Em nova tradução, uma das obras mais famosas do pensador francês retorna às prateleiras com vigor renovado e mostrando-se poderosamente pertinente

Ricardo Silva

Especial para o Jornal Opção

A experiência amorosa como é compreendida na contemporaneidade é um fenômeno recente na linha histórica da humanidade. O amor nunca havia sido, até uns poucos séculos atrás, entendido e absorvido como é hoje. Mesmo nos dias correntes, este sentimento reformula-se e encontra novos espaços de ocupação.

Uma das características essenciais do sentimento amoroso é a forma como aqueles que amam, os amantes, percebem e sentem o amor. A subjetividade que perpassa a experiência amorosa é tida como absoluta. “Só eu sinto o que sinto, da forma como sinto”, pensa o sujeito enamorado. Compreende-se, dentro deste campo subjetivo, que o amor, ou sentimento amoroso, não esteja amarrado ou preso a uma dimensionalidade discursiva, que o engendre dentro de uma estrutura, já que ele é fluxo contínuo que não se contém ou se fecha em si.

No entanto, e na contramão dessa dimensão subjetiva de leitura do sentimento amoroso, Roland Barthes, em “Fragmentos de um Discurso Amoroso” (Editora Unesp, 288 páginas, tradução de Hortênsia dos Santos), coleta diversos marcos fundamentais da experiência amorosa e traça uma análise fria, científica e cínica dessa vivência tão familiar a todos os seres humanos.

O que estimulou Barthes a elaborar essa leitura analítica foi a percepção de que “o discurso amoroso é hoje de extrema solidão”. Ao afirmar isto, Barthes indica que, enquanto discurso, o amor esteve sempre solitário pois lhe faltou um estudo apropriado dos seus procedimentos e das influências que exerce nos sujeitos que dizem estar sob sua influência. O discurso amoroso se formatou, se delimitou e criou seus recursos narrativos “por sua própria força”.

Roland Barthes é detalhista ao máximo, e investiga por meio de capítulos fragmentados, os marcos fundamentais do discurso amoroso e elabora, com isso, um contraste belo das contradições nas quais se emaranham o discurso do amor | Foto: Reprodução

Em “Fragmentos de um Discurso Amoroso” a proposta de Barthes é analisar a partir de exemplos diversos — presentes na literatura, na história, na filosofia, e nas próprias experiências pessoais — como se estrutura o amor enquanto discurso. Para dar cabo à essa empreitada, a linguagem é o grande ponto central do escrutínio barthesiano.

Os signos, os símbolos e os elementos linguísticos nos quais se enredam o discurso amoroso funcionam sob uma redoma invisível da linguagem que, segundo Barthes, exerce influência na própria maneira como o indivíduo enamorado apreende o sentimento amoroso em si. Aquele que se apaixona, exatamente por sua condição própria, não percebe que é condicionado, é influenciado, é fruto e consequência de uma construção narrativa, discursiva que o estimula a considerar que a forma como ama, se apaixona, é original, única, incontestável, quando na verdade tudo que ele ama de fato não é o objeto do amor, o ser amado, mas o próprio discurso do amor, conclui Barthes.

O amante, aquele que ama, está aprisionado no seio da trama do discurso amoroso e o alimenta com os clichês tão característicos desse “sentimento”. Barthes expõe exatamente essa trama por meio da análise de diversos episódios da experiência amorosa, se utilizando de estereótipos presentes em clássicos da literatura, da história e da filosofia para exemplificar seu diagnóstico. Nesse processo, o semiólogo e filósofo francês vai deslindando ao longo da sua obra a intrínseca relação existente entre linguagem, símbolo e percepção.

É na linguagem, que se desdobra em signos potentes e de largo alcance, que o sentimento amoroso se calca, se fundamenta. Tanto que, para Barthes, somente a primeira declaração de “eu te amo” é verdadeira, as demais esvaziam-se porque são somente mera repetição mecanizada de um sentimento que não se encontra mais representado ou mesmo presente nessa expressão.

A análise quase científica que Barthes faz do discurso amoroso pode incomodar o leitor mais sensível, que talvez veja no exercício hermenêutico do escritor uma afronta ao amor, mas é o inverso disso que Roland Barthes opera em “Fragmentos de um Discurso Amoroso”. Barthes não se propõe a responder de forma cabal o que é o amor, não está preocupado em dar explicações totalizantes e absolutas sobre esse sentimento, mas sim questionar-se sobre o que é o amor, o que torna ele simbolicamente tão universal e o que faz com que os seus signos discursivos se reproduzam e tenham efeito tão semelhante em sujeitos que vivem em contextos tão diferentes. O que torna o amor isso que ele é? Essa é a questão central desta obra de Barthes.

“Fragmentos de um Discurso Amoroso” reajusta as percepções a respeito do amor, do amante e do que este fala ao dizer que ama, que alimenta este sentimento por um objeto específico, o objeto do seu amor. Esse reajuste do ângulo de visão sobre o discurso amoroso permite entender os padrões pelos quais ele se expressa, os procedimento que adota diante de situações que se repetem com amantes do mundo inteiro.

Barthes é detalhista ao máximo, e investiga por meio de capítulos fragmentados, os marcos fundamentais do discurso amoroso e elabora, com isso, um contraste belo das contradições nas quais se emaranham o discurso do amor. A beleza da obra de Barthes repousa exatamente nessa sua assertividade ao identificar a mútua influência exercida entre a linguagem e o sentimento, no qual um molda e condiciona o outro de acordo com seus próprios termos.

Passar por uma obra como “Fragmentos de um Discurso Amoroso” é poder ver um exercício analítico poderoso, que nos questiona e nos coloca para lidar com os aspectos menos ternos de um sentimento tão apreciado por todos. O que Barthes faz é nos pôr na incômoda, mas necessária, posição de refletir sobre aquele sentimento que, em geral, vivenciamos sem qualquer amarra reflexiva. E isso se mostra, no final das contas, uma experiência existencial fundamental para uma ressignificação da nossa relação com o sentimento amoroso. Uma transformação que somente um Roland Barthes poderia operar na gente.

Ricardo Silva, crítico literário, é colaborador do Jornal Opção.