Comprovando a legenda do poeta francês Henri Michaux – “poetas amam viagens”, continuo o percurso nesta temporada na Itália e no Vêneto, onde o rio Piave torna-se um personagem da paisagem pacífica e acolhedora que os vinhedos enquadram com seus arabescos.

O sagrado rio Piave, orgulho da Itália

Hoje escrevo esta crônica instalado no pequeno escritório de um apartamento alugado em Stabiuzzo, pequena comunidade no Vêneto, onde nos fixamos por três semanas.

O lugar é marcado pela presença do rio Piave, ladeado por extensos vinhedos, pelo silêncio do campo e pela profusão de fontes de água potável.

Não poderia haver um nome mais poético para minha morada atual – “Antica fonte Piave” ou Fonte antiga do [rio] Piave.

A propriedade da família Càdamuro foi recentemente reformada e dispõe de seis apartamentos de muito bom gosto, com nomes lendários da cultura italiana, encimado por Michelangelo e Canova, seguido de Rialto e Prosecco; e fechando com San Marco e Romeo & Giulietta.

Na rota do Prosecco, foto de Helenir Q.

Mas voltemos ao Piave que é um lendário rio da história recente da Itália.
Inicialmente chamado “La Piave”, este famoso rio do Vêneto passou ao gênero masculino após a batalha final que garantiu a vitória dos italianos sobre as tropas do império austro-húngaro, em 1918, mas quem mudou o status do rio de feminino para masculino e o tornou sagrado para a Itália foi o poeta Gabrielle
D´Annunzio.

Na canção “La legenda del Piave” (ou “A canção do Piave), o poeta italiano exalta o rio Piave como a barreira natural ao estrangeiro.

O Piave murmurou calmo e plácido à entrada
dos primeiros soldados, no dia 24 de maio:
o exército marchava para alcançar a fronteira
e para construir ao inimigo uma barreira.

De fato, estrategicamente foi como barreira que o rio se pôs ao lado dos soldados italianos. Melhores conhecedores da geografia do Vêneto, os generais aliados, orientados pelos italianos, colocaram a geografia a seu serviço.

Que poesia há na guerra? – pergunta minha razão, mas meu coração não responde senão com o encantamento com a cor verde das águas que correm em grandes extensões do Piave, rio que enche e seca, parecido demais ao nosso Araguaia, na época dos verões goianos.

Muti passaron quella notte i fanti:
tacere bisognava, e andar avanti!
S’udiva, intanto, dalle amate sponde,
sommesso e lieve il tripudiar dell’onde,
Era un presagio dolce e lusinghiero.

Il Piave mormorò:
“Non passa lo straniero!”

E assim o estrangeiro austro-húngaro recebeu um “Altolà!” e foi vencido, graças à barreira do rio. Enquanto isso, nós, brasileiros, um século depois, cruzamos inúmeras pontes que unem as pequenas comunidades sobre o Piave, indo e vindo na rota dos vinhos, na ida à missa, à padaria e à quitanda…

De todos os lados que enxergo, o Piave é personagem da história desta viagem, pois é testemunha de um clima de paz que recobre o Vêneto, sob o murmúrio de suas águas. E a Paz, sabe-se desde muito tempo, é condição para tornar rica e forte a cidade, o país e seus cidadãos.

O sino da história bate chamando minha consciência para a placidez do lugar, cuja paz foi conquistada à custa do sangue de muitos soldados do Vêneto.Milhares de soldados italianos deram a vida na Batalha do Solstício, 1918

Sabemos, também, que daqui saíram muitos “venetianos” que, diante de condições adversas do pós-guerra, emigraram para a Argentina, o Brasil e o Uruguai.

As pessoas se mostram afetuosas, alegres, recebendo com gentileza este casal brasileiro – talvez o único em muitos anos a fixar-se na pequena Stabiuzzo.

A comunicação em italiano se impõe e eu estou feliz com os avanços que esta viagem me proporciona na conversação com os nativos. Afinal, seria difícil dominar o dialeto local, por sinal o mais falado na colônia italiana do Rio Grande do Sul.

O tempo flui em meio a uma primavera mais molhada que o costume local. Muitos terminam desejando mais sol, à esta altura da estação. E entre vinhedos e canais de água límpida, vamos fazendo nossa marcha de imersão na cultura italiana.

Sobre o poeta Gabrielle D´Annunzio, um dos mais famosos da Itália, Fernando Martins diz que ele [i] “sintetizou o seu sentimento nacionalista na frase que tomou como seu lema, a incitação que Pompeu fez aos seus marinheiros e que se tornou também num dos motes de Mussolini:

“Navigare necesse, vivere non est necesse”
.

Essa frase, que D’Annunzio cita nos primeiros versos de “Laudi del cielo, del mare, della terra degli eroi”, é utilizada por Pessoa em vários textos.

É interessante ver como este mote perde o seu sentido épico original, tomando nos dois poetas um sentido mais individual, de exaltação do heroísmo e do ulissismo poético” – conclui Martins.

Mas o que me aproxima de D´Annunzio não é o mar e sim o rio. O Piave, sagrado para os italianos e que me conquista como tantos outros rios me conquistaram ao longo dessas seis décadas de vida.

A emoção causada pelos rios em minha vida está testemunhada no discurso que pronunciei na minha posse na Academia Goiana de Letras (“Entre três rios”) e neste poema de meu mais recente livro, com o qual me despeço de você, leitor(a):

Os rios (1)[ii]
Eu ouvi a voz de Bonnefoy e seu rio – Le Douve
com seu mistério “e o vento mais forte que
                                  nossas memórias”, Yves…

outro rio – o Guaíba de Meyer, onde vivi.

Ainda outro – de João Cabral, o Capibaribe –
e bem assim o pobrecito córrego
que não cesso de cantar – o do Botafogo.

Os poetas quedam em decúbito dorsal –
supino ao rio Letes de imagens equóreas:
entre eles, sete mestres redivivos.

Saúdo aqueles antigos bardos
que ossos são agora
– do pecado redimidos,
só das boas obras lembrados.

Adalberto de Queiroz, 64, Jornalista e poeta, autor de “O rio incontornável” (Poesia, 2017).


[i] Gabrielle D´Annunzio seg. “Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português”, coord. por Fernando Cabral Martins, Lisboa, Caminho, 2008. Cf. link consultado em 28/05/2019. https://modernismo.pt/index.php/g/592-gabriele-d-annunzio

[ii] De meu livro “O rio incontornável” (Poemas, 2017).