Pode-se dizer que a bicicleta é um elemento termômetro para aferir a qualidade de vida nas grandes cidades. Mas uma nova cultura de transporte não será estabelecida se só se olhar para o imediato

Canteiro central da Avenida Paulista vai se tornar ciclovia: ação do prefeito Haddad polemiza e gera contra-ataque
Canteiro central da Avenida Paulista vai se tornar ciclovia: ação do prefeito Haddad polemiza e gera contra-ataque

Elder Dias

Aqui faz calor demais para andar de bicicleta. Goiânia é uma cidade que não tem estrutura viária para isso, não. Nem todo mundo tem físico para pedalar. Mas como vou fazer chegando suado ao trabalho? Bicicleta é muito perigoso. Isso é coisa para fazer só em fim de semana. Andar de bike é modismo, não é para trabalhador.

Frases assim levam a pensar em como a história dá mostras de fazer movimentos pendulares. Costumes vão e vem, em sístoles e diástoles de décadas e séculos — no passado, Goiânia já teve um trânsito com maioria de ciclistas. Hoje, ainda que esteja em uma fase embrionária, existe um movimento cicloviário na capital. E a prova é que pessoas começam a se deparar com frases e questionamentos como os do parágrafo anterior.

A crise na mobilidade das grandes cidades brasileiras, Goiânia inclusa, tem chegado a tal ponto de saturação que não resta alternativa a não ser sair do carro. Para quem transita pela cidade em trechos não muito longos, especialmente de casa ao trabalho, a conta do tempo perdido somada à do estresse de congestionamentos já está superando a do conforto e status do transporte individual motorizado.

Ações do poder público em todo o Brasil, ainda que de maneira tímida ou desorganizada, dão sinais de que o enfoque dado à mobilidade está passando a ser com a função social da malha viária . Na prática, isso significa priorizar corredores exclusivos para ônibus, VLTs (veículos leves sobre trilhos) e BRTs (ônibus de trânsito rápido); mas também há uma pressão (ou até mesmo o que poderiam chamar de “autopressão”) para criação de espaços destinados a ciclistas.

Como ocorre em qualquer disputa territorial, nada vem sem rearranjos. E as negociações para uma nova formatação do que seja transitar pela cidade, por sua vez, causam reações as mais diversas. Em uma sociedade imersa na cultura do automóvel, se já há certa hostilidade em relação à cessão de espaço para eixos de transporte coletivo, pior acontece quando se fala em abrir ciclovias e ciclofaixas.

E atitudes de contra-ataque a políticas públicas nesse sentido têm se tornado cada vez mais comuns. O que pode ser visto como positivo, por um lado, e negativo, por outro. Falando primeiramente sobre o que pode haver de bom, se há uma reação, ainda que desagradável, é porque existe algo que incomoda; e, se incomoda, é porque passa a ter alguma representatividade no contexto da discussão.

Já o que há de negativo varia, desde pensamentos articulados em textos para blogs e jornais até ações extremadas que tangenciam — por que não dizer? — uma linha terrorista. No Brasil, a discussão do transporte cicloviário ganhou amplitude na mídia por conta de uma intensificação das ações da prefeitura da maior cidade do País para sua implantação.

Foi o que bastou para que houvesse reações um tanto descompensadas por parte de setores diversos, inclusive da imprensa. O jornalista Reinaldo Azevedo, colunista e blogueiro da “Veja”, virou uma referência nas críticas extremadas ao prefeito Fernando Haddad (PT). Desde meados do ano passado, ele vem publicando uma série de textos de oposição à implantação do espaço para circulação de ciclistas em São Paulo — a atual gestão se propôs a executar 400 quilômetros de ciclovias e ciclofaixas até 2016 e, há um ano, vem intensificando os esforços nesse sentido.

O furioso do teclado contra o “maníaco da ciclofaixa”

Mulher transita em ciclovia de Sevilha: cidade espanhola já está do “outro lado” da discussão sobre mobilidade
Mulher transita em ciclovia de Sevilha: cidade espanhola já está do “outro lado” da discussão sobre mobilidade

Obviamente, há reclamação e incompreensão por parte de quem usa automóvel. Eles olham para aquela faixa vermelha instalada à margem de toda a rua em que estão carros se engalfinhando uns contra outros e se revoltam por perceber ali um espaço subutilizado. É para esse público de quatro rodas que Reinaldo Azevedo escreve furiosamente palavras como “maníaco da ciclofaixa” (se referindo a Haddad), “ciclofascistas”, “biciclopetistas” e trechos como “as ciclofaixas para ninguém de Fernando Haddad (…) — desertos vermelhos ladeados por ruas engarrafadas”.

Não se estabelece uma nova cultura olhando para o imediato, que é o que Azevedo teima em relatar. É que uma mudança de meio de transporte envolve tempo para ser concretizada. Somente com a garantia de que aquele espaço descrito como “desertos vermelhos” não será invadido por criaturas de metal e quatro rodas é que pessoas terão coragem, em grande número, de trocar carro e moto por bicicleta e então se deslocarem.

Enquanto isso, ocorre um estado que se poderia chamar de “ciclofóbico”. É de uma forma intelectual de “ciclofobia” que padece Reinaldo Azevedo. Mas outros radicais ciclofóbicos desenvolvem práticas mais perigosas. Foi um desses que acabou por vitimar ciclistas que transitavam pela Rua Artur de Azevedo, no bairro de Pinheiros, zona sul da capital paulista, em outubro do ano passado. Vários dos que se utilizaram da ciclovia ali instalada naquele mês reclamaram de ter tido pneus furados por tachinhas. A realidade é que moradores e comerciantes não aceitam a novidade por causar mudanças em suas vidas e em suas vendas.

Foi exatamente esse medo da mudança que moveu a população do Barreiro, uma região deBelo Horizonte, a protestar contra a implantação de uma ciclovia em uma avenida. No início de fevereiro, cerca de 50 pessoas se juntaram para fechar a via, queimar pneus e até mesmo retirar os blocos que seriam utilizados para fazer a demarcação do trecho destinado aos ciclistas. Talvez a via — com tráfego intenso de carros e veículos pesados — não fosse realmente a mais adequada para uma obra do tipo, mas a reação foi sintomática.

Mas nenhuma atitude ciclofóbica ficou tão simbólica no Brasil quanto a que tomou Ricardo José Neis em 25 de fevereiro de 2011, em Porto Alegre. Na noite daquele dia, ele abriu caminho com seu Golf preto em um ato de cicloativistas chamado de “massa crítica” (quando se toma todo o espaço da rua em bloco, geralmente para alguma manifestação). Deixou um rastro de pessoas caídas e feridas e virou notícia internacional. Hoje, o engenheiro metalúrgico responde por 11 tentativas de homicídio, em processo que está em Brasília, aguardando julgamento do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ainda sem data prevista.

Ciclofobia, assim no Brasil como na Europa

Joinville, a capital brasileira das bicicletas: uma das poucas localidades do País onde já há uma cultura cicloviária
Joinville, a capital brasileira das bicicletas: uma das poucas localidades do País onde já há uma cultura cicloviária

A ciclofobia não é privilégio nacional, evidentemente. Ocorre mundo afora e, acredite, inclusive na Europa, continente conhecido pelo racionalismo e pela tradição da bicicleta como meio de transporte. Em Sevilha, cidade referência da Espanha em termos de uso do veículo, ainda hoje se fala exatamente em “ciclofobia” como algo que necessita de “tratamento urgente”. Foi o que estampou um blog, ao reagir à tentativa da prefeitura local de transformar uma ciclovia em área de estacionamento.

De qualquer forma, enquanto na Europa o movimento pendular pode até querer afrouxar um pouco as normas que hoje beneficiam os ciclistas, por aqui esse deslocamento não fez ainda nem o processo de ida. Se a ciclofobia lá ocorre, de alguma forma, porque há uma reação ao espaço que as bikes ganharam, por aqui a rejeição é prévia: vem como antecipação ao que pode ainda ocorrer.

À exceção de poucas localidades, especialmente no Sul do País — Joinville (SC), conhecida como “a cidade das bicicletas”, é sempre a maoir referência —, a cultura da bicicleta ainda é algo a se criar. Algo incipiente, mas necessário, diga-se.

Pode-se dizer que a bicicleta seja um elemento termômetro para aferir a qualidade de vida nas grandes cidades. Quando maior sua presença e seu uso, maior será o sinal de que a mobilidade urbana está caminhando no rumo certo. Não só isso: como reação em cadeia, também a qualidade de vida ganha melhores índices — mais bicicleta significa menos poluição, mais exercícios físicos e, ao fim, menosdoenças e redução de gastos públicos, que poderão ser investidos em outras áreas.

Esse percurso, se é que vai ser feito no Brasil (embora seja imprescindível, como antevê por exemplo o prefeito Haddad, não significa que haja adeptos da filosofia de Reinaldo Azevedo nas futuras gestões de São Paulo e outras cidades), ainda vai levar décadas ou, com algum otimismo, um bom punhado de anos. Nesse sentido, não se pode dizer nem mesmo que o projeto cicloviário para Goiânia já tenha saído do papel — principalmente se se observar que há apenas duas avenidas (Universitária e T-63) com modestos trechos implantados para o ciclista e que nem mesmo estão interligadas. Do que foi prometido em ciclovias para a atual gestão de Paulo Garcia (PT), mal se chegou a 5% após decorrido já mais de 55% do mandato. Faltam 95% de intervenção para se executar em menos de 45% do período.

Mas, como seu colega paulistano de cargo e de partido sabe bem, a missão de Paulo em sua “cidade sustentável” do programa de governo é mais ampla e complicada sobre esse tema: também será preciso desfazer mitos, a origem de todas as fobias. E eles estão vivos, como mostra o início deste texto. A falácia alimenta a ignorância e ambas geram os males. É preciso rever conceitos e reverter preconceitos para só então fazer uma obra por completo.