Saímos de um livro do autor como quem retorna de uma viagem. Na minha idade, costumo chegar cansado, mas animado, vislumbrando novas perspectivas

“Tomei a Sr.ª Prest por confidente…” – diz o narrador de “Os papéis de Aspern” de Henry James (1843-1916) no início da novela que é uma aventura veneziana.

Surgem indagações sobre a empreitada, que avança lentamente, como uma gôndola; e nela somos levados àquele novo ambiente, presas de uma “ideia fecunda que tornou a empresa possível”, quedamo-nos plenos de lembranças sobre as paisagens vistas, descortinadas de uma tenda ou de uma janela.

O leitor haverá de sonhar, certamente, “com aquela vida obscura em Veneza” e não seremos exatamente os mesmos, não seremos iguais àquelas pessoas que começaram a viagem.

Como típico das viagens, haverá alguma ansiedade, por certo, principalmente diante de um narrador arguto que destaca desde o início: “Enquanto deslizávamos, sob o teto hospitaleiro de sua gôndola, e as brilhantes pinturas venezianas se sucediam, emolduradas à direita e à esquerda pela janela em movimento, pude perceber como a minha ansiedade a divertia e como via no meu interesse em pilhar os papéis um belo caso de monomania”.

“– Dir-se-ia que o senhor espera encontrar neles a resposta para o enigma do universo –  observou. Mas eu neguei a acusação, respondendo apenas que, se tivesse de escolher entre aquela preciosa resposta e o pacote das cartas de Jeffrey Aspern, saberia imediatamente qual das duas dádivas seria para mim melhor. Ela fingiu fazer pouco caso da genialidade do poeta e eu não me esforcei por defende-lo. Não se defende um deus: ele próprio é a sua defesa. Além disso, hoje, depois de uma obscuridade relativamente longa, o poeta eleva-se bem alto no céu de nossa literatura, para que todos o vejam; é parte da luz que ilumina nosso caminho.”

E se o leitor não for um escritor há de sempre perguntar ao final e, quem sabe durante a viagem, do que se trata, do que estamos falando, ao longo desse percurso jamesiano. Se valoriza a poética de enredo, há de se perguntar como meu interlocutor imaginário: “Mas, afinal, de que se trata?”

E essa “tentativa de recapturar, pela memória, o passado que cada geração pode alcançar faz com que ‘Os papéis de Aspern’ seja não apenas uma história patética, de grande rigor formal, mas uma criação literária dotada de senso histórico e extraordinária percepção dessa forma de sensibilidade que se denomina o Tempo”, diz-nos Maria Luiza Penna, tradutora de Henry James.

O escritor Alexandre Soares Silva tem uma resposta para esta e outras narrativas que compõem o caso Henry James[i]: “A atmosfera de James é a da vida vista de muito longe. Seus heróis não trabalham, de modo geral, e nem agem muito”.

Em Henry James, parece quase sempre tratar-se mais de um modo de narrar do que, propriamente do que “um enredo” (o escritor odiava a expressão “trama”). Em algumas linhas, pode-se construir uma ementa bem simples deste “Os papéis de Aspern” como: um escritor (ou “publisher”) canalha é pego tentando assaltar a escrivaninha de uma velha senhora.

Uma busca pelo passado que exige uma chave de leitura
Henry James em “Os papéis de Aspern”, tradução de Maria Luiza Penna, uma pesquisa do passado que “possui algo de fantástico e até de diabólico”

Está o leitor diante de um narrador que não declara sequer seu próprio “nome de guerra” (um escritor canalha), contando as suas aventuras para obter os manuscritos (cartas de amor?!) de um poeta de gênio – que pode ser Byron ou Shelley, tendo que pagar um alto preço, e para tanto, infiltra-se na casa da velha senhora americana em Veneza, onde moram ela (Juliana Bordereau) e sua sobrinha (Srtª Tina): Se posso chegar aos meus despojos, pegando-a desprevenida, e só posso pegá-la desprevenida, através de hábeis práticas diplomáticas. Hipocrisia e duplicidade são minhas únicas possibilidades. Lamento dizê-lo, mas não há baixeza que eu não seria capaz de cometer por Jeffrey Aspern. Em primeiro lugar, devo tomar chá com ela; depois então tentar realizar o meu objetivo principal”.

Henry James está em busca dos manuscritos que poderiam se encontrar com as Senhoritas Bordereau, mas está na verdade resgatando um passado que “possui algo de fantástico e até de diabólico” – e para isso é obrigado a entrar nesse jogo de insinuações, de marchas e contramarchas, de traições e paixões, numa Veneza que é, ao mesmo tempo, paisagem e personagem.

Aqui parece se aplicar o que Henry James disse em entrevista a H. G. Wells (em 1915): “É a arte que faz a vida, que gera interesse, que tem importância e eu não conheço nenhum substituto para a força e a beleza de seu processo.” Seu editor norte-americano disse: “Henry James teria escrito ‘Os papéis de Aspern’ velozmente, em Veneza, durante o verão de 1887, e enviado logo a novela a Thomas Bailey Aldrich, editor da revista ‘Atlantic Monthly’, confiante de que havia escrito uma pequena obra-prima. Ficou profundamente irritado quando a revista retardou a publicação. A novela foi publicada na Atlantic, finalmente, em março de 1888 e o tempo confirmou o julgamento de James a respeito da novela.

“Os papéis de Aspern” mostram a atitude típica de Henry James em relação ao passado. “Ele achava que os escritores – a não ser que eles criassem romances históricos, panorâmicos, como os de Walter Scott – eram culpados de ‘fraude’, quando evocavam cenas históricas tiradas de velhos livros e documentos…”, diz no posfácio deste livro o seu editor americano.

Para uma correlação entre narrativa e realidade, de um modo geral, tem-se admitido que a personagem Juliana Bordereau, antiga amante do poeta Jeffrey Aspern e possuidora dos manuscritos do poeta, tal como criada por James, teria sido modelada em Jane Clairmont, a quem James nunca teria visto e, no prefácio do livro em questão, ele diverte-se com a ideia de que poderia tê-la visitado, “caso soubesse que ela havia vivido no seu tempo”.

Henry James revirou o próprio passado em um romance inacabado – “O sentido do passado” (“The sense of past”) – e numa autobiografia, um raro achado em meio à incrível produtividade de James intitulado “A small boy and others” (1913), onde podemos constatar que a brincadeira tem fundo de verdade, quando lemos: “Eu me confesso envergonhado pela facilidade que tenho de recapturar minha consciência jovem; de forma que tento encorajar lapsos de memória e controlar minha abundância”. Ou seja, mesmo que nem sempre mantenha o nível da narrativa, James quase sempre mantém alerta sua consciência. James é alguém para quem, realmente, escrever é um ato de vida, como confessou em carta a Henry Adams[ii].

“As experiências de Henry James com a narração em falsa terceira pessoa colocam o leitor na consciência de um narrador – ele próprio um ator na história. O processo permitiu que os leitores vissem o processo de pensar do narrador, o surgimento lento da consciência, acompanhado por uma perda de inocência”, descreve Susan Goodman.

Escritor dos escritores, Henry James é citado por Paul Ricoeur como mestre da arte da narrativa. E parece que ele sempre lançava uma luz sobre o que a ficção era e como deveria ser e isso dura já um bom tempo.

Willa Cather assinalou sua filiação às lições do mestre de “A arte da ficção”: “Para mim, ele era o escritor perfeito…a principal mente que já se aplicou à literatura na América. Todos nós, seus alunos queremos imitá-lo”. E em tom de confissão, conclui: “Comecei imitando Henry James”. Willa Cather é autora de inúmeros belos romances, entre os quais confesso amar a obra-prima “A morte vem buscar o arcebispo”; além de “Oh, Pioneers!”, este inspirado no poema de mesmo nome de Walt Whitman.

Se James pode ser [e quase sempre o é] considerado lento para os padrões de leitura do século XXI, era considerado “uma festa para os leitores do século XIX”, afirma a pesquisadora Susan Goodman[iii].

E Harold Bloom, em “O Cânone Americano[iv]”, demonstra seu apreço pessoal pelos romances de Henry James – em especial por “Os Bostonianos”, “Retrato de Uma Senhora” e “As Asas da Pomba” -, o que “não me torna cego ao poder literário ainda maior de Dickens, Balzac e Tolstói. Nada é gratuito, e James sacrificou uma parte de sua exuberância vital no altar da forma”.

Embora ressalve: “Apesar disso, como aqueles contemporâneos que o ultrapassaram em força estética, James também era um vitalista heroico, ainda que nele isso se manifeste por uma sutil modalidade de renúncia aparente. Essa askesis[v] o excluiu do mais alto campo de feitos literários americanos, ocupado por “A Letra Escarlate”, “Folhas da Relva”, “Moby Dick”, “As Aventuras de Huckleberry Finn” e alguns poucos mais. No entanto, a arte de sublimação de James continuou a ser de uma engenhosidade brilhante, que permitiu a seu demo criar uma dúzia de grandes romances e dezenas de admiráveis narrativas mais curtas. O que Henry James entendia por renúncia é tão difícil de definir quanto a arte da renúncia de Goethe, na qual, na verdade se renuncia a muito pouco”.

Henry James tem “o espírito livre, sempre muito atormentado e de modo algum sempre triunfante, é heroico, irônico, patético… e só pode ser considerado bem-sucedido se permanecer livre”.

Henry James estabeleceu que o “primeiro dever do crítico [é] encontrar alguma chave para o método, alguma expressão de suas convicções literárias, alguma indicação de sua teoria dominante”. Olhando para livros do ponto de vista de um leitor e de um escritor, “Henry James compartilhou com os leitores da revista Atlantic suas análises que afirmavam sua crença de que arte e crítica andam de mãos dadas”, diz Susan G.

Edith Wharton, a primeira mulher a ganhar o primeiro prêmio Pulitzer (1921) por seu romance “A Idade da Inocência”, considerava-se a si mesma e a Henry James como “infelizes exóticos”, norte-americanos criados na redoma de vidro da cultura da Europa, e que não poderiam jamais ser considerados americanos – e James finalmente o admite, optando pela cidadania britânica, em 1915, um ano antes de sua morte.

O que James crítico escreveu sobre a prosa de George Eliot[vi] parece um juízo válido para que o leitor avalie a própria obra dele, Henry James, a saber: “eram criações de natureza incalculável, criadas num ar de mistério, em algum bazar intelectual ou num secreto cadinho de experiências pessoais que tinham pouco ou nada a ver com os aspectos [práticos] de sua própria vida”.

Crítico e professor de escrita criativa, Rodrigo Gurgel lembra em artigo de conselhos a jovens escritores a importância da realidade e experiência: “Sim, jamais desprezar a realidade. Mas não esquecer, como afirma Henry James, que ‘a experiência nunca é limitada e nunca é completa’. Para esse genial romancista, a experiência é semelhante a ‘uma espécie de vasta teia de aranha, da mais fina seda, suspensa no quarto da nossa consciência, apanhando qualquer partícula do ar no seu tecido’. Ou seja, a experiência — a abertura ao real, deve ser ‘a própria atmosfera da mente’, ela deve levar ‘para si mesma os mais tênues vestígios de vida’, deve ‘converter as próprias pulsações do ar em revelações’”.

O jovem ficcionista brasileiro Alexandre Soares Silva, dono de um dos mais elegantes textos em nossa ficção atual – autor de “A Alma da Festa” (2013) -, ressalta a força do estilo de Henry James: “Mas não é do enredo, e sim do estilo de James que eu quero falar não, – nem mesmo do estilo, mas de algo mais sutil – a atmosfera. A atmosfera de James é a da vida vista de muito longe. Seus heróis não trabalham, de modo geral, e nem agem muito. Eles sentam em sofás e observam; e a vida para eles acaba sendo isso, sentar em sofás e cadeiras de vime, em Boston, Paris e Florença; observar, com uma certa admiração e um certo horror, as pessoas que realmente vivem; envelhecer e morrer. Mesmo a Europa do livro é uma espécie de miasma europeu, algo que você sente pelos poros enquanto toma uma limonada no jardim. O efeito é o de diminuir um pouquinho o barulho da vida. Ninguém se acotovela, ninguém grita. Ninguém, Santo Deus, sua. Ah, não. Trata-se da vida preservada em âmbar”.

“Mas é aí, nesse sofá ou nessa cadeira de vime, na cabana do alto da montanha, o único lugar em que podemos parar um pouco e respirar e pensar na vida. Porque não dá para pensar na vida enquanto se vive. Seria como pensar em música enquanto se canta. Como pensar na anatomia da locomoção, enquanto se corre” (Alexandre Soares Silva).

 

Adalberto de Queiroz, 63, é jornalista e poeta. Autor de “O Rio Incontornável” (Editora Mondrongo, 2017).

[i] Para uma leitura de obras no idioma do autor e para aprofundamento do estudo da obra de James incluindo a fortuna crítica do autor em inglês, recomenda-se este guia “The Henry James Scholar´s Guide to Web Sites

[ii] MEISSNER, Collin. Henry James and the Language of Experience, Cambridge Press, 2004, p. 190.

[iii] GOODMAN, Susan. Em artigo para o site da revista Humanities online – HUMANITIES, July/August 2011 | Volume 32, Number 4: https://www.neh.gov/humanities/2011/julyaugust/feature/henry-james-and-the-american-idea

[iv] BLOOM, Harold. “O cânone americano: o espírito criativo e a grande literatura”, trad. Denise Bottmann. Rio de Janeiro, Objetiva, 2017, pág. 293 et passim.

[v] “Askesis”: do grego ἄσκησις, diz-se da qualidade e procedimento de demonstração de autocontrole e determinação para a ação e manutenção dos propósitos, com autodisciplina, ascetismo.

[vi] George Eliot é o pseudônimo de Mary Ann Evans (Nuneaton, Warwickshire, 22 de novembro de 1819 — Chelsea, Londres, 22 de dezembro de 1880), foi uma romancista autodidata britânica.

 

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