Talvez seja este o próprio paradoxo do justiceiro: é preciso poder pra fazer Justiça, mas o poder só toma a si mesmo por Senhor

Misa Amane, que viu os pais serem assassinados durante um assalto em sua casa, torna-se aliada fiel de Kira, que os vingou

No primeiro encontro entre Light e Ryuk, quando o jovenzinho perfeito contou seu plano justiceiro de usar o Death Note para varrer da Terra todas as “pessoas más”, o Shinigami astutamente observou: “Mas aí você será a única pessoa má no mundo”. E no fim das contas, o que são o Mal e o Bem, a Vingança e a Justiça? Como os diferenciamos? Ilustrativa é a passagem em que uma garotinha inofensiva escreve no celular: “Mate todos, Kira”. Ela não está sozinha. As mais insuspeitas e pacíficas figuras se transformam no anonimato, principalmente o da internet, e apoiam linchamentos, execuções policiais, além do famoso bordão “bandido bom é bandido morto”. São milhões de Kiras.

Não por acaso, a persona divino-vingadora de Yagami, nascida a partir do caderno sobrenatural, angariou apoiadores e virou objeto de culto. Criminólogos de vertente psicanalítica como Theodor Reik, Franz Alexander e Hugo Staub levantam a hipótese do gozo com a punição alheia funcionar como descarga socialmente legitimada para as pulsões agressivas que, coercitivamente reprimidas na vida civilizada, restariam transbordantes nas psiques. Talvez seja parte de uma explicação, pois quando vemos cidadãos comuns, que nunca derramariam sangue, regozijando-se nas redes sociais com a morte de acusados, escancara-se ali uma espécie de comunhão coletiva irracional.

Mas não há de se creditar tudo à irracionalidade. A cada violência sem resposta corresponde uma vítima carente, sedenta de ajuda para retribuir a perda imposta e a dor sofrida. Foi o caso de Misa Amane, artista pop de aparência angelical que, durante um assalto em sua casa, teve os pais assassinados diante de si. Quando esses assaltantes-homicidas foram punidos por Kira, o autointitulado “Deus do novo mundo” ganhou a devoção incondicional da moça vitimada. No decorrer da história, até países reconheceram a autoridade da misteriosa força julgadora e programas sensacionalistas, como os da TV Sakura, vociferavam contra os que desafiassem a absoluta “Lei de Kira”.

Curioso como o Humano associa o poder, principalmente o punitivo, ao Divino. Talvez por intuirmos que impingir violência a um igual é tão perigoso e delicado que só se justifica por algo acima de nós; ou talvez pelos mais fracos gostarem de imaginar um Poder Superior capaz de castigar os abusos dos mais fortes; ou talvez ainda por desejarmos uma ordem fundante no mundo. A própria ideia de Juízo Final, ao admitir a salvação de uns e a condenação de outros por toda a eternidade, não trabalha com um senso iluminista de recuperação das pessoas, e sim com a restauração de um Princípio Absoluto de Justiça, que, por ser o Alfa e o Ômega, deve imperar apesar das pessoas.

Há um célebre brocardo latino que diz: fiat justitia ruat caelum (seja feita justiça, ainda que caiam os céus). Mas se esse for o sentido último das coisas, como que inscrito em uma ordem cosmológica transcendente a nós, será inapreensível pelas consciências humanas individuais, contingentes, dado ser impossível apreendermos o que nos transcende. Seguindo a lógica, um Princípio Absoluto de Justiça só seria cognoscível por uma consciência igualmente Absoluta. E mesmo caso a “máquina do mundo” se entreabrisse a um Drummond qualquer na pedregosa estrada de Minas, se a Esfinge revelasse o enigma, nada garantiria a fidelidade do gouche coração ao saber revelado.

A rigor, portanto, “Justiça Absoluta” é uma noção concebível apenas se habitarmos o Cosmos do Deus cristão e se for aplicada por esse Deus, pois sendo Ele onisciente e o princípio organizador universal, o Logos, a restauração da ordem justa entre os seres seria derivação de sua própria natureza divina, geradora, originária. Note-se que os deuses gregos não são capazes de levar o mundo a julgamento, absolvendo-o ou condenando-o conforme a si mesmos, e isso porque, segundo já dito, não o criaram, mas surgiram a partir de suas estruturas, restando a estas submetidos. E aqui se chega à encruzilhada de Light Yagami: receber o poder de um deus, mas continuar humano.

Assim, embora Kira simbolize uma atividade de fato sobre-humana, seu exercício através do Death Note é condicionado pela humanidade de Raito. Rapidamente, então, a soberba do jovem começa a matar não só os considerados “criminosos”, mas quem quer que se coloque em seu caminho, a exemplo dos investigadores Reye Penber e Naomi Misora, bem como toda a força-tarefa do FBI no Japão. Em Além do Bem e do Mal, aforismo 146, Nietzsche adverte: “Quem combate monstros deve cuidar para que não se torne também um. E se você olhar longamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de você”. Não ecoa essa passagem os vaticínios de Ryuk?

Observem os policiais, como sua exposição à decadência, à criminalidade e ao sangue, mesmo a princípio para combatê-los, lhes penetra na alma, empedernindo-a. E se ultrapassam o controle da lei matando quem consideram “bandido”, logo estendem tal definição a desafetos pessoais ou a meros críticos da autoridade fardada. A partir daí, é só mais um passo até os novos Kiras sucumbirem à pistolagem por dinheiro e a grupos de extermínio. Com efeito, quando a alguém são dados poderes além dos limites da ação humana, o monstruoso se manifesta. Talvez seja este o próprio paradoxo do justiceiro: é preciso poder pra fazer Justiça, mas o poder só toma a si mesmo por Senhor.

Se um pai mata o assassino de seu filho, quem sabe até se reconheça Direito no ato, a depender da situação. Mas se a um pai é conferido o poder de vingar todos os filhos da região, em um caso ou outro cabeças vão rolar segundo os interesses do executor. Igualmente, talvez exista quem mereça morrer. Pessoas cujo mal causado foi tão grande que nada em vida é capaz de reparar. Mas ao se erguer toda uma burocracia estatal para aplicar sistematicamente a pena de morte, a máquina sentirá fome de mostrar a que veio, afinal, é o seu sentido, e a foice ceifará, no lugar de quem merece ser ceifado, os incapazes de operar nas engrenagens viscerais, nas entranhas engenhosas do Leviatã.

O segundo episódio do anime, “Confronto”, termina com Kira de um lado e L do outro, ambos professando-se “a Justiça”. Em A Genealogia da Moral, o relativismo nietzschiano rastreia como nossas valorações sobre “bem” e “mal” vieram do ressentimento judeu contra a escravidão. O “bom” já foi comumente tido por “forte”, “capaz”, e “mal” era sinônimo de fraqueza. A transvaloração teria ocorrido quando o cristianismo e a “moral de escravo” judaica inscrita em seu DNA acharam terreno fértil entre a plebe romana, proclamando a “humildade” como valor supremo e refundando a cultura ocidental a partir da culpa, arma escrava contra a mão pesada dos senhores.

Mesmo empregando o Death Note com o rigor das guilhotinas jacobinas, Light revela-se ciente da relatividade moral citada quando, no episódio 30, “Justiça”, admite: “Se o Kira for pego, isso faz ele mau. Mas se vencer e comandar o mundo, ele é a justiça”. Seriam o justo e o injusto, então, apenas um jogo de poder? Uma questão de quem dá as cartas? Por mais abstrata que a resposta possa ser, algumas realidades são sempre cruamente concretas: a da tirania, a da violência, a da dor e a do sofrimento. Quem sofre na carne pela força arbitrária do outro entende ser isso a manifestação de um mal, e as cicatrizes não somem só porque há na lâmina retórica afiada. A dor não é uma ideia.

Uma pessoa assaltada e morta no caminho de casa submete-se à violência tirânica do indivíduo, ao passo que um criminoso torturado para além de sua pena submete-se à do Estado. O mal parece consistir na desproporção de forças que leva à tirania sobre alguém. Num estado normal de coisas, contudo, o exercício da violência exige alteração de ânimos, esforço do espírito, e contra tal animosidade é possível uma reação de intensidade próxima. Mas quando um poder emerge sob auspícios totais e se autonomiza a ponto de integrantes contribuírem para tiranizar o outro sem mudarem a cara, como fossem bons funcionários cumprindo seu dever, aí se entrevê o diabólico.

É no poder organizado, verticalizado e total, onde até um tedioso e ordinário Eichmann manda famílias para campos de concentração, que a consistência nevoenta das discussões morais se adensa numa expressão concreta e inegável do Mal, como agudamente intuíram Hannah Arendt e Bertrand de Jouvenel. Moscou pode não ser boa, mas foi bom ter Moscou quando tudo era Berlim. Aqui a sabedoria trágica, com seus emblemas de aniquilação para o equilíbrio dos seres, assume o sentido derradeiro: incesto e parricídio são imagens monstruosas, sim, mas talvez tragédia mais profunda teria sido a ascensão ilimitada do visionário Édipo-Rei, e não seus olhos perfurados.

Qualquer força, se cresce demais, ameaça em potencial tirânico e por isso atrai reações. Berlim encontrou, além de Moscou, Londres e Washington; Kira encontrou L e seus sucessores. “Este caderno é a pior arma de assassinato da História”, disse Near, principal discípulo de L, ao finalmente pegar Yagami Raito, que, não sendo verdadeiramente Deus, o Onisciente, deixou escapar a pista inevitável. “As coisas não costumam acabar bem para os humanos que usam o Death Note”, profetizara Ryuk. Não que tal desfecho estivesse literalmente escrito, mas, sendo as coisas como são, poderia mesmo ter acabado diferente? O que esperava Misa Amane, a real criação de um “Novo Mundo”?

Seja um deputado vociferando facas e caveiras lá do alto da tribuna ou uma insuspeita garotinha curtindo linchamentos no anonimato da internet, as pessoas tendem a se atrair pelo que quer que imponha ordem e retribua quem lhes fere, sem pensar no monstro alimentado por tabela. Kira seduzia suprindo a chama dessa carência, que, quanto mais for negligenciada, mais alto lançará seu sinal de fumaça a um próximo Yagami. Quem sofre não esquece, e por que esqueceria? “Seja feita justiça, ainda que caiam os céus”, diz o brocardo. Mas tudo considerado, concordo com o professor Arnaldo Bastos quando diz que o correto seria “seja feita justiça, para que não caiam os céus”.