Crônicas italianas (3)
28 maio 2019 às 14h34
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Comprovando a legenda do poeta francês Henri Michaux – “poetas amam viagens”, continuo o percurso nesta temporada na Itália e no Vêneto, onde o rio Piave torna-se um personagem da paisagem pacífica e acolhedora que os vinhedos enquadram com seus arabescos.
Hoje escrevo esta crônica instalado no pequeno escritório de um apartamento alugado em Stabiuzzo, pequena comunidade no Vêneto, onde nos fixamos por três semanas.
O lugar é marcado pela presença do rio Piave, ladeado por extensos vinhedos, pelo silêncio do campo e pela profusão de fontes de água potável.
Não poderia haver um nome mais poético para minha morada atual – “Antica fonte Piave” ou Fonte antiga do [rio] Piave.
A propriedade da família Càdamuro foi recentemente reformada e dispõe de seis apartamentos de muito bom gosto, com nomes lendários da cultura italiana, encimado por Michelangelo e Canova, seguido de Rialto e Prosecco; e fechando com San Marco e Romeo & Giulietta.
Mas voltemos ao Piave que é um lendário rio da história recente da Itália.
Inicialmente chamado “La Piave”, este famoso rio do Vêneto passou ao gênero masculino após a batalha final que garantiu a vitória dos italianos sobre as tropas do império austro-húngaro, em 1918, mas quem mudou o status do rio de feminino para masculino e o tornou sagrado para a Itália foi o poeta Gabrielle
D´Annunzio.
Na canção “La legenda del Piave” (ou “A canção do Piave), o poeta italiano exalta o rio Piave como a barreira natural ao estrangeiro.
O Piave murmurou calmo e plácido à entrada
dos primeiros soldados, no dia 24 de maio:
o exército marchava para alcançar a fronteira
e para construir ao inimigo uma barreira.
De fato, estrategicamente foi como barreira que o rio se pôs ao lado dos soldados italianos. Melhores conhecedores da geografia do Vêneto, os generais aliados, orientados pelos italianos, colocaram a geografia a seu serviço.
Que poesia há na guerra? – pergunta minha razão, mas meu coração não responde senão com o encantamento com a cor verde das águas que correm em grandes extensões do Piave, rio que enche e seca, parecido demais ao nosso Araguaia, na época dos verões goianos.
Muti passaron quella notte i fanti:
tacere bisognava, e andar avanti!
S’udiva, intanto, dalle amate sponde,
sommesso e lieve il tripudiar dell’onde,
Era un presagio dolce e lusinghiero.
Il Piave mormorò:
“Non passa lo straniero!”
E assim o estrangeiro austro-húngaro recebeu um “Altolà!” e foi vencido, graças à barreira do rio. Enquanto isso, nós, brasileiros, um século depois, cruzamos inúmeras pontes que unem as pequenas comunidades sobre o Piave, indo e vindo na rota dos vinhos, na ida à missa, à padaria e à quitanda…
De todos os lados que enxergo, o Piave é personagem da história desta viagem, pois é testemunha de um clima de paz que recobre o Vêneto, sob o murmúrio de suas águas. E a Paz, sabe-se desde muito tempo, é condição para tornar rica e forte a cidade, o país e seus cidadãos.
O sino da história bate chamando minha consciência para a placidez do lugar, cuja paz foi conquistada à custa do sangue de muitos soldados do Vêneto.
Sabemos, também, que daqui saíram muitos “venetianos” que, diante de condições adversas do pós-guerra, emigraram para a Argentina, o Brasil e o Uruguai.
As pessoas se mostram afetuosas, alegres, recebendo com gentileza este casal brasileiro – talvez o único em muitos anos a fixar-se na pequena Stabiuzzo.
A comunicação em italiano se impõe e eu estou feliz com os avanços que esta viagem me proporciona na conversação com os nativos. Afinal, seria difícil dominar o dialeto local, por sinal o mais falado na colônia italiana do Rio Grande do Sul.
O tempo flui em meio a uma primavera mais molhada que o costume local. Muitos terminam desejando mais sol, à esta altura da estação. E entre vinhedos e canais de água límpida, vamos fazendo nossa marcha de imersão na cultura italiana.
Sobre o poeta Gabrielle D´Annunzio, um dos mais famosos da Itália, Fernando Martins diz que ele [i] “sintetizou o seu sentimento nacionalista na frase que tomou como seu lema, a incitação que Pompeu fez aos seus marinheiros e que se tornou também num dos motes de Mussolini:
“Navigare necesse, vivere non est necesse”.
Essa frase, que D’Annunzio cita nos primeiros versos de “Laudi del cielo, del mare, della terra degli eroi”, é utilizada por Pessoa em vários textos.
“É interessante ver como este mote perde o seu sentido épico original, tomando nos dois poetas um sentido mais individual, de exaltação do heroísmo e do ulissismo poético” – conclui Martins.
Mas o que me aproxima de D´Annunzio não é o mar e sim o rio. O Piave, sagrado para os italianos e que me conquista como tantos outros rios me conquistaram ao longo dessas seis décadas de vida.
A emoção causada pelos rios em minha vida está testemunhada no discurso que pronunciei na minha posse na Academia Goiana de Letras (“Entre três rios”) e neste poema de meu mais recente livro, com o qual me despeço de você, leitor(a):
Os rios (1)[ii]
Eu ouvi a voz de Bonnefoy e seu rio – Le Douve
com seu mistério “e o vento mais forte que
nossas memórias”, Yves…
outro rio – o Guaíba de Meyer, onde vivi.
Ainda outro – de João Cabral, o Capibaribe –
e bem assim o pobrecito córrego
que não cesso de cantar – o do Botafogo.
Os poetas quedam em decúbito dorsal –
supino ao rio Letes de imagens equóreas:
entre eles, sete mestres redivivos.
Saúdo aqueles antigos bardos
que ossos são agora
– do pecado redimidos,
só das boas obras lembrados.
Adalberto de Queiroz, 64, Jornalista e poeta, autor de “O rio incontornável” (Poesia, 2017).
[i] Gabrielle D´Annunzio seg. “Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português”, coord. por Fernando Cabral Martins, Lisboa, Caminho, 2008. Cf. link consultado em 28/05/2019. https://modernismo.pt/index.php/g/592-gabriele-d-annunzio
[ii] De meu livro “O rio incontornável” (Poemas, 2017).