A liberdade da Arte que não serve a nada
01 maio 2015 às 12h14
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Em “A Projetista”, bailarina Dudude Herrmann grita, surdamente, o quanto a arte e a vida viraram reféns de “projetos para amanhã”
“É muito fastidioso vestir, inicialmente, uma camisa, depois, uma calça e, à noite, ir para o leito e dele sair pela manhã e colocar sempre um pé diante do outro. Uma vida cotidiana que se confunde com a reafirmação do dever. Há muito pouca esperança de que isso venha a mudar.” – Georg Büchner
Yago Rodrigues Alvim
De uns dias para cá, Dudude Herrmann tem gostado mais do céu nublado. É que, na falta de água, o azul claro é agressivo no céu. É preocupante, diz ela, pois o ser humano está seco, duro, ignorante e violento. Afeto é água. “Precisamos chover”. Ela, bailarina mineira, viu por esta terra o quanto os discursos estão vazios; o quanto, em protestos, as pessoas só gritam ao léu. Dali, nada frutifica. É tudo para além. Dudude viu que o ser humano, agora, é “ter” humano –– coisa cheia de projetos.
Nos palcos, ela, que já dava suas primeiras piruetas em 1970, abre o grande esclarecedor Aurélio. Passeia pelos “is” e “ps”, só que ao inverso. Primeiro, ela descobre, procura entender a novidade dos projetos; do que é projetar, do ser projetista. Depois, já diante às folhas e mais folhas demandadas por um edital, por um crivo ínfimo desmiolado –– como ela faz parecer –– percebe o quão ingênua é. O quão ingênuos os artistas têm sido na labuta de projetar.
A artista tirou gargalhadas e sorrisos daqueles que estiveram no Sesc Centro, em Goiânia, na festividade do dia 29 de abril, o Dia Internacional da Dança. Já num exemplo do que ela mesma leva para o linóleo, Dudude foi convidada pelo idealizador do Manga de Vento (circuito pelo qual Dudude se apresentou), o professor Kleber Damaso no ano de 2013. Foram necessários dois anos para que o circuito se materializasse em espetáculos, mostras de filmes e bate-papos. “A Projetista” também gastou esse tempo.
Foi em 2009 que Dudude escreveu “A Borboleta” e botou, entre parênteses, “nome provisório”. Quase foi “A Sonhadora”, “A Voadora”. Não passou no Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna. Na mesinha, donde se projeta, está o projeto inscrito e também diversos autores –– filósofos, dramaturgos –– aos quais faz referência. São trechos quase exatos. Dudude é improvisadora, mas a diretora Cristiane Quito bem disse à ela que lesse determinados excertos. Assim tem feito, já que a direção da paulista Quito foi presente a uma vontade que a bailarina sempre tivera.
Na mesinha, então, fica sua singela e generosa biblioteca, junto a florestas em papeis de destino certo: o léu. O estalo dos dedos quase que vem daí. Dudude dança, comprova seu currículo de danças africanas, afro-brasileira, jazz, dentre muitas outras coreografias; brinca, curte da escassez que os teatros têm sofrido –– uma vez que as grandes e abarrotadas companhias com suas ideias para lá de dispendiosas, caras, foram minguando. Hoje, são todas de um homem só. “O monólogo é muito mais em conta. E simples. Você mesmo lida com suas angústias, suas alegrias.”
O quase-enredo continua mostrando esse “vestir a camisa, a calça”, um “por o pé diante do outro” que a arte do ator, do bailarino, do ser humano, vem tristemente seguindo. É, então, que Dudude se mostra ornitorrinco; embasbaca-se diante de tantos autores otimistas, como Henry Thereau, Khalil Gibran, Voltaire –– como “Cândido, ou o Otimismo”, livro do iluminista francês –– e aquelas tantas cópias que os editais e mecanismos de viabilização da cultura e arte requerem.
São cópias do agora esvaziado ser humano. Não se mergulha mais no desconhecido; são piscinas rasas. Esse animalesco que escava, “a cabeça que é mãos e pés, focinho e patas” (palavras de Thereau) desanimou-se. Os artistas viraram reféns do “para amanhã”, se esqueceram que uma conversa já é vida. A labuta de sobreviver, onde a crítica se repousa, tem preenchido objetivos de editais, justificativas da arte. O que Dudude dança, neste inacabado, é que a liberdade da arte, que serve a nada e a ninguém, caiu no esquecimento; nasce livre, como a de Machado de Assis, de Picasso e tantos outros; carrega a memória do tempo, a sabedoria do mundo. É essa arte que pontua a história da humanidade.