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“Lúcio Cardoso/Poesia completa”. (Edição crítica de Ésio Macedo Ribeiro, Edusp, 2011.)

Adalberto de Queiroz
Especial para o Jornal Opção

Quando se lê o nome de Lúcio Cardoso, vem à mente do leitor o famoso prosador, consagrado sobretudo pelo romance “Crônica da casa assassinada”, conhecido por sua íntima amizade com Clarice Lispector e famoso por seu comportamento nada ortodoxo, marcado por uma “inquietude existencial”, como diria Nelly Novaes Coelho. Afinal, “Lúcio nunca esteve do lado ‘correto’ da vida: rebelde e insurrecto desde os anos de ginásio, vivendo sempre longe da presença paterna, foi, como poucos, fiel até o fim aos seus princípios e visão de mundo, ainda que à custa de isolamento e solidão. Seu diário traz testemunhos desse estranhamento, dessa marginalidade”. A citação é de Ésio Macedo Ribeiro, constante em sua obra “O riso escuro ou o pavão de luto: um percurso pela poesia de Lúcio Cardoso”.

Se o romance “Crônica da casa assassinada” pode ser considerado uma obra-prima pelo “rigor estilístico e formal”, o que de certa maneira é a característica da média de sua produção ficcional, o mesmo não pode se dizer de sua poesia.

O nome de Lúcio Cardoso, desaparecido há quase meio século, permaneceu como o de um escritor de qualidade e apreciado no Brasil e no exterior, onde foi traduzido para o francês, o espanhol, o italiano e o inglês. A ‘redescoberta’ do nome e da obra de Lúcio deu-se no final da década de 1990 “seja pelo relançamento de seus romances, seja pelo lançamento do filme “O Viajante” (dirigido por Paulo César Saraceni), baseado na obra homônima de Lúcio.

A poesia de Lúcio Cardoso é, mesmo para os leitores mais vorazes, quase desconhecida. Daí a relevância de que se reveste “Lúcio Cardoso: Poesia completa” (Edição crítica de Ésio Macedo Ribeiro. Edusp, 2011) para os pesquisadores e leitores em geral que amam a obra de Lúcio. O trabalho é uma espécie de sequência natural para o pesquisador que havia se dedicado em sua tese de mestrado (2001) à poesia de Cardoso, com seu “O riso escuro ou o pavão de luto: um percurso pela poesia de Lúcio Cardoso”, que se transformou em livro em 2006, pela Edusp/Nankin Editorial.

 É esse exaustivo trabalho de pesquisa que Ésio Ribeiro entrega ao leitor de língua portuguesa em “ordem crítica”, depois de analisar um acervo de 675 poesias, entre manuscritos autógrafos e datiloscritos, 84 poemas publicados em periódicos, antologias e inéditos de acervos públicos e privados, gerando uma “descrição da forma organizacional” que dá à edição crítica um roteiro para o pesquisador e o amante da boa poesia.

Além disso, há no trabalho de Ésio Ribeiro uma cronologia de Lúcio Cardoso e uma introdução crítico-filológica focada na histórica das publicações (livros e periódicos) e dos inéditos. Dois apêndices completam a obra de mais de mil páginas – uma bibliografia anotada (1934-2010) e 6 fac-símiles escolhidos entre os mais e seiscentos consultados pelo pesquisador.

 Num mar de produção intensa, com suas altas ondas, suas marés altas e vazantes, selecionei 3 poemas para esta Terça Poética, não antes sem destacar a consciência de Lúcio Cardoso a respeito do seu fazer poético, conforme anotação tirada ao “Diário”, onde diz:
“Não se ama os poetas, grande engano – são seres solitários e destinados à morte. Morte sem perdão – porque não há perdão para os poetas”.

O pecador confesso, Lúcio Cardoso, ressurge aqui, por obra e graça de Ésio Macedo Ribeiro na exuberância de sua produção poética, que, com “a edição e o exame crítico da obra poética” deseja (e consegue) “iluminar aspectos dos seus [de Lúcio] textos em prosa, sobretudo aqueles em que os signos da noite, da morte e das sombras são também recorrentes” .

Artista multifacetado, com inúmeros recursos de expressão, Lúcio trafegou do conto à novela, do romance à dramaturgia, do memorialismo ao cinema, do ensaio e tradução às artes plásticas, porém, “dentre todas as artes que praticou, constatei que a poesia foi a primeira forma de expressão de Lúcio e, talvez, a última. Às vésperas do derrame que o furtou à arte da palavra, Lúcio escreveu o poema intitulado “Retrato de Yêda”. Era o dia 11 de novembro de 1962. Exatamente 26 dias depois, em 07 de dezembro, o artista sofreria o segundo derrame [cerebral], que o impediria definitivamente de escrever”- diz Ésio Ribeiro.

Eis os poemas:

 Poema

Que sei fazer, meu Deus, senão amar?

As tardes de estio, o vento nos caminhos,
a ausência.
Sinto que tudo não será senão um sonho
a dilacerar no tempo imóvel.

O vento nas folhas, o vento no rio,
o vento arrastando as nuvens indefesas.

O teu olhar, os teus cabelos que rolam,
o meu amor que não se acaba.

Que sei fazer, meu Deus, senão sofrer?

 

O Rio

O imenso rio, como um tigre
fechado e seu âmbito de fome,
depois de devorar noturna selva
a própria espuma em si consome.

Fera desatada do aguadouro
a chorar os tempos de abastança
ácido cavalo em tons de louro
violando margens sitiadas…

…em teu ser ressurge minha infância
e pássaros reluzem na tua fronde.
Inquieto, também sem permanência

devasso tua alma sem receio;
e se assim me vejo em teu espelho,
rio, como ser sem ser o meio?

 

Não se pode ler

Não se pode ler o que
confiado ao tempo flui
e se esvai com ruptura
do sangue –
e o que dito sem aleive,
transforma-se em pedra,
sobre o coração leve – leve demais –
e o que orgulhoso, radica-se no baixo, sem
forças para morrer e
nem glória para subir –
NÃO SE PODE LER
o que não se pode pensar,
nem ler, nem escrever.
Não se pode ler o que não se pode.

Adalberto de Queiroz é poeta, autor de “Frágil Armação” (Caminhos, 2017, 2ª edição) e “Destino Palavra” (2016).