único de Saúde (SUS) é o índice usado pelo Ministério da Saúde para remunerar os hospitais e clínicas conveniados à rede pública de saúde. O índice não é reajustado há mais de 20 anos, de forma que o pagamento da rede pública de saúde não condiz mais com o custo dos exames, cirurgias, medicamentos e atendimentos. Para compreender a situação, o Jornal Opção ouviu o Ministério da Saúde, representantes de hospitais particulares e filantrópicos, e legisladores que propõem a atualização da tabela.

Levantamento da Federação das Santas Casas do Espírito Santo divulgado em março deste ano mostra que a diária paga pelo SUS tem um valor médio de R$ 4 reais para cada paciente, insuficiente para cobrir os custos. Exames simples, como uma radiografia, atualmente pagam R$ 7 ao operador, quantia insuficiente para cobrir sequer os insumos desse exame de imagem.

Por isso, hospitais particulares que atenderam o SUS no passado deixaram de fazê-lo. A médica ginecologista e obstetra Bárbara Teodoro é diretora técnica do Hospital Santa Bárbara, em Goiânia, e afirma que a instituição atendeu por anos os pacientes do sistema público, mas foi obrigada a deixar o programa de convênio por conta dos valores abaixo do praticável. “Sempre gostamos dessa possibilidade, mas os hospitais particulares que atendem o SUS acabam pagando para atender os pacientes.”

Bárbara Teodoro comenta: “Acredito que, se a tabela fosse sempre atualizada, representaria uma vantagem para todos. Seria atrativo para os hospitais privados, por conta do volume de pacientes; seria positivo para os pacientes, que poderiam utilizar gratuitamente os serviços de grandes hospitais; e seria bom para a saúde pública por desafogar a demanda. Infelizmente, é inviável. Os valores pagos não cobrem nem mesmo os insumos de exames, que dirá internações e procedimentos.”

Há apenas seis anos, em Goiás, cerca de 45% de todos os serviços dos hospitais privados eram vendidos ao Governo Federal via convênio com o SUS; mas hoje o índice não passa de 6%. “A defasagem obrigou os hospitais a se adaptarem para atender apenas a saúde suplementar”, afirma Haikal Helou, diretor da Associação dos hospitais privados de alta complexidade do Estado de Goiás (Ahpaceg). Segundo Haikal Helou, as instituições que atendiam principalmente o SUS e não conseguiram se adequar acabaram falindo, como o Hospital Santa Genoveva, Lúcio Rebelo e outros.  

Haikal Helou
Haikal Helou médico e presidente da Ahpaceg | Foto: Reprodução

Histórico da defasagem

O diretor da Ahpaceg explica as razões pelo subfinanciamento do SUS. Segundo Haikal Helou, a ideia da tabela de procedimentos foi mais bem sucedida durante os anos do governo Fernando Henrique Cardoso, de 1995 a 2003. Neste período, o ministro da saúde José Serra (PSDB) implementou um sistema de remuneração por eficiência, em que os conveniados recebiam até quatro vezes mais caso comprovassem qualidade por meio de certificações e resultados. 

“A rede privada se interessou e se estruturou para atender o SUS”, comenta Haikal Helou. “Entretanto, com o início da defasagem na tabela, outros entes entraram para compensar as perdas. O estado de Mato Grosso foi o primeiro a complementar a remuneração dos procedimentos para manter a iniciativa no sistema, e Goiás chegou a fazer o mesmo por alguns anos”. A atitude das secretarias estaduais e municipais de saúde funcionou por alguns anos, mas desobrigou o governo federal a manter a tabela atualizada. 

Com a complementação vinda dos estados, a tabela do Ministério da Saúde se tornou progressivamente mais defasada. “O problema se aprofundou durante os anos do governo Dilma (PT) – digo sem defesa partidária, mas o fato é que neste período predominou a ideia de que a Saúde Pública não deveria dar lucro”, afirma Haikal Helou. “Os recursos deixaram de ser destinados à remuneração dos procedimentos via tabela e passaram a ser transferidos diretamente para as instituições de saúde públicas, filantrópicas e os hospitais universitários.” Essa política posteriormente foi interrompida em função do controle de gastos públicos, e os hospitais que confiavam na política ficaram sem financiamento. 

Retrato atual

No ano de 2019, pela primeira vez, as despesas das famílias com saúde superaram os gastos do governo para a área. Neste ano, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o consumo final de bens e serviços de saúde no Brasil atingiu R$ 711,4 bilhões. Desse total, R$ 283,6 bilhões (3,8% do PIB) foram despesas do governo e R$ 427,8 bilhões (5,8% do PIB), de famílias e instituições sem fins lucrativos a serviço das famílias.

Atualmente, o segundo maior gasto das empresas brasileiras (após folha de pagamento) é com planos de saúde. “Isso não é caridade: é o que atrai funcionário”, diz Haikal Helou. “A empresa que não oferece esse benefício tem dificuldade de manter seus funcionários. O serviço público é de qualidade, mas a fila é grande. Sem o convênio com hospitais privados e com as dificuldades financeiras dos hospitais filantrópicos, há uma sobrecarga dos hospitais públicos.”

Filas em hospitais públicos são reflexo do abandono de convênios por hospitais privados | Foto: Reprodução

Enquanto 45% da população de São Paulo tem planos de saúde, em Goiânia essa porção é de 22%. A proporção depende da condição financeira, e aumenta em estados mais ricos, segundo levantamento da Ahpaceg. Em tempos de inflação, o plano de saúde é um dos itens a ser cortado das despesas da família. 

“No SUS, vemos pacientes esperando por até três anos para procedimentos eletivos simples, que se agravam sem tratamento e tornam-se procedimentos de urgência”, afirma Haikal Helou. “O governo federal financia de forma provisória e sem planejamento os serviços de emergência que poderiam ter sido evitados com a política de atualização da tabela de procedimentos do SUS com compensação por resultados”.

Perspectivas futuras

O médico e deputado federal Zacharias Calil (UB) é membro do grupo legislativo responsável por acompanhar a tabela SUS, a Subcomissão Permanente de Saúde (Subsaude), dentro da Comissão de Seguridade Social e Família. O parlamentar afirma que a Câmara dos Deputados está trabalhando em um estudo de impacto financeiro com sugestões de incremento no valor dos procedimentos para ser enviado ao Ministério da Saúde, mas que o documento ainda não tem data prevista. 

Zacharias Calil disse: “Estive com o ministro Luís Roberto Barroso no dia 6 para falar sobre o Piso Nacional da Enfermagem, e nesta conversa afirmei a ele que uma possível saída seria a atualização da tabela SUS. O ministro Barroso tem grande interesse no tema e espero que, com o Ministério da Saúde, possamos articular os três poderes para oferecer uma solução rápida aos hospitais e clínicas que estão subfinanciados há muitos anos.”

Zacharias Calil | Foto: Fernando Leite / Jornal Opção

Segundo o deputado, o SUS não tem sido encarado como um programa de Estado com planejamento a longo prazo, mas de governo. “Sai governo e entra governo e as políticas são abandonadas e substituídas – todos acham que seu programa é o melhor. Eu acredito que deve existir um programa maior que permita que os entes conveniados prevejam sua adesão ao sistema.”

O deputado especula as razões para a defasagem: “As coisas vão se acomodando, ninguém se manifestou de forma forte porque medidas paliativas surgem para remediar temporariamente a situação. Na pandemia, o SUS impediu o Brasil de colapsar; houve um gasto enorme de forma emergencial que poderia ser revertido em valores liberados de forma planejada.” 

Visão do governo

Em resposta ao questionamento, o Ministério da Saúde respondeu por nota que a tabela de procedimentos do SUS não é a única fonte de repasses do governo federal, e que mensalmente são enviados aos fundos estaduais e municipais de saúde recursos financeiros destinados ao custeio da saúde. 

Bárbara Teodoro, diretora técnica do Hospital Santa Bárbara, afirma que o problema dos repasses aos fundos estaduais e municipais de saúde é que esses recursos são imprevisíveis. “Quando o recurso não vai diretamente para a instituição, os estados e municípios precisam receber primeiro para depois pagar o que devem às empresas. Isso atrasa pagamentos e dificulta qualquer relação comercial.”

Haikal Helou argumenta que os recursos dos fundos de saúde dos governos estaduais e municipais podem ser gastos de diversas outras formas, e que a mera existência do dinheiro nos fundos não significa o pagamento dos conveniados. “A tabela é o padrão. Deve haver uma base para qualquer acordo. A saúde não se mantém com repasses esporádicos. A política pública precisa de reajustes constantes e previsíveis, e essa é uma função do governo federal.”