De volta ao lar, depois de um mês pelos caminhos da América, encerro estas crônicas de viagem. Exausto, sob os efeitos da “síndrome de Stendhal“, recolho-me à doçura feminina, à Beleza e ao convite à sensibilidade e à Conversão.

Rodin, esculturas em exposição na Universidade de Stanford, inverno 2018
Auguste Rodin, torso de mulher

Depois de quase um mês longe de casa, longe dos meus livros, retorno com a certeza de que viajar é bom, mas melhor é retornar ao lar em segurança e saudoso, sabendo que o animal de estimação há de nos beijar as cicatrizes e nos reconhecer – também ele, a sua maneira saudoso, doando-nos “uma nesga de satisfação na caligem de nossos pesares”, para usar a expressão legendária de Ursulino Leão sobre os bichos e os afetos.

Eis-me, aqui, em casa, rodeado dos meus livros, como se a biblioteca fosse mais importante do que a cozinha na ordenação das repartições do lar. Confesso que junto aos livros, às plantas e aos bichos, sentimo-nos mais humanos.

O inverno continuado da Califórnia foi-me generoso, ativou a sementeira da memória, soltou à larga os cavalos selvagens da imaginação. Só a gratidão pode completar a felicidade, na fórmula chestertoniana, logo adotada por este cronista.

Estávamos, minha mulher e eu, minha filha e meu genro, em viagem de conhecimento e de surpresas diversas, jungidos pelo afeto comum do ser que a filha está gerando e que deve chegar em breve. Estávamos naquela distensão dos sentidos que só a palavra francesa, usada em sentido geopolítico “détente” é capaz de abarcar – este relaxamento de tensões, essa distensão que permite ao viajante ver os dias passando como se o único compromisso dos Queiroz e Lima fosse o de nos afastarmos da guerra do dia-a-dia, da jângala a que estamos todos submissos diariamente.

Quem viajou comigo, lendo as três edições de “Crônicas da América” sabe que não deixei de lado o sentido crítico, essa medida de realidade que não abandonamos por racional, mesmo quando o contexto é o de aparente fuga do cotidiano – o gatilho inevitável para aquele mal-estar que o escritor francês Stendhal registrou e a ele Graziella Magherini catalogou como um mal psicossomático, em 1979 com o título da síndrome de Stendhal. É aquela “overdose de Beleza caracteriza a presença de sintomas num indivíduo sensível quando este se encontra diante de belas obras artísticas”, ou mais poeticamente, nas palavras do narrador francês:

“Eu caí numa espécie de êxtase, ao pensar na ideia de estar em Florença, próximo aos grandes homens cujos túmulos eu tinha visto. Absorto na contemplação da beleza sublime… cheguei ao ponto em que uma pessoa enfrenta sensações celestiais… tudo falava tão vividamente à minha alma… Ah, se eu tão-somente pudesse esquecer. Eu senti palpitações no coração, o que em Berlim chamam de ‘nervos’. A vida foi sugada de mim. Eu caminhava com medo de cair.”

E mesmo não estando diante dos afrescos de Giotto, nem tendo visitado a Basílica da Santa Cruz em Florença, estava este cronista a ponto de uma queda como aquela, quando, por exemplo, ouvi o ensaio de órgão da capela dos Anjos em Stanford.

A “Stanford Memorial Church” foi retratada no livro “Glory of Angels” [i] e eu o tinha em meu acervo bibliográfico, mas nunca pudera dar a devida atenção ao local, quando das minhas viagens anteriores aos EUA, onde o foco eram os negócios. Agora, no gozo de minha aposentadoria, pude estar no ambiente sacro ouvindo por alguns minutos o ensaio do órgão da capela, o mestre do coro na plateia, acompanhando o organista que executava uma missa de Bach.

A Igreja Memorial de Stanford tem sua história assentada no coração da Universidade de mesmo nome, tendo se tornado uma das glórias da “Renascença norte-americana”, igreja construída sob o patrocínio da Sra. Jane Stanford, e cujos mosaicos são assinados pelo artesão Maurizio Camerino da A. Salvati & Co., de Veneza (Itália). O casal Leland e Jane Lathrop Stanford que fundaram a universidade, quiseram dar à comunidade um símbolo da memória do único filho – Leland Stanford Jr., que morreu vítima da febre tifoide aos 15 anos de idade.

Quis o casal que o acesso dos estudantes fosse voluntário e que a capela abrigasse as celebrações de todas as denominações cristãs, “com o mais alto sentido de responsabilidade por parte de homens e mulheres que obedecem aos sacros ensinamentos morais e religiosos”.

Quis a senhora Stanford devotar também um museu à memória do marido, pois ficou viúva somente dois anos depois da abertura da Universidade pelo então Senador Leland Stanford. A morte, como se sabe, deixou a universidade em seus primeiros anos em dificuldades financeiras e submetida a disputas legais que finalmente foram decididas em favor da viúva. A senhora Stanford, solucionadas todas as pendências, recolhe-se em luto e aposenta-se, deixando na gestão da hoje respeitabilíssima escola o sr. Professor John Casper Branner, advertindo-o que “minha alma está para sempre nesta igreja”.

Atraída pelo rito e a tradição Católica romana, a Sra. Jane Stanford deixou a marca das influências católicas no projeto e execução do templo, embora não esposasse nenhuma denominação em sua devoção pessoal.

Altar-mor da Memorial Church, capela dos Anjos, Stanford, Califórnia.
Detalhe do altar da Memorial Church em Stanford, Califórnia

A alma de Jane Stanford une-se à da Senhora Urraca Días de Haro (c.1270), que é a primeira figura que se me apresenta nesta volta ao lar, onde encontro entre outros livros, esta preciosidade que é “Impressões da Idade Média [ii]”, do professor-doutor Ricardo da Costa e que, embevecido leio e releio seu primeiro capítulo, justamente tratando sobre “A dor da perda: as mulheres e o luto na História” – livro que deve ser alvo de meus comentários em crônicas futuras.

François-Fleury Richard (1777-1852), "Valentina de Milão chora a morte de seu marido", acervo L´Hérmitage.
Valentina de Milão chora a dor da perda de seu marido, por François-Fleury Richard (1777-1852), acervo do museu L´Hermitage

O ensaio de Costa se nos apresenta com uma das mais sensíveis ilustrações da dor de uma mulher, através do quadro “Valentina de Milão chora a morte de seu marido”, de autoria de Fleury-François Richard (1777-1852), do acervo do museu “L´Hermitage”.

Tomo das considerações do ilustre medievalista como símbolo atemporal essa ilustração que nos mostra “essa estreita relação mulher-sentimento, mulher-luto”, noção que “começou a perder força com o fim do `Ancien Régime´ [na França] e recebeu seu crepúsculo definitivo com a liberação feminina da década de 60 [do século XX]“, malgrado “um breve ressurgimento que acontecera durante o Romantismo”.

O cronista se dobra às alegrias da volta deixa o quadro e as pequenas considerações do retorno como o símbolo deste próximo dia 8 de março, em que “o olhar moderno… quase sempre malicioso” não devota à mulher senão o traço mais rude e a dureza adversa do substantivo cada vez mais aparentado ao mundo dos homens, enquanto se varre para o lixo as mais caras tradições, de sociedades como a da Senhora Stanford ou a Senhora de Urraca, em que “a vida era muito mais intensa [século XII] do que muitas vezes costumamos pensar” e em pensando, entramos em luto como aquelas senhoras assim o adentraram.

Fico ao final desta curta crônica com a cicatriz do pé varo exposta ao gato, pois cachorro não tenho mais, e como Ulisses moderno retorno à casa em que sou o pai, o avô, o admirador das mulheres que me rodeiam e das mulheres que espelham a mais bela tradição cristã, como a de Clotilde, rainha dos francos e vítima do ódio do marido ante à morte do filho, a Clotilde paciente e evangelizadora, tal como a moderna Jane Stanford, cuja alma nos inspira a sonhar.

Justo conforme ao que Ricardo Costa nos ensina: “o impulso feminino foi fundamental para o processo religioso do Ocidente, para a conversão do mundo” e só a mulher, sem a pecha da rudeza que lhe querem atribuir no mundo hodierno, pode nos mostrar um mundo intenso e belo, sofrido e acolhedor, capaz de choro e alegria, só a mulher com sua vassoura e sua escova varrem o mundo para receber a Primavera dos povos, com mais harmonia e em Paz.

Deixa ao leitor o cronista embevecido, os versos finais do poema “Discurseiras e faxinas[iii]” de Bruno Tolentino, que muda o discurso no poema, depois de “tropeçar” com duas senhoras: uma que “ocupadíssima a esta hora/esta hora quase matutina/em que os vadios vão-se embora,/a varrer a calçada lá fora/entre a casinha pequenina/e os primeiros tremores da aurora; e com a “outra figura à janela,/ocupada também; [que] tinha à frente/várias escovas e uma panela,/e esfregava diligentemente/uma vidraça; sorriu-me, na dela,/mas nem por isso indiferente./Confesso que caí da sela”.
E assim:

“Volto não sei bem por que acerto
entre eu mesmo e minhas ilusões,
mas, no meio de tanto aperto,
entre os trancos e os cachações
que a alma leva à toa, converto
em motes, glosas e refrões
tudo o que ouço ao chegar perto
de uma cornucópia de anos.
[…]
“Vinha pensado num soneto
que dissesse, não o que lês
mas o desencanto correto
das almas mais finas, o preto
nos brancos da História, talvez
do pensamento: nada de concreto,
arabescos ao gosto discreto…
Mas não deu certo: desta vez

“tropecei sem querer na vassoura
que varre a honra do país,
na escova que a esfrega e redoura,
e de repente algo me diz
que a raça é uma batalhadora,
que cada poeta é o aprendiz
de seu povo anônimo. Fiz
estes versos à boca da aurora
e agora vou dormir feliz.”

E o cronista também assim se vai. Que durmam felizes todos, principalmente as leitoras neste dia que se lhes é consagrado pela modernidade, sem esquecer contudo que “mulher é desdobrável” – como determinou dona Adélia Prado, no seu diálogo poético com Carlos Drummond de Andrade: “Vai ser coxo na vida é maldição pra homem./Mulher é desdobrável. Eu sou.

Adalberto de Queiroz, 63, é jornalista e poeta. Autor de “O rio incontornável” (Editora Mondrongo, Bahia, 2017)

[i] GREGG, Robert C. et alli. “Stanford Memorial Church: Glory of angels”, Stanford Alumni Association, Stanford, California, 1995, 64 p.

[ii] COSTA, Ricardo da. “Impressões da idade Média” / Ricardo da Costa. – São Paulo: Livraria Resistência Cultural Editora, 2017, 277 p.

[iii] TOLENTINO, Bruno. “Os deuses de hoje”/Bruno Tolentino. – Rio de Janeiro: Record, 1995, p. 228/30.

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