Gustavo Nogy e a arte da imprudência
25 novembro 2017 às 18h56
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Livro de ensaios “Saudades dos Cigarros Que Nunca Fumarei”, publicado pela editora Record, é como um vento em campo aberto depois de uma longa e apertada sentinela nas trincheiras ideológicas
Christiano Galvão
Especial para o Jornal Opção
Foi-se o tempo em que se castigavam os costumes pelo riso. Hoje voga uma ridicularização tão persistente de todos os valores e costumes, surtindo uma adesão imediata a tudo o que soa subversivo, que praticamente embotaram-se os atributos purgativos do riso. Nietzsche já tinha advertido que o excesso de licença tende a ser fatal para a ironia, o chiste, a gargalhada; aliás, assim falava o seu Zaratrusta: “— Haverão de rir-se a ponto de morrer!…” Se não morreram, já não acham graça nenhuma.
Todavia, parece que quando a licença faz-se hábito (quase um fator normativo) é que o riso adquire sobrevida. Tanto que alguns escritores de honesto talento satírico realizam a proeza de regenerar, senão os costumes, pelo menos o nosso senso de humor. Eis o caso de Gustavo Nogy, cujo livro de estreia, “Saudades dos Cigarros Que Nunca Fumarei: Ensaios Imprudentes”, (Editora Record, 2017, 266 páginas) comete, conforme o aviso do subtítulo, a imprudência de rir à custa das rebeldias agendadas, das transgressões de conveniência e dos escândalos cada vez mais típicos.
Mas não somente isso. Sendo a ironia o seu modo mais natural de expressão literária, Nogy mostra que tal aptidão só opera e convence quando exercida livremente, desvinculada de turmas, rindo a tortos e a direitos. Com efeito, nessa baralhada de ensaios, que não obedece a nenhum esquema, carece de jargão e concede prazer a quem os lê, ele tenta resgatar a dignidade da irreverência. Provavelmente, o leitor acostumado às piadas de salão, de grêmio, de seita, de gangue etc., se sentirá desprevenido, vulnerado, talvez até tapeado por não encontrar em suas páginas aqueles palpites reconfortantes, que confirmam, que cimentam conspirações e, de ordinário, são os oráculos mediúnicos de algum esprit de corps.
Não que tudo nessa coletânea seja anedótico, porém quando ele apela à sua invejável capacidade de zombaria é quase sempre com o propósito, justíssimo, de defender a pertinência de um preconceito particular (que nem sempre coincide com o meu ou o seu) para fazê-lo triunfar sobre os preconceitos coletivos. Aliás, Nogy nunca se esconde e disserta sempre na primeira pessoa. Clichês e frases de efeito só são percebidos em paráfrases que os deturpam ou surtem efeitos-colaterais. Prova de quem se exercitou com os melhores estilistas do ridículo, e com eles aprendeu a discriminar idiossincrasias, separando as sinceras das forjadas, bem como as individuais das massificadas. Daí a contundência de protestos como este:
“Não seja você mesmo, pelo amor de Deus. Seja menos, muito menos de si mesmo, e não se comporte na rua, na fila, na casa, na igreja, como quem tem saudades das quatro patas. A ordem social, o convívio amistoso dependem disso: que deixemos as nossas idiossincrasias no armário e levemos para praça uma versão menos imbecil, menos sincera, menos intensa e espontânea de nós mesmos.”
Obviamente, isso soa um tanto contraditório. Mas o que Nogy sabe como ninguém é contradizer-se para permanecer coerente ao longo de textos que prezam pelo espontâneo, pelo idiossincrático, e que a muitos parecerão sinceros, intensos, quiçá imbecis. Nisso consiste o impressionismo debochado desses ensaios, que também parecem declinar de pretensões filosóficas, teóricas ou coorporativas. E de que outro modo haveriam de ser imprudentes se, por exemplo, não arremetessem contra o bairrismo ufanista nestes termos:
“Longe de mim reativar o velho embate entre o norte e o sul. Gaúchos, por exemplo, são tão orgulhosos de si mesmo, mas tão orgulhosos, que eu quase fico com vontade de ser gaúcho (mas passa). Na impossibilidade de serem uruguaios, na infelicidade de não serem argentinos, na fatalidade de não serem alemães, eles terminam sendo os piauienses do extremo sul.”
E como haveriam de afetar as suscetibilidades dos apreciadores do nosso “futebol arte” se não ousassem contestar suas qualidades, reduzindo-as a uma estética do acaso:
“Dizer que o futebol brasileiro… inventou um novo jeito de jogar é dizer preguiçosamente o que todos dizem nos momentos de entusiasmo ou de mentira patriótica. O futebol brasileiro não é sistema. Em seus melhores momentos, uma tempestade incontrolável de sortilégios. Nos piores, modestas surpresas que inglês nenhum quer ver. A Holanda de 1974, de Rinus Michels e Johan Cruyff, de fato inventou um jeito de jogar futebol. Anos depois o mesmo Cruyff levaria ao Barcelona o asfixiante estilo holandês que Josep Guardiola elevou ao estado de arte, com Messi, Xavi e Iniesta. A Itália, quatro vezes campeã mundial, forjou o jogo sólido, intransponível, o fascismo futebolístico. A Alemanha tantas vezes jogou como se invadisse outras Polônias. Mas o Brasil, não. O Brasil sempre foi um elenco de artistas, uma sucessão de anti-heróis, uma confraria de demiurgos… Dependemos muito do imponderável, do acaso, dos raios que insistem em cair no mesmo lugar.”
A arte de observar
Tanta sinceridade dificilmente passará despercebida e, tampouco, impune. Mas Gustavo Nogy não se acanha e teima em dizer aquilo que talvez nós também disséssemos (ou dizemos) quando distantes do bairro, ou aborrecidos com o time, ou desatentos ao guru. Pode até soar ressentido, mas é um ressentimento que nos causa simpatia, até identificação, e acerta-nos tão bruscamente que contra ele só podemos nos proteger com um sorriso. O fato é que ninguém deve esperar conduta mais branda de um autor cuja única regra de conduta é nos conscientizar de que não somos o centro do universo, e que a nossa realidade cotidiana não dá cabimento ao conflito de tantas órbitas nem as colisões de tantas estrelas.
Ressalve-se em tempo que nem tudo é provocação, embora a provocação perpasse a tudo. Nogy simplesmente pratica a arte de observar, ponderar e dizer o que observou e ponderou por conta própria. E faz isso não só com esportes ou geografia, seus ensaios também discutem etiqueta, literatura, economia e política; contrabalançando a gravidade desses temas com digressões hipocondríacas, apartes divertidamente implicantes e confissões pessoais ou familiares que são lições de uma pragmática sabedoria. Daí resulta uma obra que, no conjunto, é necessariamente desigual, ou melhor, oscilante. Alguns dos ensaios são concisos, outros extensos; deve-se notar que não poucos começam previsíveis e não fazem esperar a perspicácia e originalidade que sobrevém no parágrafo ou página seguinte… Defeito ou truque estilístico? Não sei. Só sei que, quando começam bem, o desfecho é invariavelmente formidável, e cala até os mais exigentes.
Não quero com isso dizer que concordaremos ou acataremos todas as suas imprudências (ou impudências), muitas delas cativam-nos antes pela forma do que pelo conteúdo. Mas nem por isso hesitaremos em dizer que se trata de uma leitura necessária, recomendável, sobretudo quando há rumores de uma guerra cultural. A propósito, mal comparando, os ensaios de Gustavo Nogy são como vento em campo aberto depois de uma longa e apertada sentinela nas trincheiras ideológicas.
Christiano Galvão é historiador e colaborador dos blogs “Miméticos” e “O Indivíduo”