Um oratório aceso em “Natal de Herodes”
14 dezembro 2017 às 17h24

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Livro de Wladimir Saldanha eleva o tom da lírica a um patamar poucas vezes visto nos católicos poetas desde o trio Murilo Mendes, Jorge de Lima, Augusto Schmidt

“Porque o sangue de Cristo
jorrou sobre os meus olhos
a minha visão é universal
e tem dimensões que ninguém sabe.
Os milênios passados e os futuros
não me aturdem, porque nasço e nascerei,
porque sou uno, com todas as criaturas,
com todos os seres, com todas as coisas
que eu decomponho e absorvo com os sentidos
e compreendo a inteligência
transfigurada em Cristo.”
Com esses versos do poeta alagoano Jorge de Lima (1893-1953), submeto ao escrutínio do leitor esta segunda crônica do ciclo da Natividade, a quem peço comece meditando no trecho deste poema. Ainda que esquecidos, no princípio o que seria livro “era informe e vazios…” Com as epígrafes, nasce o livro “Natal de Herodes, de Wladimir Saldanha:
- a) “…o que vos faz temer me dá certeza ” (Herodes); e:
- b) “Fronde e fronte entrelaçadas, /reino, rei, ré renegados/de si.” (Jorge de Lima).
Segue-se o prólogo – embora saibamos ser “meio-filho de pai pródigo,/ dispensável filho prólogo,// que se pula em qualquer livro.” –, de onde se dá o ingresso ao refinado mundo d´arte poética do baiano Wladimir Saldanha.
Sobre o autor, que ganha com este “Natal de Herodes” um lugar ao topo, no cenário poético nacional, já dissera o crítico Érico Nogueira: – “Ora, e ‘Lume Cardume Chama’ (2014) do Saldanha então? que livraço, pungente, singelo e ingênuo bem neste sentido de que falamos, eu não costumo lá ter inveja de muita gente, só de um ou dois, e o Saldanha desse livro é um deles – queria escrever como ele, ah queria, este é um dos melhores livros de poesia que tenho lido nos últimos tempos…”
Eu, porém, vos digo: “ainda não há visto nada, Érico!”; pois, eis que surge depois desse livro citado aquele que dá ainda mais alegria de ler – este que vai desde o “Filho Prólogo” ao “Pai Epílogo”, passando pelos densos miolos – “Tempo do Advento”; “Tempo do Natal” – cada um com três partes, alcançando entre as peças (e seus desdobramentos) quase uma centena de poemas.
Há aí uma mágica numerológica que ainda está por ser decifrada, onde se misturam diversos modos de versejar, do decassílabo à canção, dos sonetos ao verso livre, tudo com a mais engenhosa arquitetura.
No entanto, não há de aqui se falar em quantidade, senão da qualidade que o livro mostra e sua divisão em duas partes – Advento / Natal – com trípticos internos (subsecções) que se desdobram em poemas interstícios elevando o tom da lírica do poeta baiano a um patamar poucas vezes visto nos católicos poetas desde o trio Murilo Mendes, Jorge de Lima, Augusto Schmidt (tríade que se eleva a um quarteto quando adicionamos o nome do inesquecível paranaense Tasso da Silveira).
Transcendência

Há muito tempo um poeta brasileiro, pós-Bruno Tolentino, não se expõe com tantos signos de sua catolicidade. Wladimir, ao lado de outro baiano – o poeta João Filho – e da goiana Sônia Maria Santos, são as vozes que não se calam à expressão da religiosidade, de uma mística não devocional, mas certamente centrada num humanismo cristão (e de autoconhecimento!), como há muito não se via em nossa poesia. Exemplo em Saldanha do que nos propõe este profundo “Anagrama”
“O medo é o demo vestido de gente
no meio da mente escondida no peito;
No escuro do quarto, no fundo do poço,
eu jugo – acredite! – eu juro ter visto
um vulto de branco exibindo meu rosto
e era justo minh´alma e nada além disso.”
[…]
“O medo é o demo” no fundo do peito,
no meio da mente escondida no peito.
Minh´alma vestida conforme me visto
porém só de branco… E então, depois disso,
tirou essa máscara, o meu próprio rosto,
e deu-mo, e eu disse: eu mesmo não posso,
pois eis que ele é teu, já sou outra gente.
“Gente que eu não era pulsou-me no peito;
e visto que lama era o fundo do poço,
fiz alma e do torso fiz rosto além disso.”
No mundo que se vai deixando sufocar pelo agnosticismo e pela falta de crença em qualquer valor que nos permita uma visão (e a perspectiva) do Eterno, vem Saldanha nos fazer “cair as escamas dos olhos”, fazendo o bom uso da linguagem como ferramenta de sua mirada transcendental do mundo, naquela acepção especial que ao termo dá o filósofo espanhol Xavier Zubiri, para quem “é a realidade em impressão que é transcendental”.
Sem pretensão de achar a boa dose mista de filosofia e poesia nessa releitura da poesia de Wladimir Saldanha, advirto o meu leitor apressado que é preciso olhar para este “Natal de Herodes” não como mera ostentação de um poeta classicizante, de um herdeiro da melhor tradição poética do Ocidente.
É preciso ver nas dobras de cada verso um “Desdobramento do Natal” – (ver poema de pág. 154), em que “Dezembro se impõe no dia, em pleno abril./ Atravanca fevereiro, acende fogueiras/ de São João. Já vai muito distante// quando se deixa ver, definitivo, /para que digam: foi tudo tão rápido! /Dezembro se desmembra: é sempre.”
O mito renovado
Eis o poeta que anuncia o Cristo à sua maneira especialíssima, sem proselitismos, o que “Sou dos que sofrem a súbita/ contemporaneidade de dezembro./ Mas não me advirtam do solstício/ que eclipsaram no Natal.// Os celtas em círculo, seus hinos,/ volvem todos para o Menino./ Ignorá-Lo, mudá-Lo em duende,/ nada disso abrevia ou consome./”
O dezembro para o poeta não é o que “atravanca” não é o da “contemporaneidade” … aquele que contém o Natal “esquartejado” – uma ciranda louca por onde “… já passou o ano inteiro”; mas o Cristo é “um pistilo, é março, agosto,/ é o Menino de dezembro,/ corola, pétala, Seu rosto.” Wladimir filia-se a uma corrente da poesia que sonda os mistérios do subconsciente, buscando “conexão com a história profunda da realidade” e por isso mesmo pode ser lembrado ao lado dos maiores, de um Yeats, de um Milosz, de um G. Hill, de um Rilke ou de um Hölderlin.
O poeta baiano faz de sua poética um ponto de contato com o divino, isto é, “com a mais alta realidade” (cf. Vicente Ferreira da Silva), sendo alguém a quem se aplica a conclusão de Vicente em “Transcendência do Mundo”: alguém para quem “a arte não é magia humana, mas magia divina; […] tornando com sua arte, torna-se um artista, um ser que vai ‘além-de-si-mesmo do homem, na realização de uma obra que é Festa Sacral, em honra do hóspede divino: o deus que sob humana forma aparecida para concluir num acorde a festa divina’”.
Essa característica de pouquíssimos poetas hoje – como Érico Nogueira, Bruno Tolentino, João Filho (no Brasil); Paul Mariani e George Hill (em inglês) et reliqua – faz renascer “os mistérios do subconsciente”, sem tentar encontrar para isso um substituto. A esse respeito, Emmanuel Santiago acerta ao dizer que “Wladimir neste seu quarto livro, leva adiante seu intimismo universal, em que referências literárias, mitológicas e históricas se imiscuem na matéria biográfica, criando um jogo de reverberações por meio do qual o indivíduo e a cultura se fundem numa só carne, e as reminiscências pessoais se diluem na memória coletiva da Tradição.
Tal modalidade de comunhão – que, de resto, corresponde a um desejo de transcendência a atravessar toda a obra – aponta, em “Natal de Herodes”, para uma tentativa de redimir a ausência da figura paterna, vertiginosa trinca da arquitetura psíquica que o autor esboça ao longo dos poemas (como se vê claramente em “Se não tenho pai, se ela usa túnica”).
Tecnicamente, caberia a alguém como o poeta-crítico Wagner Schadeck investigar profundamente os procedimentos e soluções encontrados por Wladimir neste “Natal de Herodes”, que é um desafio para os que desejam “inteligir a coisa livro” (à maneira da de Xavier Zubiri ), para quem “a intelecção é um ato de apreensão.” […] “Ora, esse ato de caráter apreensivo pertence também ao sentir.”
De pronto, o que se me afigura é que há uma sofisticação dos procedimentos tradicionais arrancados da poesia de cordel, do “repente” nordestino, das “trovas” do Brasil cantante, transmutadas num cantar personalíssimo – nelas este cronista vê/ouve (talvez sem pertinência!) a voz das ruas de Salvador, dos cegos cantadores, que tantas vezes, quem sabe? Tenham sido ouvidas pelo menino-protopoeta.
Trocando em miúdos, não carece ao leitor ser professor-doutor em Literatura, como o poeta-autor, para “sentir” os poemas e também “inteligi-los.” Emmanuel Santiago já devassou essa floresta e a destrinchou em um artigo aqui mesmo no Opção Cultural. O que temos em Wladimir é “um eu lírico que procura no metafísico, na Comunhão com a figura de Cristo, uma via de redenção para seu dilaceramento interior.”
– Não sendo filósofo nem especialista em escandir poemas, o que teria o cronista a aportar ao leitor (da crônica) que o faça a se tornar um leitor do “Natal de Herodes”? – provoca meu onipresente interlocutor invisível.
Engasgado e sem saída, sou levado a pensar que há de surgirem outros com mais petrechos que este velho cronista e versejador de província que deverão se debruçar sobre a poesia de Saldanha (como sobre a poesia do médico-católico-poeta Jorge de Lima, recomendava Murilo que as pessoas se debruçassem); se muitos anos foram necessários para que nos déssemos conta da importância de Lima, assim me ocorre que um tempo não curto estará a exigir da crítica e da ensaística brasileiras até que se nos deem a compreender e a bem destrinchar a poesia de Saldanha.
Dele se pode dizer de pronto, não incorrendo em: I) na pressa da leitura de um contemporâneo que, certamente, será parte do cânone do século 21; II) admita o leitor como bastante plausível dizer de Wladimir o mesmo que Euríalo Canabrava dizia de Jorge de Lima, de “Invenção de Orfeu” (Lima, 1952):
“A habilidade técnica do poeta consiste em fazer emergir essas estruturas [líricas] através da aproximação das palavras ou conceitos que mantêm entre si elos remotos e inconsistentes sob o ponto de vista lógico. O efeito dessas combinações verbais reside, sobretudo, no elemento de surpresa e de choque que o leitor experimenta ao verificar que as palavras do vocabulário comum adquirem tonalidades inéditas e se associam a outras através das mais estranhas e misteriosas relações.” (…) “O resultado dessas aproximações rigorosamente desconhecidas obedece, porém, a uma disciplina interior que constitui a mais segura garantia de sua expressividade. Não há nada de anárquico ou de temperamental nessas laboriosas destilações verbais. Elas se submetem a regras semânticas bastante positivas e possuem também uma ‘lógica imanente’ que a crítica arguta poderá definir em termos precisos”.
No caso de Wladimir, há essa questão central da ausência do pai que Emmanuel Santiago levanta e que pode ser compreendida como uma cura pela “fuga” eliotiana da personalidade, da apropriação de elementos da cultura, convertendo-os em escoras psicológicas, em máximas memórias que podem ser de todos: dos que se espelham no “filho pródigo” (da parábola do Evangelho), como daqueles que ficaram em casa, feito o “meio-irmão” mais velho: conduzido pelo espírito, Wladimir toma o leitor pela mão e o conduz para além da realidade tangível, levando-nos como desejava Walter Otto (em “Os Poetas e os Deuses Antigos”) a participar de um “canto da infinitude”.
Num ato de apreço pela linguagem, como o desfolhar de um mundo novo, virginal, Wladimir Saldanha faz do ato poético aquilo que o pensador alemão Heidegger designa como O Poético – “A poesia é o nomear que constitui o ser e a essência de todas as coisas, não um dizer qualquer, mas aquele graças ao qual apenas se mostra à abertura tudo o que nós depois discutimos e tratamos na linguagem de todos os dias. Por isso, a poesia não toma jamais a linguagem como um material já presente, mas é somente a poesia mesma a tornar possível a linguagem.” Não incorreria em erro o leitor tomasse as conclusões do filósofo alemão sobre o poeta Hölderlin e as aplicasse ao católico-poeta da Bahia. Do Brasil.
Só poderia, pois, encerrar repetindo Emmanuel: “O livro de Wladimir Saldanha sustenta-se sobre uma interessante combinação de gêneros: além do lírico, que é a essência da obra, temos, ainda, procedimentos narrativos, elementos propriamente épicos e uma estruturação dramática do conjunto, como se vê pelas diversas máscaras que o eu lírico assume.” – como em “Cinco Estudos Dezembrinos” (2) – poema dedicado por Wladimir a Bernardo Souto:
“Sou também dos que sofrem o lento
adiamento, o adiamento de dezembro.
O anacoluto dessa última
semana, eu o sei no vinte e seis.
Nunca nos é tão longo um mês,
tão tardo em resguardo de Virgem.
Boiamos em meio ao tempo, enquanto
do Menino o umbigo postema
e o ano cai, finalmente,
no poema – seu negro funículo:
esse mal-de-sete-dias
passou, passou, largou da gente!
Sou dos que sofrem, ridículo,
o tétano do Messias.”
Serviço
Autor: Wladimir Saldanha (1977), Doutor em Letras pela UFBA.
Bibliografia parcial: “As Culpas do Poema” (Scortecci, 2012), livro que seria incorporado ao volume “Culpe o Vento” (7Letras, 2014). Depois veio “Lume Cardume Chama” (7Letras, 2014); com “Natal de Herodes” (Mondongo, 2017), recebeu o prêmio de publicação da Fundação Cultural da Bahia.
Valor: R$ 38,00 (no site da Editora)
Para ver o Book-trailer do livro, clique aqui.
Adalberto de Queiroz é jornalista e poeta. Autor de “Frágil armação” (2ª. Ed. Caminhos, 2017)
[1] Epígrafe 1 de “Natal de Herodes”, retirada por Saldanha (2) ao livro “Herodes, O grande. (apud Flávio Josefo, “História dos Hebreus”, Livro I, 14, trad. Vicente Pedroso.
[1] SALDANHA, Wladimir. “Natal de Herodes”. – 1ª. ed. – Itabuna (BA); Mondrongo, 2016. 216 p.
[1] FERREIRA DA SILVA, VICENTE. “Transcendência do Mundo”, parte IV, Sobre poesia, arte e crítica literária”. É, 2010, p. 499 et passim.
[1] Cf. Vicente Ferreira da Silva em “Transcendência do Mundo”, É, 2010, p.502 – em ref. a “o homem prisioneiro da imagem científica do mundo”. Ensaio “A poesia e o poeta” (iii).
[1] Além da “orelha” do livro, Emmanuel Santiago fez uma análise da obra “Natal de Herodes” em Jornal Opção, “Terça poética”, que pode ser relida no link (consultado em 04/12/17, 12h14):
[1] ZUBIRI, Xavier. “Inteligência e realidade”, São Paulo, É Editora, 2016, pág. 8 et passim.